A pandemia abre o século XXI, argumenta Boaventura, e surgem três cenários possíveis. É preciso lutar, com “otimismo trágico”, pela saída pós-capitalista. Ou aguardar, em apatia, o pior
Por José Cabrita Saraiva | Outras Palavras
Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick, e no livro que acaba de enviar para a editora defende que o século XXI começa agora. Entre as mudanças que antevê, aponta o fim do turismo internacional e o redimensionamento de centros comerciais.
Estudou na Alemanha, doutorou-se nos Estados Unidos, viaja com frequência para o Brasil e a Colômbia, mas agora vive numa aldeia de apenas 12 famílias perto de Coimbra, Portugal. Homem de esquerda e de causas, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos considera-se um “otimista trágico”. Recusa deixar de acreditar na utopia e diz que não se tem dado mal com isso.
Ainda há poucos meses a editora portuguesa Almedina publicou um volume com as suas aulas magistrais dos anos 2011-2016, sob o título Na Oficina do Sociólogo Artesão. Mas Boaventura de Sousa Santos tem aproveitado o confinamento para trabalhar e já entregou à editora seu novo livro. Chama-se O Século XXI Começa Agora — Da Pandemia à Utopia e defende que a crise sanitária que atravessamos mostrou que existem alternativas ao modelo do capitalismo global. Isso dá-lhe esperança no futuro. Ainda assim, considera-se um “otimista trágico”. Nessa entrevista ao i, concedida por skype a partir do seu escritório numa pequena aldeia próxima de Coimbra, explica por quê.
Como tem vivido estes meses? Está confinado ou não se preocupa muito com isso?
Obviamente que me preocupo. Estou desde março aqui na minha aldeia, a 30 km de Coimbra. É uma casa onde já tinha meu escritório e onde escrevi muitos livros. De alguma maneira, pertenço àquele grupo de privilegiados que podem trabalhar em casa. Tinha um grande número de compromissos este ano que me levariam a estar permanentemente em viagem, e muitos deles foram transformados em transmissões ao vivo. Estou agora a enviar para a minha editora um novo livro sobre a pandemia. De modo que tenho aproveitado o tempo para trabalhar.
O confinamento tem tido aspectos positivos ou essa parte de não poder viajar, por exemplo, foi uma grande contrariedade?
Não, não foi. Tive mais tempo para me dedicar à escrita e à leitura. Mas tudo isto assumindo que se trata de uma coisa transitória. Diferente será se o novo normal implicar que as coisas vão ser muito mais difíceis, sendo certo que os meus destinos internacionais, além da Europa, estão muito centrados em dois países: os Estados Unidos, onde tenho vivido metade do ano há 35 anos, em Madison; e o Brasil. E ainda a Colômbia, que é outro país onde também estou muito envolvido. De maneira que as reuniões têm de ser virtuais. Vamos ver o que vai passar-se. Por enquanto eu vivo numa bolha, a minha aldeia são doze famílias.
Então não há risco de contágio.
Aqui na região Centro as coisa estão calmas, vou dar as minhas voltas com os cães, vou ver os meus amigos lavradores ou pastores, conversamos à distância — aqui no campo é assim. Pouca gente vejo, tem essa grande vantagem.
Esses pastores são pessoas para quem a pandemia é uma realidade distante?
Não, não. Estão muito bem informados. Veem televisão, conversam, perguntam-me. “Doutor, vai cá chegar? O que é que a gente deve fazer?” Estão bastante conscientes e penso que tomam as suas medidas, sobretudo neste período do mês de agosto, que é o mês de grande perigo nas aldeias portuguesas, com a vinda dos emigrantes.
Falou-me de sua ligação ao Brasil e aos Estados Unidos. Neste momento tem uma espécie de relação amor-ódio com esses países?
Não, é só uma relação de amor. Ódio às condições políticas, tanto num como noutro.
Era a isso que me referia.
Mas eu distingo entre o país e os seus governos, até porque o meu trabalho é na universidade. Desde há 35, entre agosto e dezembro eu ficava nos Estados Unidos, e passava o resto do tempo aqui em Portugal. E continuo obviamente a estar totalmente informado. Para mim, como sociólogo, esta pandemia tem sido uma revelação extraordinária, e servido como confirmação de algumas das coisas que eu tinha vindo a suspeitar nos últimos tempos. Estou naquela situação em que preferia que as minhas previsões ou análises não se confirmassem.
Pode dar um exemplo?
Fiz o meu doutorado em Yale [em New Haven, Connecticut, a terceira universidade mais antiga dos EUA], terminei em 1973, e a partir de 82 ou 83 comecei a ir regularmente para Madison, Wisconsin, onde existe uma excelente universidade. E, portanto, assisti a uma certa degradação progressiva da sociedade norte-americana, em termos democráticos. Tem de ver que quando fui para os Estados Unidos fazer meu doutorado, ia da ditadura de Salazar. Pode imaginar a minha reação perante uma sociedade onde não só havia uma discussão extraordinariamente viva — a universidade era bem liberal –, como eram o movimento contra a guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos cívicos, o Black Panther, enfim, era um meio onde o progresso das sociedades ocidentais se notava fortemente nas agendas políticas e sociais.
Esse ambiente estimulou-o?
Foi extraordinário para mim, vi como nós na Europa estávamos longe do que devia ser a organização social. Mas a pouco e pouco fui começando a perceber os lados negativos daquela sociedade, fundamentalmente a extratificação social, que era já grande àquela altura. Por outro lado, a luta dos Panteras Negras mostrava que o racismo era uma das feridas dos Estados Unidos. Nessa altura, a ideia era que estávamos com um paradigma de progresso irreversível, e portanto isso iria ser ultrapassado dentro de algum tempo. E foi isso que pensei durante muito tempo. Mas não foi isso que aconteceu. E fui vendo ao longo do tempo como as coisas voltavam para trás. Depois comecei a perceber que era uma sociedade que internacionalmente, independentemente de quem estivesse no poder — fossem os Kennedy, fossem depois os conservadores — tinha uma visão de mundo imperialista. A Guerra Fria dominava praticamente tudo. Na minha tese de doutoramento eu tinha um capítulo em que falava da importância do Karl Marx — entre outros — para a teoria social. Um dos meus orientadores, que era um grande sovietólogo, aconselhou-me a tirar esta parte. Não que ele tivesse nada contra Marx, obviamente — mas não era relevante para o meu argumento. Vi que havia uma certa atitude e essa opinião consolidou-se quando eu fui fazer meu trabalho de campo no Brasil. Vivi durante alguns meses numa favela do Rio e vi qual era a participação dos Estados Unidos na ditadura brasileira.
Foi viver numa favela por opção?
Exato. É o que se chamava a “observação participante”, que é uma das metodologias da sociologia qualitativa. Essa metodologia indica que o investigador tem que viver no lugar, não deve fazer nenhuma entrevista, tem de viver com as pessoas e conversar com elas, e o tempo suficiente para ter um conhecimento aprofundado dessa realidade. Foi isso que eu fiz. Era uma comunidade tão grande quanto a cidade de Coimbra de onde saí, que tinha 60 mil habitantes. Tive muita informação que me foi dada na base da confiança, precisamente porque eu não era um sociólogo americano, porque aquilo estava cheio de antropólogos e sociólogos americanos, e eles [os residentes da favela] tinham muito medo que a sua informação fosse ter à CIA, e portanto mentiam. Até tinha gente treinada nas favelas para responder aos antropólogos e sociólogos americanos, para não darem nenhuma informação sensível — por exemplo, que havia atividade política clandestina nas favelas. Depois disso continuei a viver [nos EUA], fazendo uma distinção entre a sociedade e o país, porque vivia também numa bolha — Madison era uma cidade bastante progressista. E comecei a desenvolver o conceito de que os Estados Unidos seriam o país do novo Terceiro Mundo, onde eu via o Estado falido emergir. Agora vê-se a situação em que estão, não só pela condução desta pandemia como pela degradação democrática. Os meus amigos telefonam-me angustiados. Neste momento, o grande problema deles é se vão votar quanto antes porque o Trump está a sabotar os serviços do correio e têm medo que esta seja a forma de ele fazer fraude eleitoral. Estão absolutamente convencidos de que vai haver fraude, e que o Joe Biden teria de ganhar por muito para a sua vitória ser reconhecida. [A entrevista foi feita antes dos acontecimentos que abalaram Wisonsin]
Além da degradação em termos políticos ou sociais, não se confrontava com outras questões como consumismo e a competição, que estão tão presentes na sociedade norte-americana? Isso não lhe fazia confusão no dia-a-dia?
