A Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB e o Conselho Nacional do Laicato do Brasil, preocupados com o momento atual do país, expressam sua indignação e convocam à ação coletiva, pacífica e organizada, em defesa da vida das pessoas e dos biomas, visto que vivemos um processo de forte ampliação das injustiças e desigualdades sociais, que nos faz lembrar os sábios ensinamentos: “aquele que oprime o pobre censura o seu Criador, mas aquele que O honra tem misericórdia dos necessitados” (Provérbios 14,31).
A pandemia da Covid-19 nos trouxe mais próxima a certeza de que algo nos antecede e nos une profundamente. A solidariedade e a fraternidade seriam o caminho a ser descoberto pelo mundo na crise. Porém, temos visto a desigualdade aumentar: enquanto os muito pobres caminham para a fome e a miséria, os muito ricos ficaram muito mais abastados à custa da vida dos demais. Nos EUA, 643 pessoas aumentaram suas fortunas em R$ 4 trilhões e 723 bilhões entre março e setembro. No Brasil não foi diferente: a fortuna dos mais bilionários aumentou R$ 177 bilhões entre março e julho.
Nos últimos quatro anos está havendo um processo de regressão da economia brasileira. Somente no último ano, milhares de pequenas empresas, as que mais empregam, fecharam suas portas. A justificativa para o pacote de ajuda de R$ 1,2 trilhão aos bancos foi a necessidade de aumentar o volume de dinheiro disponível dessas instituições financeiras, de modo que elas pudessem ampliar as linhas de crédito para empresas e reduzir os juros. No entanto, o que se verificou na prática foi o contrário: os empréstimos para as empresas se tornaram ainda mais difíceis e os juros quase dobraram. Sem recursos, milhares de empresas, principalmente as pequenas e médias, demitiram seus empregados e até faliram. Nossa indústria vem diminuindo e sendo substituída por importados. Empresas estratégicas para o desenvolvimento e a soberania nacionais estão sendo vendidas. O país deixou de ser referência internacional em áreas de tecnologias estratégicas e caminha rapidamente para voltar a ser uma economia dependente, cada vez mais de agrário-exportadora de matérias primas.
A PNAD Contínua do IBGE[1] mostrou, por meio das informações obtidas até julho de 2020, que no primeiro semestre foram fechados 11,5 milhões de postos de trabalho. Em agosto, pesquisa do IBGE registrou aumento de 27,6% no desemprego a partir de março e apontou a existência de 40,1 milhões de desempregados no Brasil – soma de 12,9 milhões que estavam procurando emprego e 27,2 milhões que gostariam de trabalhar, mas não tinham procurado emprego naquela semana. Nunca o país esteve nessa situação. Pela primeira vez na história, mais da metade da população trabalhadora está desempregada ou submetida a relações de trabalho próximas da escravidão, sem direitos e sem futuro. Por isso, apesar de deter grandes riquezas, o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo. A fome retorna ao país que está entre os que mais exportam grãos!
“Para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha” anunciou o Papa Francisco no Dia Mundial da Alimentação. No Brasil, as filas dos que suplicam por um prato de comida crescem nas grandes cidades. Em vez de buscar a equidade e a garantia de direitos que levem à segurança alimentar, os governantes preferem o oposto, embrenhando-se no caminho da monocultura e dos agrotóxicos. Em vez de apoiar a agricultura familiar e os métodos da agroecologia, governos transferem recursos para quem destrói o meio ambiente, queima florestas e reduz a vida.
Revivendo a cultura de opressão que se expandiu na Europa um século atrás, com o aparecimento de ideologias fascistas, na sociedade brasileira cresce o apoio ao aprisionamento da criatividade, da diversidade e da liberdade das crianças e jovens em modelos educacionais que primam pela obediência obtida pela disciplina e pelo culto de caráter fundamentalista, imposto pelas escolas cívico-militares, que se implantam às centenas no Brasil. Na Europa, esse caminho levou ao holocausto, ao extermínio e à destruição. A contaminação de setores sociais por ideologias totalitárias, autoritárias e cultuadoras de ilusórias prosperidades centradas no dinheiro é prática difundida por instituições do Estado e por igrejas. Nesse terreno não crescerá planta sã.
A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para o crime organizado. Com efeito, ele se impõe, apresentando-se como «protetor» dos esquecidos, muitas vezes por meio de vários tipos de ajuda, enquanto persegue os seus interesses criminosos. Há uma pedagogia tipicamente mafiosa que, com um falso espírito comunitário, cria laços de dependência e subordinação, dos quais é muito difícil libertar-se. (Papa Francisco, Fratelli Tutti, 28)
Cresce o crime organizado, o feminicídio atingiu níveis insuportáveis e o assassinato de jovens negros e pobres é absurdo. Pesquisadores da UFF e da USP divulgaram recentemente estudos que comprovam que “as milícias cariocas já controlam 25,5% dos bairros do Rio de Janeiro, em um total de 57,5% do território da cidade. E três facções do tráfico de drogas possuem juntas o domínio de outros 34,2% dos bairros e 15,4% do território” (El País, 19/10/20). A violência crescente alimenta o racismo presente na sociedade brutalmente desigual. A taxa de homicídios de negros saltou de 34 para 37,8 por 100 mil entre 2008 e 2018, um aumento de 11,5%. Já os assassinatos de não-negros registrou uma queda de 12,9%. O Atlas da Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que 75,7% das vítimas de homicídios são pessoas negras, sendo a maioria dessas mortes provocadas por policiais. Extermínio causado pelo Estado.
Muitas vezes constata-se que, de fato, os direitos humanos não são iguais para todos. O respeito destes direitos “é condição preliminar para o próprio progresso econômico e social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum”. (Papa Francisco, Fratelli Tutti, 22)
Essa mesma violência que se espraia nas cidades ocorre nas “fronteiras agrícolas” da Amazônia Legal, do Pantanal e dos cerrados. O que vemos crescerem hoje são os incêndios e a destruição de grandes áreas de matas e cerrados, provocados por fazendeiros e grileiros, bem como os assassinatos de lideranças de trabalhadores rurais, dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, garimpos e extração de madeira em vastas áreas indígenas e de proteção ambiental. O mundo assiste horrorizado à destruição de florestas e biomas essenciais ao planeta. O governo federal não atua de forma consequente para conter esse processo; ao contrário, seus pronunciamentos e omissões funcionam como incentivo aos malfeitores.
Enquanto outros países levantam a proposta de quebra temporária das patentes de todas as tecnologias de saúde necessárias ao enfrentamento da pandemia da Covid-19, incluindo as vacinas, o Brasil está alheio a essa discussão e caminha em sentido oposto ao resto do mundo. Mais preocupado em afastar qualquer investigação sobre a corrupção, o governo federal prefere defender a não obrigatoriedade da vacina ou desarticular a sua compra em conjunto com os governos estaduais.
Em vez de procurar a promoção da vida como horizonte, o governo federal procura o sinal da morte, da guerra e da destruição. A nova política externa, de alinhamento incondicional aos EUA, rompe com a tradição secular pacifista do Brasil ao mobilizar as Forças Armadas em exercícios de guerra para ameaçar vizinhos de fronteira. Em vez de liberar recursos para a saúde do povo, o governo gasta milhões de reais em improdutivos exercícios de guerra.
O Papa Francisco nos ensina que:
Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos nos constituirmos como um “nós” que habita a casa comum. Tal cuidado não interessa aos poderes econômicos que necessitam dum ganho rápido. Frequentemente as vozes que se levantam em defesa do ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares. (Fratelli Tutti, 17)
Precisamos retornar ao caminho indicado pela Constituição de 1988, produzindo meios para a superação das desigualdades sociais e regionais, de maneira a por fim à miséria e à fome e, assim, resgatar a dignidade dos povos originários e do povo em situação de pobreza e de desigualdade. Há que se recriar a esperança no futuro para os que estão desempregados e explorados no trabalho degradante. Dessa forma, estaremos glorificando nosso mestre Jesus: “O ladrão vem somente para roubar, matar, e para destruir; Eu vim para que tenham vida, e vida em abundância” (João 10, 10).
É hora de conclamarmos as pessoas de boa vontade, as organizações da sociedade civil, todos que cultuam a vida, a justiça e a paz a uma jornada única em defesa do meio ambiente, dos direitos humanos e sociais ameaçados no Brasil. Vamos nos inspirar e reforçar a voz profética dos 152 bispos signatários da “Carta ao Povo de Deus” e da CNBB, com o manifesto coletivo “Pacto pela Vida e pelo Brasil”. É urgente agir e mobilizar o povo em favor da democracia, da liberdade e do respeito à vida.
Brasília (DF), 26 de outubro de 2020.
Por:
Daniel Seidel, Secretário Executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz
Sônia de Oliveira, Presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil
[1] A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua visa acompanhar as flutuações trimestrais e a evolução, no curto, médio e longo prazos, da força de trabalho, e outras informações necessárias para o estudo do desenvolvimento socioeconômico do País.