A curva é uma inovação na dinâmica do percurso, um ralentando para atender à gravidade do momento. É movimento que se faz com uma sensibilidade a mais, na opção pelo olhar e atitude que atendam à complexidade da vida
Por Maria Cecília Domezi| Revista Vida Pastoral
Os devotos são sujeitos ativos e criativos no processo que, desde a “curva” da heterodoxia, ressignifica o ícone da Senhora da Conceição como a Aparecida no barro, nas águas e na fé. A imagem e o imaginário são recompostos e se enegrecem, enquanto a apropriação do batismo faz criar laços e recuperar a dignidade.
Mãe dos aflitos,empresta da imagem oficial a mediação permitida, Senhora da Conceição, mas vem nas redes dos pobres como sua Aparecida com a solidariedade de um novo modo de vida que vence todo escravismo, latifúndio e exclusão!
Introdução
Como pode uma imagem tão pequena atrair tanta gente, a ponto de a multidão dos romeiros se derramar de um santuário gigantesco? Mais que uma pergunta, essa era a exclamação de não poucos latino-americanos que, em maio de 2007, chegaram para a Conferência de Aparecida. Os corações se aqueciam ao pronunciar a expressão “imagem negra de Nossa Senhora Aparecida”, naquela feliz mistura da multidão dos peregrinos com os bispos, cardeais e demais participantes da V Conferência-Geral do episcopado do continente, a primeira realizada num local público, um santuário mariano de devoção popular.
Essa interação trouxe frutos bastante positivos. Em vários parágrafos dedicados à piedade popular, o Documento de Aparecida (DAp 258-265) reconhece sua autenticidade como espiritualidade cristã: “É uma espiritualidade encarnada na cultura dos simples, que nem por isso é menos espiritual, mas que o é de outra maneira” (DAp 263).
A grande força simbólica da pequenina imagem negra, no cenário das morenitas que representam a Virgem Maria em todo o continente, também inspirou um compromisso de solidariedade efetiva com os povos indígenas e afro-americanos, bem como com “outros” diferentes, aos quais se deve respeito e reconhecimento (DAp 88-89).
A interação com o povo romeiro ainda ajudou a enxergar os novos rostos da pobreza, bem como a alargar e aprofundar a opção pelos pobres. A missão foi entendida na perspectiva dos empobrecidos, dos excluídos, daqueles tratados como sobrantes e descartáveis, reconhecendo-se que sua eficácia passa pelo protagonismo da mulher. No entanto, ali estavam também aqueles que, “com seus medos e contrapontos, revelam quais os ‘pontos sensíveis’ ou os ‘terrenos minados’ no caminho da renovação conciliar e da tradição latino-americana” (BRIGHENTI, 2008, p. 28, 86-90). Entre eles, os que, atuando como censores em nome da ortodoxia, rejeitavam a palavra “imagem” e, mais ainda, o qualificativo “negra”.
Justamente ali está um ponto sensível, a outra maneira, própria para ser pensada desde o lugar da curva do rio e na perspectiva da inculturação do evangelho.
Na curva da heterodoxia
Uma curva não é um desvio da rota, como uma expressão heterodoxa da fé não é uma heresia. Trata-se da ortodoxia de outra maneira. A curva é uma inovação na dinâmica do percurso, um ralentando para atender à gravidade do momento. É movimento que se faz com uma sensibilidade a mais, na opção pelo olhar e atitude que atendam à complexidade da vida situada num lugar preciso e num particular momento da história.
Foi numa curva do rio Paraíba do Sul, próxima ao Porto de Itaguaçu, que trabalhadores da pesca encontraram, quebrada, uma pequena imagem da Senhora da Conceição. Poderia ser simplesmente o ícone da oficial patrona de Portugal com todos os seus domínios coloniais. Porém, a curva possibilitou que a terapia do barro, nas profundezas, sedimentasse a sua novidade, até que ela fosse alcançada por trabalhadores cuja fé interagia com sua luta diária.
Ao mesmo tempo, nas margens da sociedade e da religião oficial, uma diluição de fronteira entre o catolicismo obrigatório e as religiões afro-indígenas-brasileiras deu liberdade a uma relativa heterodoxia, a qual tornou possível uma circularidade entre a doutrina oficial e as expressões populares da fé cristã católica.