De que maneira! Nessa da competição tive um tratamento traumático. Eu formei-me em Direito em Portugal, e quando fui para os Estados Unidos já era assistente da Faculdade de Direito em Coimbra. Em Portugal, quando fazíamos exames, não podíamos consultar nada e tínhamos pessoas a vigiar as salas para não haver cola. O primeiro exame em Yale foi um exame closed book, como eles chamam, não se podia consultar. “Como é? Esta gente está aqui toda sozinha?” Achei estranho, mas enfim, adaptei-me e fui escrevendo. A certa altura esqueci-me do nome de alguém para responder a uma pergunta. Foi um daqueles lapsos que a gente tem. Eu até era bom aluno e portanto não tinha dificuldades. Foi um lapso. De maneira que perguntei ao meu colega do lado: “Podes-me dizer quem é fulano?” Ele olha para mim absolutamente espantado — mas absolutamente espantado, não pode imaginar! “Ó Boaventura, mas tu pensas que, se eu sei, te vou dizer? Se eu te digo ficas a saber tanto quanto eu.” Fiquei absolutamente traumatizado com aquilo. Cheguei em casa e disse à minha mulher: “Meu deus, isto é uma lei da selva!”
Um mundo cão.
Um mundo cão! Portanto desde aí fiquei vacinado para a competitividade. Depois fui-me adaptando. Como pode imaginar, ao longo de tantos anos fui transferindo essas questões para as minhas análises, em vez de viver intensamente os sentimentos de raiva que algumas atitudes da sociedade norte-americana me suscitavam, e ao mesmo tempo procurando os nichos. É uma sociedade onde também há muito nicho, quem se pode proteger está protegido. Mas é uma sociedade realmente… para a análise é extraordinária e continua a interessar-me. E o Brasil é a mesma coisa. Continuo muito ativo no brasil politicamente e acompanhando as lutas também com as organizações, com os movimentos sociais, como sabe sou uma pessoa de esquerda, tenho escrito livros como é que as esquerdas se podem unir, é uma coisa que eu nunca percebi, como é que nesta situação as esquerdas continuam divididas por sectarismos, quando praticamente está um fascista no poder e provavelmente vai continuar depois de 2022. Continuo muito envolvido nestas lutas.
Li um destes dias um artigo na Rolling Stone que dizia que a pandemia marca o fim de uma era na América. Quem diz na América diz no mundo inteiro. COmo é que aquilo que estamos a viver pode alterar os equilíbrios de poder globais?
Vou adiantar em primeira mão o título deste livro que acabei de terminar. Chama-se O Século XXI Começa Agora — da Pandemia à Utopia. Num e-book que publiquei para a Almedina, em Portugal, eu chamava-lhe “a cruel pedagogia do vírus”. Os séculos normalmente nunca começam, do ponto de vista sociológico e político, no primeiro dia do primeiro ano. Começam com um acontecimento que os marca. No século XIX foi a Revolução Industrial, nos anos 30, no século XX é a Primeira Guerra Mundial e depois da Revolução Russa, o século XXI vai começar com esta pandemia. Eu termino o livro analisando três cenários possíveis, que em meu entender estão totalmente em aberto, é impossível saber o que vai acontecer.
Que cenários são esses?
O primeiro é que nada mude, e que acabaremos por voltar ao normal, que é um inferno para a grande população mundial, que vive em favelas, em prisões superlotadas, as mulheres violentadas, enfim… Que nada mude será quase este distópico, porque vamos assistir a muito mais pandemias e a muito mais securitarismo. Depois há um segundo cenário, que é o que o Financial Times aponta: têm de mudar algumas coisas, mas que tudo fique na mesma. Isto é, mudam algumas coisas mas continuamos a ter o capitalismo global, continuamos a explorar a natureza… Podemos fazer algumas mudanças, mas vamos continuar a depender do petróleo e do gás etc. Depois há um terceiro cenário, que é o de uma alternativa que por enquanto é utópica mas que capta muita juventude, que é uma contra concepção da natureza, no fundo esta ideia que defendo muito neste livro, a ideia de que a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza. Isto é o que sempre pensaram os indígenas das Américas ou os camponeses da África. Nós na Europa com o Descartes, a partir do século XVII, é que começamos com esta ideia estúpida de que a natureza se pode dominar e explorar sem limites. Isto tem de acabar.
