“Este será o direito do rei que reinará sobre vós. Ele convocará os vossos filhos e os encarregará de seus carros de guerra e de sua cavalaria…e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros….Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos melhores olivais…Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus servos…”
(1 Sm 8.11-17)
A 6ª Semana Social Brasileira (6ª SSB) será realizada em um dos momentos mais complexos e tensos da história recente do Brasil. Os temas estruturantes que serão refletidos durante a 6ª SSB estão colocados em xeque, em especial, a soberania, a economia e a democracia. Estas três dimensões são fundamentais para a alcançarmos os direitos de acesso à Terra, ao Teto e ao Trabalho.
É impossível evitar a pergunta se daqui a alguns meses as profecias e as reivindicações por soberania, democracia e uma economia voltada ao bem comum ainda serão possíveis.
A cada dia cresce a máxima de Mateus 25. 29-30: “Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem será tirado”.
Para o sistema capitalista neoliberal não há possibilidade de democracia e nem soberania ou autodeterminação dos povos.
O final do século XX e o século XXI tem nos ensinado que o neoliberalismo sugou a essência de muitas das elaborações civilizatórias da humanidade, entre elas, da democracia e da própria religião.
A tensão entre Estado e poder religioso não é novidade. Na tradição judaico-cristã, esta tensão aparece na história do povo hebreu quando reivindicou a mudança do sistema tribal para o reinado.
Os versículos 11 e 17 de I Sm 8, são bastante explícitos em relação às consequências desta opção: escravização, perda da liberdade, filhos absorvidos para a guerra, altos impostos e desigualdade. A relação instrumentalizada entre religião e política será sempre uma relação que distorce o sentido da fé e que transmuta a benevolência que emana da fé religiosa em um poder nada benevolente. O que fundamenta esta instrumentalização é o poder pelo poder. É uma aliança idolatra, porque se coloca como poder absoluto e legítimo para dominar a vida das pessoas. Esta relação instrumentalizada não autoriza a divergência, nem a diversidade e, muito menos, as profecias.
Nossa laicidade sempre foi frágil. O cristianismo, ao longo da nossa história, foi instrumentalizado para realizar os desejos coloniais e capitalistas.
Foi esta relação distorcida que argumentou a favor da meritocracia para explicar as desigualdades sociais: “se você não tem Terra, Teto ou Trabalho é porque não está se esforçando o suficiente”. Esforça-te e Deus proverá!”.
Nos últimos anos, a relação entre religião e política tornou-se mais complexa. O que temos hoje no Brasil é uma “teopolítica neocolonial” (LIONÇO, 2019), que reivindica o direito à grilagem de terras, o direito à conversão dos povos indígenas e à exploração de garimpos. O fundamentalismo religioso tornou-se política de Estado.
É a instrumentalização da religião pelo poder político que legitima e justifica a morte necessária de alguns para que outros concentrem cada vez mais riquezas e poder. Esta instrumentalização é a necropolítica em forma de homilia e liturgia.
A 6ª Semana Social Brasileira tem como principal inspiração e fundamentação a fé em Jesus Cristo. Apesar de ser um espaço plural, que reúne, a partir desta fé, pessoas de diferentes tradições religiosas e pessoas não religiosas é a partir da fé que nos encontramos para fortalecer a unidade e o comprometimento com a luta por justiça, materializada na divisão radical das riquezas, na justiça socioambiental, na radicalidade da unidade na diversidade.
Na 6ª Semana Social Brasileira afirmamos a dimensão política da fé por confrontar relações de poder e exclusão. No entanto, é uma fé política não instrumentalizada, porque não tutela os movimentos sociais para impor uma vontade e uma verdade absolutas. Não é instrumentalizada porque há espaço para a diversidade de opiniões e a abertura para os questionamentos e críticas necessárias.
Um desafio é compreender que a resposta religiosa jamais pode ser a única e nem a última resposta. Não somos portadores e portadoras da verdade e nem de salvação. Nossa participação política deveria alicerçar-se na autocrítica e na consciência de que sempre que a fé religiosa se transforma na verdade última, utilizando-se de recursos e poderes humanos, ela se torna instrumento de opressão e não libertação.
Perguntas:
- Quais os desafios a serem enfrentados para libertar a fé religiosa do jugo do capitalismo?
- A experiência religiosa pode ser um caminho para o aprofundamento da democracia, da transformação da economia de mercado para uma economia distributiva e para a soberania dos povos. No entanto, quais os cuidados necessários para que a experiência religiosa não se transforme em instrumento de opressão?
Referências:
LIONÇO, Tatiana. A Tecnologia da Crueldade na Teopolitica Neocolonial Bolsonarista. In. https://www.justificando.com/2020/04/17/a-tecnologia-da-crueldade-na-teopolitica-neocolonial-bolsonarista/. Acesso em 20/04/2020.
STRECK, Wolfgang. Tempo Comprado. Conjuntura Actual Ed. Coimbra, 2013. Livro eletrônico.
*Romi Marcia Bencke, é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, secretária Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil