"Se e quando forem chamados à urna no processo eleitoral, em lugar de poder escolher os seus representantes, os pobres devem votar naqueles que já foram previamente selecionados pela força bruta da riqueza", escreve padre Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço a Pastoral do Migrante (SPM) – Rio de Janeiro.
Eis o artigo, publicado no IHU
Liberalismo econômico e democracia parecem, por natureza, duas forças incompatíveis. O liberalismo pressupõe uma luta brutal e sem trégua, traduzida em termos de competição ou de concorrência. Aplica-se à economia política a lei da seleção natural, elaborada pela teoria de Charles Darwin. A minoria dos mais poderosos entram no campo de batalha para eliminar ou neutralizar a maioria dos mais fracos. Trata-se de uma corrida desleal e desigual, em que as pernas desses últimos foram de antemão quebradas. Disputa de cartas marcadas! Talvez a imagem mais significativa seja aquela de tubarões e sardinhas dentro do mesmo tanque.
Já a democracia presume igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. As oportunidades podem ser desperdiçadas no transcorrer do percurso, é bem verdade, mas no ponto de partida é assegurada a cada pessoa uma fatia équa do bolo a ser distribuído. Bolo que, na lógica liberal, costuma ser produzido pelas mãos dos trabalhadores, porém, ao mesmo tempo, apropriado por aqueles que dominam os mecanismos de acumulação do capital. Em outras palavras, enquanto o bônus acaba privatizado por um punhado de milionários e bilionários, o ônus é coletivizado pela população. Em lugar do bem-estar de todos, a massa paga o luxo da elite.
Verdade que teóricos como Adam Smith acreditavam que, no jogo da oferta e da procura, uma espécie de “mão invisível” haveria de regular o mercado, evitando naturalmente os extremos. Mas esse milagre nunca passou de pura aparência. Ao contrário, quando os empresários ou os investidores se defrontam com um ambiente positivo e favorável aos seus negócios – tempo de vacas gordas – prevalece a lei nua e crua, férrea e brutal da concorrência, por mais desleal que ela venha a se revelar. O mercado deve ser deixado ao jogo do “laissez faire”, o Estado deve se encolher, e as sardinhas serão irremediavelmente devoradas pelos tubarões.
Não vale, entretanto, o inverso. Ou seja, quando os mesmos empresários ou os investidores se defrontam com um ambiente negativo, hostil e desfavorável aos seus negócios – tempo de vacas magras – a lei de mercado perde sua validade. A “mão invisível” passa a ser incômoda, o Estado é chamado em socorro dos empreendedores. Entram em campo conceitos como protecionismo, taxas alfandegárias, subvenção, salvação do sistema financeiro e coisas do gênero. O governo de plantão costuma então ignorar as políticas públicas que protegem as sardinhas, usando os cofres para evitar que os tubarões pereçam no vórtice do redemoinho.
Dois pesos e duas medidas! Disso resulta que, no fim das contas, para os que dispõem do poder e da renda, não há tempo de vacas magras. De uma forma ou de outra, pela mão da natureza ou pela mão larga do Estado, encontram-se ao abrigo das tempestades. Crises, tormentas e falências encontram-se fora de seu horizonte. E inversamente, para os que vivem do próprio suor e do salário, não há tempo de vacas gordas. De uma forma ou de outra, pela apropriação privada do fruto do trabalho ou pela privação do socorro estatal, sempre terão de pagar a conta. Pagam-na com desconto na fonte, através de rendimentos salariais abaixo das necessidades básicas; ou pagam-na pelo abandono à própria sorte por parte do Estado. Por conta disso, batem à porta o desemprego e o subemprego, a pobreza e a miséria, a carência e a fome. Em casos extremos, como no decorrer da pandemia Covid-19, sobrevém a magra esmola do “auxílio emergencial”, cuja terminologia atesta sua exceção.
Se e quando forem chamados à urna no processo eleitoral, em lugar de poder escolher os seus representantes, os pobres devem votar naqueles que já foram previamente selecionados pela força bruta da riqueza. Neste caso sim, não seria exagerado falar de uma “mão invisível” que aponta o dedo para os rostos, os nomes e os números que, dadas as condições econômicas, sociais e políticas, podem arcar com os gastos vultosos de uma campanha eleitoral. Fecha-se assim o círculo: o poder abre portas para novos atalhos que levam ao aumento da riqueza, e esta, por sua vez, ergue a escada que conduz ao poder.