E em Portugal? Temos muitas empresas a fechar, o desemprego aumentou acentuadamente as pessoas estão a perder rendimentos. O que pode fazer isto ao tecido social?
Portugal está muito dependente da política europeia. Penso que, no que se respeita à condução da crise, Portugal posicionou-se muito bem neste período de emergência porque houve uma política de mitigação no achatamento da curva, porque obviamente o perigo era o colapso do sistema nacional de saúde, que tinha vindo a ser enfraquecido. O Serviço Nacional de Saúde estava mais bem preparado há 10 anos para enfrentar esta pandemia do que estava hoje. Foram 10 anos de privatização, de crescimento da medicina privada, de cortes orçamentais. Essa política deu plenamente resultado e continua a dar. Qual é a consequência? É que naturalmente não só a pandemia durou mais tempo como por outro lado, para não sobrecarregar o sistema nacional de saúde, adiaram-se outros cuidados de saúde que eram urgentes, e isso está a ter um preço alto. O número de mortes naquele igual período do ano passado foi inferior ao deste ano, o que significa que houve descuido porque muito trabalho urgente dos serviços de saúde não pode ser feito, muito acompanhamento não pode ser feito, sobretudo no domínio oncológico, e isto tem consequências. No que diz respeito à crise econômica e social, penso que Portugal teve uma característica que é boa e que nem sempre existe em todas as sociedades: Portugal foi onde houve o maior consenso das forças políticas. O comportamento foi muito correto e realmente tornou-se claro que a prioridade era combater a pandemia e defender a vida. O Rui Rio, líder do PSD, disse isso muito claramente logo no início: “A partir de agora o nosso adversário não é o Partido Socialista mas a pandemia”.
Foi colaborante?
Foi colaborante. O primeiro-ministro e o Presidente também foram estando articulados. Essa foi a diferença que houve entre governos de direita e governos um bocadinho mais à esquerda, com mais responsabilidade social: não se pôs a economia à frente da vida. Houve países que puseram a economia à frente da vida, como os Estados Unidos, o Brasil e a Inglaterra, e os resultados foram desastrosos. (…) Temos uma circunstância boa, em meu entender, que não existia em 2011: é que a União Europeia chegou à conclusão de que haveria que mutualizar parte das dívidas, porque perceberam que a condução da União Europeia pela comissão foi responsável em parte pelo Brexit e certamente se a condução fosse do mesmo tipo haveria outros “Brexits” na Europa. Procuraram placar isso e essa política também vai beneficiar Portugal. A grande questão é que Portugal tem que usar esse dinheiro de uma forma diferente daquela que usou o primeiro dinheiro que tivemos quando entramos para a União Europeia, e que tem muito a ver com todos os desmandos daquele longo período em que Cavaco Silva esteve à frente do governo. Foram 10 anos que tiveram consequências extremamente graves, com muita destruição e muita corrupção. Espero que se tenha aprendido essa lição, e que se possa minimizar um pouco a crise. Temos que lidar com a incerteza. Isto é uma grande característica do novo tempo no século XXI, é uma incerteza que não é segurável. E os seguros fugiram todos. Nenhuma seguradora apareceu para salvar as empresas ou as pessoas. Isto chama a atenção para quê? Para uma instituição que tinha vindo a ser menosprezada ao longo deste tempo todo que é o Estado. O Estado assumiu uma centralidade para a qual não estava preparado, no meu entender, em muitos países, mas as pessoas recorreram ao Estado porque não havia mais ninguém a quem podiam recorrer. É esta situação em que estamos. Penso que Portugal vai reproduzir as crises da Europa, com alguma intensidade acrescida. É uma economia muito dependente da Europa…
E do turismo.
Neste livro procuro explicar por que é que o turismo internacional tem os dias contados, é uma das conclusões a que cheguei. Tem uma pegada ecológica tremenda — em cinco dias em Miami para ir ver a Disneyland faz-se um estrago ambiental absolutamente horrível — e portanto deve ser compensado como muito mais turismo cá dentro. Está a acontecer uma coisa bonita que é o turismo rural, as pequenas instalações ao Norte e do centro, estão cheias, e o Algarve está a tentar aguentar-se de alguma maneira com os turistas portugueses. Vamos ver.