Assim, o signo recolhido do lodo, modificado, extrapolou o significado dado pelo poder colonial para abrir-se a uma viva ressignificação desde o universo dos colonizados. Por isso, ao crescente enegrecimento da imagem enquanto signo corresponde o enegrecimento da imagem enquanto significado.
Processo sofrido e denso tem sido esse. A simbólica dessa santa de um não lugar nasceu do pensamento e do coração dos situados à margem da oficialidade e dos poderes estabelecidos, reduzidos à condição de fracos, mas que se tornaram sujeitos atuantes e criativos no quadro da sua própria tradição. A imagem enquanto signo da Imaculada Conceição fora estabelecida hegemonicamente como “Nossa” Senhora, na formalidade das relações sociais desiguais e hierarquizadas da sociedade, deixando toda a força da ambiguidade da “Senhora” na fronteira entre a dona e a mãe compassiva. Essa foi a abençoada brecha para que as pessoas devotas, na vulnerabilidade em meio às situações difíceis da vida, passassem a apropriar-se da imagem e a recompor o seu significado, através do complexo dinamismo da cultura popular brasileira. Assim, seu grito, muitas vezes abafado, evidencia a intimidade com ela: “Minha Nossa Senhora Aparecida!” (DOMEZI, 2016, p. 157 e 248).
De fato, debaixo da violência do poder da hierarquia da sociedade brasileira, constituído em fundamentos frágeis, por regras frouxas e noções prenhes de dupla significação, já não há obediência que não seja acompanhada de uma disposição de rebeldia. E a “falha escondida” da ambiguidade, marca típica do catolicismo e da cultura popular brasileira, torna-se favorável aos relegados à periferia da sociedade e da Igreja (FERNANDES, 1994, p. 117).
Esse é o modo como, no Brasil, a Mãe de Jesus se tornou Nossa Senhora Aparecida e entrou no coração de um incontável número de pessoas devotas. A fé dos sofredores proveu sentido ao seu aparecimento através do ícone emprestado da Senhora da Conceição, na curvatura de uma fértil heterodoxia a serviço da redenção e da libertação dos cativos.
Dia após dia, os pobres, excluídos e sofredores vão construindo o simbolismo de Nossa Senhora Aparecida e do seu santuário, num processo que, desde a experiência de fé cristã das escravas e dos escravos negros, passa por tropeiros explorados, mulheres submetidas e violentadas, índios reduzidos à minoria e condenados à fome, trabalhadores e trabalhadoras explorados, gente excluída e abandonada.
No entanto, entre as multidões de pessoas devotas de Maria representada nos ícones das Virgens morenas da América Latina, aprofunda-se dia a dia a consciência e corresponsabilidade como membros do Povo de Deus. Sua presença constante, inserida no universo da paixão de Cristo, é da Mãe da compaixão, da grande mediadora entre os seus filhos sofredores e Deus. E, no Brasil, invocá-la como “minha Nossa Senhora” significa unir respeito e intimidade (BOFF, C., 1995, p. 15-16, 111).
Pode-se entender, então, a força de atrair, congregar e animar, sentida através da pequenina imagem negra que está na Basílica de Aparecida. Ali está o ícone do povo oprimido e libertador que, encontrado por pescadores pobres num ambiente de forte tensão social, assumiu a cor da etnia mais desprezada e logo sinalizou o milagre da libertação dos escravos. E seu culto, iniciado e propagado por pessoas leigas, pobres, humildes e anônimas, vai ganhando vigor e comprometimento na luta pela justiça. É o que evidenciam as romarias dos trabalhadores, realizadas a cada ano (Ibid., p. 38-43).
Aparecida no barro, nas águas e na fé
A Palavra de Deus abraça a mediação de belíssimas narrativas da criação. Diz ela que, quando ainda era o caos, e as trevas cobriam o abismo, o sopro de Deus pairava sobre as águas (Gênesis 1,2). E nos apresenta Deus Criador como um oleiro e escultor que, pegando o pó da terra, modela com suas mãos o ser humano e nele imprime o seu sopro de vida (Gênesis 2,7).