Uma das ideias que retive da leitura deste seu livro é que o mundo não gira todo à mesma velocidade. Isso foi algo de que se apercebeu através de suas experiências em diferentes países — Portugal, Alemanha, Estados Unidos, Brasil…?
Claro. Tenho há muito tempo a ideia de que o capitalismo global tem o que nós chamamos um desenvolvimento desigual e combinado. Durante muito tempo as empresas europeias exploraram as riquezas da América Latina e da África, da maneira mais brutal possível, para que nós pudéssemos ter alguma proteção social. E isso continua a reproduzir-se de uma ou de outra forma, sobretudo agora, que estamos com uma nova Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China, que é extremamente preocupante. Num dos capítulos deste livro eu falo da “trágica transparência do vírus”. O vírus torna tudo mais transparente. Eu falava do declínio dos Estados Unidos — é um declínio que está a ser agravado exatamente por esta pandemia. Um país que tem um poderio militar para destruir o mundo várias vezes, no entanto não produz coisas elementares como máscaras, ventiladores ou álcool gel suficiente para proteger os cidadãos, tem que os mandar vir da China? São países extremamente frágeis. O que é o desenvolvimento? O que é ser um país desenvolvido? Certos países do sul global, por exemplo na África, e certos países do mundo asiático — o Vietnã é um caso extraordinário, a Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e a própria China — têm tido um comportamento muito superior ao dos países mais desenvolvidos da Europa. Basta ver o que aconteceu na Bélgica, o que aconteceu no Reino Unido, o que aconteceu nos Estados Unidos. Há aqui uma certa inversão. A lógica do capitalismo global, continua porque ela é hoje dominada por um setor que está muito bem centrado no Norte, que é o capital financeiro. O capital financeiro está num eixo entre Frankfurt, Londres e Nova York, portanto ele aguenta. Mas outros setores do capital e da economia sofreram exatamente o desgaste de toda a tendência, e aí é que está a transparência de que falo.Desde jovem habituei-me a ler os documentos públicos dos serviços de segurança do Ocidente, que são dos mais interessantes para ver o que é que vem aí. A CIA, por exemplo, tem um dos Institutos de estudos políticos mais notáveis nos Estados Unidos e que produz de quatro em quatro anos um relatório para o presidente. Claro que este Presidente não ligou absolutamente nada. Mas o último chamava-se Tendências Globais 2030, e deixava claro que em 2030 a China será a primeira economia do mundo. E mostra como é que isso ocorrerá e o que os Estados Unidos devem fazer para se defender. Os Estados Unidos tiveram que apertar o garrote, porque de outra maneira é fatal essa ascensão, daí toda essa guerra comercial com o 5G, proibindo a Huawei — que segundo dizem os especialistas é o melhor sistema. Isto mostra que a dinâmica está a Leste, o poder repressivo está a Ocidente e vamos estar nessa durante as próximas décadas.
Acha que a China oferece uma alternativa credível ao modelo capitalista? É que eu diria que a China adaptou o capitalismo às suas condições, nomeadamente a disponibilidade de mão-de-obra, centralização política etc. Mas acabou por adaptar o modelo capitalista ao seu sistema.
Absolutamente. Neste livro — e até noutros anteriores — analiso o sistema [chinês] como um capitalismo de Estado. Pode ter até muitas virtudes, não tem a virtude de ser democrático. A China inseriu-se na economia mundial entrando duro na competição com o capitalismo global. E fê-lo com uma mão-de-obra extremamente barata. Veja só hoje quantas empresas americanas produzem os seus produtos na China. Não há nada que venha dos EUA. Qual é a vantagem da China neste momento? A vantagem é que internacionalizou tudo, exceto o capital financeiro, portanto está mais ou menos defendida da crise do capital financeiro que se calcula que virá a seguir isto. Por outro lado, a China e a Rússia foram os países do mundo que nos últimos 10 anos compraram mais ouro. Combinadas, têm as maiores reservas de ouro do mundo, de modo que estão a preparar-se para uma crise global, e já tem um acordo para as transações entre si já não serem feitas em dólares. Como sabe todos os impérios quando declinam não declinam facilmente. Será um processo traumático. Vamos ter mais Guerra Fria, alguma guerra quente. E é nessa situação que a gente se encontra. Acho que as alternativas ao domínio do capitalismo ocidental não são nada boas em termos de democracia. O que está a acontecer, e isto é trágico, é que o Ocidente também está a perder conteúdo democrático. Os Estados Unidos é o grande sinal do futuro. É evidente que o grande capital ainda pensa que o Trump é o melhor trunfo, porque fez mais cortes de impostos e eles ganharam muito dinheiro. Mas talvez agora o Biden os convença de que afinal o Trump acaba por ser um tiro no pé.
Falou da erosão da democracia nos Estados Unidos. Durante este período, em Portugal, temos vivido com muitas imposições, restrições, proibições. A nossa liberdade também está sob ameaça?
Não, não, de maneira nenhuma. Acho que a liberdade tem que ter restrições em função do bem comum, digamos assim. Esse é o grande argumento hiperliberal — os conservadores norte-americanos fazem essa grande publicidade contra as máscaras, contra distanciamento social, distanciamento sanitário. A mesma coisa no Brasil: todos eles se afirmam contra tudo o que é restrição, é quase uma posição anarquista. Acho que sabemos muito bem que uma sociedade para ter um mínimo de coesão social não pode ter essa liberdade total. No século XIX você sabe como é que as empresas na Inglaterra viram a primeira grande tributação dos empresários? Chamavam-lhe um roubo. “Então nós ganhamos dinheiro e agora vamos ter que contribuir?” Era a limitação da liberdade deles, para criar um Estado, o que temos hoje — ainda. Em Portugal, até talvez pela sensibilidade do presidente da República, sobretudo, houve todo o cuidado em não rastrear posições de pessoas e controlar os movimentos, ao contrário de outros países. Itália controlou, espanha controlou, a Nova Zelândia — que é liderada por uma das grandes primeiras-ministras do nosso tempo — também controlou. O que acontece é o seguinte: no Ocidente nós temos uma consciência da liberdade individual que outras sociedades, para quem a obediência a um bem comum é fundamental, não têm. A Coreia do Sul é um bom exemplo. As pessoas estão perfeitamente acostumadas de que essa utilização é para o seu bem. Qual é o problema? É que passa a pandemia e os esquemas de vigilância e de controle estão no terreno. Amanhã podem ser utilizados para outros efeitos. Ninguém nos tira desse perigo. Em Portugal, jogando com a liberdade das pessoas, julgo tem havido até uma certa sabedoria dos políticos, devo dizer. Veja a arrogância de alguns países, como a Suécia, ou a própria Holanda, e o resultado que teve depois. Se Portugal fosse um país melhor, maior, se tivesse um prestígio na Europa que ainda não tem, apesar do Mário Centeno, nós seriamos um exemplo nalgumas coisas. A reconstrução portuguesa em 2016-20 é modelar em alguns aspectos — o New York Times chegou a ter uma página dedicada ao “milagre português”. Só que Portugal não consegue impor o que faz de bem e tudo o que faz de mal é ampliado na Europa.
Falou da vigilância a que somos sujeitos, através dos celulares, por exemplo — se calhar até esta conversa que estamos a ter pode estar sendo vigiada. Como olha pra isso? Preocupa-o?
Tremendamente. Por enquanto estamos alarmados com as chamadas fake news, eu cito aqui um estudo do American Journal of Tropical Deseases, que calculou que pelo menos 800 pessoas morreram no mundo devido a um boato falso que circulou em muitos países, que dizia que ingerir álcool puro matava o vírus. Foram 800 pessoas que morreram, 60 ficaram cegas, no caso da Turquia dezenas de milhares foram hospitalizadas. Claro que foram as redes sociais que propagaram essas notícias falsas. Estamos preocupados com isso, mas a vigilância está a outro nível. Nas empresas, na universidade, todos continuamos a usar sistemas privados de acesso à internet, não só nos telemóveis, mas também o skype e o zoom, por exemplo. O indivíduo que inventou o zoom em dois meses viu a sua riqueza aumentada em 7,5 bilhões de dólares. Se fosse só ganhar dinheiro, não havia problema. O que acontece é que estes dados estão obviamente — todos — depositados num lugar. Vejo com muita preocupação isso, acho que é um dos problemas do século XXI. Se queremos salvaguardar a democracia, acho que vamos ter de enfrentar limitações à liberdade nas redes sociais, por exemplo. Todos os teóricos liberais, que estudaram isso muito bem, estavam conscientes de que se a liberdade for concentrada em alguém com muito poder, é destrutiva. Se o poder estiver todo concentrado, é um poder despótico. Temos três ou quatro empresas que controlam praticamente todos os dados. E são todas do mesmo país. Ao nível delas está a AliBaba, da China, que não seria melhor, faz vigilância na mesma, mas para outro projeto. É um dos novos problemas para os quais não temos ainda nem teoria nem grandes recursos. Vou dar um exemplo daquilo em que estou a trabalhar. Toda a teoria da sociologia política assenta na distinção entre democracia e ditadura. Acho que estamos a entrar num período, em muitos países, que eu chamo “democradura” — nunca se sabe muito bem quais são os elementos ditatoriais e os elementos democráticos. O caso do Brasil é patético nesse sentido, porque condicionaram uma eleição e continuam a condicionar a vida dos brasileiros, qeu estão a morrer num desastre sanitário incrível em grande parte por causa disso.