Do pó da terra também foi feita a imagem da Senhora da Conceição que se tornaria a Aparecida. Um monge beneditino, muito provavelmente frei Agostinho de Jesus, esculpiu-a em terracota paulista, barro de coloração imprevisível que, ao ser queimado, pode resultar em rosa ou cinza. A escultura ficou acinzentada. Ele teve de cromá-la nas cores oficiais seguindo as determinações do rei de Portugal. Mas inovou a escultura, deixando a imagem mais parecida com as mulheres brasileiras em sua labuta diária: os lábios com um leve sorriso, covinha no queixo, o penteado longo e solto, flores nos cabelos e na testa e um porte que podemos chamar “de cabeça erguida” (cf. BRUSTOLONI, 1998, p. 18, 21-23 e 50).
Ao emergir das águas em dois pedaços, a escultura com cabeça decepada, enlameada e enegrecida permitia que se auscultasse a revelação divina através dos sinais dos tempos. Deus se revelava à humanidade, e com uma inusitada linguagem, naquele tempo de crueldade sem limites na exploração de pessoas negras escravizadas nos subterrâneos da mineração. Nessa febre do ouro estava o bandeirante apelidado pelos nativos de anhanguera, ameaçando devorar o rio com fogo enquanto os iludia com queima de álcool em cima da água. Ao contrário, a imagem de Nossa Senhora traz toda a verdade do Deus da vida. Ela aparece suavemente e, na sua fragilidade, revela toda a força da salvação divina que opera na história; faz a vida em abundância emergir das águas propiciando a pesca milagrosa; legitima o processo de libertação integral.
Não devemos esquecer, porém, a dura realidade na qual a Mãe do Redentor aponta novo sopro de vida. Como explica Darcy Ribeiro, o povo brasileiro nasceu deformado e condenado ao desarranjo por causa da quebra de laços familiares, culturais, étnicos e religiosos, além de outras tantas formas de violência. O povo teve de se enveredar num tortuoso caminho para buscar coesão no plano emocional, restando a ambiguidade como único espaço para a afirmação da identidade étnica (RIBEIRO, 1995, p. 131-132).
As águas do batismo foram o precioso recurso para a recomposição de laços, apesar da absurda contradição do sistema colonial de associar sua marca indelével da graça e da libertação em Cristo à marca da escravidão e da desgraça. Ocorre que os escravizados e colonizados apropriaram-se desse sacramento no sentido de recuperação da sua dignidade humana e de acesso à cidadania. À maneira da colagem dos pedaços da imagem da Aparecida, desde logo foram criando novos laços de compadrio e vizinhança, reinventando a sociabilidade e a fraternidade através das festas de santo, das irmandades e das confrarias leigas.
É preciso continuar e sempre atualizar o processo sinalizado pelos pescadores que recolheram a imagem há trezentos anos. Através de redes de solidariedade, temos de recolher com respeito o corpo machucado e caótico do povo brasileiro para curar as feridas e construir a cidadania. Unir cabeça e corpo é integrar trabalho e política, fazer a fé interagir com a práxis de transformação da sociedade, estabelecer igual dignidade para todas as pessoas. É não mais permitir que pessoas sejam tratadas como meros braçais e corpos a serem abusados. É instaurar um efetivo reconhecimento das mulheres como capazes de pensar, dirigir, governar.
Negra Mariama chama
Negra Mariama, chama pra lutar
em nossos movimentos sem desanimar.
Levanta a cabeça dos espoliados.
Nossa Companheira, chama pra avançar!
O conceito da Negra Mariama referente a Nossa Senhora Aparecida foi introduzido por dom Helder Camara, em sua Invocação a Mariama, ao final da Missa dos Quilombos, que foi celebrada em Recife no dia 22 de novembro de 1981 (CEP – Peru, 1986, p. 121-122). Era uma tentativa de chamá-la com um nome afro-brasileiro. Pode-se ver que a ênfase em sua negritude acompanha a abertura da Boa-Nova de Jesus à inculturação.
O achado da imagem de Aparecida ocorreu 186 anos depois da aparição da Virgem de Guadalupe, no México. Naqueles primórdios da colonização espanhola, quando a devastação e o massacre sofridos pelo império asteca deixaram os sobreviventes num sentimento de indescritível orfandade, a janela aberta para aderir de coração ao cristianismo obrigatório foi o imaginário da deusa mãe Tonantzin, persistente e vivo nas ruínas do seu santuário no morro do Tepeyac. Desde lá se evidencia que, no dinamismo das ricas culturas dos povos oprimidos e empobrecidos da América Latina e do Caribe, a adesão ao cristianismo se vem fazendo por outras chaves. Por isso, nas imagens de Maria predomina a explicitação da mestiçagem, acentuando-se os traços das etnias dos nativos, apelidados de “índios”, bem como dos africanos e de seus descendentes.