Penso que o Julian Assange vai ganhar o Nobel da Paz durante este século, talvez daqui a 50 anos ou assim. O Edward Snowden é outro grande candidato. Nós chegamos a um ponto em que o sistema é de tal maneira integrado e de tal maneira secreto que até as forças da oposição não têm acesso ao conhecimento relevante para o questionar. Portanto, as crises do sistema vêm de insiders, de gente que está lá dentro do sistema e que sabe o que se está a passar. O Julian Assange a certa altura dá-se conta: “Que diabo, estou a participar de uma monstruosidade” — e é isso que mais tarde ou mais cedo o Mark Zuckerberg acabará por também constatar. Claro que isso pode levar também à destruição do sistema. O hacker pode querer entrar no Sistema Nacional de Saúde e destruí-lo de um dia para o outro. Seria capaz de o fazer. Podiam atacar o controle de tráfego aéreo e provocar num dia milhões de mortos. Não fizeram isso. Foram seletivos, onde viram que a liberdade em democracia estava a ser posta em casa por falsidades.
Por falar em futuro. Por um lado temos o progresso da ciência, da medicina, da tecnologia, mas sabemos que o progresso não é linear, que não estamos sempre a evoluir para melhor. Encara o futuro com otimismo ou com preocupação?
Não acredito muito na ideia de progresso. Fomos extremamente seletivos em tudo aquilo que consideramos ser progresso e aquilo que achamos regressivo ou atrasado. Isso teve consequências incalculáveis. O meu otimismo é reservado, isto é, nós temos alternativas. É por isso é que este livro tem o subtítulo Da Pandemia à Utopia. A pandemia neste contexto deu-me algum ânimo.
Primeiro, mostrou que há alternativa. Aqueles que podiam tiveram mais tempo para ficar em casa, para tratar dos filhos, cuidar da família, ler mais um pouco. Em segundo lugar, muita gente tinha deixado de ir às suas mercearias de bairro, porque gostavam era de ir ao Colombo e aos grandes shoppings. Quem é que abriu primeiro? Quem é que os protegeu? Quem é que tinha os produtos mais naturais? A mercearia. Aqui na aldeia tenho toda a agricultura que nós chamamos orgânica, que é a agricultura que eles sempre tiveram, dos camponeses aqui à volta. E não pense que é uma coisa primitiva, até produz mirtilos para exportar. E claro, como são espaços pequenos, não tem congestionamento. Têm álcool gel, têm máscaras etc. Acho que caminhamos para aí, e também defendo no livro que vamos ter de redimensionar os shoppings, são zonas de alto risco para o futuro.
Nunca frequentou?
Frequentei o mínimo. Tenho quase claustrofobia. Se estiver mais de quinze minutos não aguento. Mas vou lá para qualquer coisa mais pontual. São espaços de concentração de gente, com ares condicionados, por isso é que é de alto risco. Mas não estou a dizer que acabem os shoppings ou supermercados — agora, vão ser redimensionados.
Até aqui íamos tendo espaços cada vez maiores. Mas também não podiam crescer indefinidamente, não é?
O que eles fizeram foi continuar a crescer e diferenciar-se internamente. Como havia uma parte da classe média que gostava de produtos orgânicos e locais, abriram esses departamentos nas grandes superfícies. As coisas que tenho aqui na mercearia são feitas em Portugal, mas se for a Coimbra a um shopping, o mais provável é os produtores agrícolas ou o peixe virem da Espanha. Agora fazem muita propaganda do produto nacional. Nós chamamos a isso de soberania alimentar. Um país que não tenha soberania alimentar numa pandemia está liquidado. Moçambique teve uma crise brutal porque perdeu parte da soberania alimentar, a África do Sul fecha as fronteiras de um dia para o outro e os caminhões não passam. Isso foi uma crise momentânea, mas grave. temos que ter soberania alimentar, ou seja, favorecer a agricultura familiar. Por que é que eu falei dos erros que se cometeram com os primeiros fundos da Europa? Porque destruíram a agricultura familiar.
E as pescas.
E a pesca artesanal. Foi o grande crime que se cometeu. Hoje estaríamos muito melhor se não fosse isso. Mas agora há jovens que estão a fazer agricultura com responsabilidade social, muitos até são filhos de camponeses. É por aí que a gente tem que ir.
O meu pessimismo vem em relação às classes políticas e o otimismo vem de que os cidadãos, se forem suficientemente informados, viram a possibilidade de alternativa.
Por que essa desconfiança em relação aos políticos?
Porque desde os últimos 40 anos, sobretudo depois da queda do muro de Berlim, nós deixamos de discutir processos civilizatórios. Até então, com todos os limites, havia a possibilidade de uma alternativa neocapitalista, havia aquele debate todo sobre que tipo de socialismo… mas debatia-se! A partir daí não se debateu. Os políticos destas gerações são todos mais do mesmo, não são capazes de pensar além do ciclo eleitoral. Por melhores que sejam, e alsun são bons. Mas não pensam no que está para além dos quatro anos. Ora, nós vamos precisar agora de pensar, e tem que ser a opinião pública e as organizações sociais e a sociedade civil a fazerem pressão para estes modelos alternativos.
Vamos ver como as sociedades vão se comportar nesse sentido. O meu otimismo é ainda reservado por uma outra razão, que é a razão de por que tanta gente ainda se deixa atrair por Trump, apesar daquela desgraça. Há uma fração pequena da classe média que ficou tão assustada com o que está a passar, que está ansiosa por que alguém lhe diga que isto não foi grave, que vai tudo voltar ao normal, que a gente…
…pode seguir com a nossa vida?
Exatamente. E essa gente sente-se confortada. Quem é que dá normalmente essa mensagem? Políticos de direita, que não estão muito esclarecidos — também há políticos de direita mais esclarecidos. Mas penso que há algum campo para alguma reflexão sobre alternativas e vai haver uma disputa de narrativa a seguir a isto. O que é que a comunicação social vai fazer? Quando deixar de haver crise já não vai tratar disso, até que venha a próxima? É por essa razão que não temos uma vacina. A vacina para estes vários tipos de coronavírus esteve quase descoberta em 2016 mas como não havia crise as empresas acharam que não era rentável.
Uma última questão. Há pessoas que com a idade tendem a ficar mais acomodadas, ou mais conservadoras. No seu caso vemo-lo sempre inconformado. Também sente isso?
Sim, sinto isso. Acho que não tem tanto a ver com a idade. Trabalho muito com jovens, quer acadêmicos, quer dos movimentos e de organizações sociais, e muitas vezes são bons. Mas também vejo muito jovem prematuramente velho, com um certo ceticismo, um certo niilismo, um certo cinismo. Costumo dizer há muito tempo que sou um otimista trágico, isto é, recuso-me a deixar de ver alternativas, mas sou trágico no sentido em que sei quais são as dificuldades, e agora mais do que nunca. Tenho seguido essa linha e não tenho achado mal.
E é por isso que seu livro tem a palavra “utopia” no título?
Sim. A alternativa à utopia é a miopia. Quem não acreditar na utopia hoje é porque é míope. É porque não está a ver verdadeiramente. Pensa que a gente vai continuar a destruir o meio ambiente e a natureza, e que a natureza não nos vai mandar os pedagogos cruéis que são os novos vírus? Aliás, caracterizo o novo período como “período da pandemia intermitente”. Daqui em diante vamos estar confinados/desconfinados, confinados/desconfinados. O novo normal vai ser isso durante algum tempo.