Foi na grande proximidade com a Mãe da Compaixão, Nossa Senhora, que os povos deste continente abraçaram de coração a fé cristã. A adesão da fé viva se faz através de uma reciclagem de destroços, bricolagem de significados e recuperação da dignidade de suas ricas culturas.
Contudo, a dor por causa do racismo continua pungente, inclusive a do racismo silencioso e disfarçado numa reivindicação de universalidade e igualdade de leis. Também persistem múltiplas formas de escravidão. E, na escala das discriminações e exclusões de todo tipo, o peso da opressão e da humilhação tem seu extremo na mulher negra e pobre. Além disso, com frequência vemos terreiros e templos de religiões afro-brasileiras sendo invadidos e profanados, e suas imagens destruídas. Não se atenta para o fato de que a imagem de Nossa Senhora Aparecida está presente e é cultuada também por fiéis de outras religiões. É claro que ela nos chama à tolerância, ao ecumenismo entre as Igrejas cristãs e ao diálogo entre as religiões. É aí que os olhos da fé dos oprimidos veem Maria aparecer como Mariama, sinal do Deus que liberta e salva sem discriminar ninguém.
Conclusão
O papa Francisco nos diz que Maria é modelo para a evangelização porque ela está na dinâmica da justiça, da ternura, da contemplação e do caminho para os outros. Ela é a mulher orante e trabalhadora de Nazaré e, ao mesmo tempo, a Nossa Senhora da prontidão, que sai às pressas do seu povoado para ir ajudar os outros. Ela nos mostra a força revolucionária da ternura e do afeto, ao mesmo tempo em que parte para a busca da justiça em favor dos pobres, como entoa em seu “Magnificat” (Evangelii Gaudium, n. 288).
A Negra Mariama da curva do rio e das margens do poder patriarcal estabelecido é aquela que canta o Magnificat. No Documento de Aparecida lemos:
A figura de Maria, discípula por excelência entre discípulos, é fundamental na recuperação da identidade da mulher e de seu valor na Igreja. O canto do Magnificat mostra Maria como mulher capaz de se comprometer com sua realidade e diante dela ter voz profética (DAp 451).
Ela continua chamando a todos e todas para o encontro com Deus maternalmente Pai. E nós continuamos a lhe pedir:
Aparece nos pedaços da história dos oprimidos, no juntar cabeça e corpo, trabalho e cidadania, na fé que ultrapassa o caos reciclando o imaginário, nas mulheres que lideram para um novo itinerário. Nossa Mãe Aparecida, aparece a cada dia!
Bibliografia
BOFF, C. Maria na cultura brasileira: Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1995.
BRIGHENTI, A. Para compreender o Documento de Aparecida: o pré-texto, o com-texto e o texto. São Paulo: Paulus, 2008.
BRUSTOLONI, J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias. 10. ed. rev. e ampl. Aparecida, SP: Santuário, 1998.
CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência-Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus/Paulinas; Brasília: CNBB, 2007.
CEP – Centro de Estudos e Publicações – Peru. Sinais de vida e fidelidade: testemunhos da Igreja na América Latina (1978 – 1972). São Paulo: Paulinas, 1986.
DOMEZI, M. C. O DNA religioso das CEBs: entre visão mítica e consciência histórica. Saarbrücken, Deutschland: Novas Edições Acadêmicas, 2016.
FERNANDES, R. C. Romarias da Paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium: A Alegria do Evangelho. Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Maria Cecília Domezi - Paulista de Jaú, é doutora em Ciências da Religião, com mestrados em Teologia e História Social. Além do trabalho acadêmico e de diversas publicações, principalmente em história do cristianismo e história das religiões, tem experiência de trabalho pastoral com as comunidades eclesiais de base.
E-mail: cecidomezi@uol.com.br
Artigo publicado orginalmente na Revista Vida Pastoral, em maio – junho de 2017 - ano 58 - número 315