A filósofa Déborah Danowski foi a entrevistada especial da edição Prospectiva 2021 e traz suas reflexões sobre este cenário. A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 06-01-2020 e compartilhada no site IHU
Começa o ano em que, enquanto não sabemos se a vacina chegará ao Brasil, os proprietários deste combalido território tratarão de construir seu bolsonarismo sem Bolsonaro. Para além do tempo em que o capitão se sustentará na presidência, ficam as “reformas” a gosto dos grandes capitalistas e seus representantes político-midiáticos, com todo o arranjo autoritário inerente a esta fase de acumulação de terra, recursos e riqueza. A política mais velha e apodrecida de troca de favores e recursos será lustrada como “moderação” e “sensatez”, enquanto os cenários socioeconômicos se anunciam trágicos.
O tratamento de grandes desastres ambientais e assaltos aos biomas e áreas de preservação será o mais “neutro” possível, enquanto a disparada dos preços internos, da inflação e do dólar pouco ou nada preocupará a República rentista, que alegará a necessidade de vender (a preços de fim de feira) o que ainda resta de ativo público e estatal como solução fiscal.
O SUS e seus profissionais serão explorados e exigidos além de seus limites enquanto os sacerdotes da economia continuarão a adorar seu totem sagrado do teto de gastos não financeiros (porque é bom lembrar que para gastos financeiros não há teto). Como garantia desse perfil de “negócios”, a fascistização definitiva do capitalismo, em escala local e global.
“Não creio que haja irreversibilidade (de fascistização) no que diz respeito à sociedade e à política, muito menos em relação ao capitalismo neoliberal. Embora seja difícil evitar o pessimismo nos dias de hoje, guardo em mim uma réstia de esperança quando lembro que existem outros modos de vidas e de pensamento, que resistem permanentemente ao fascismo. Há também resiliência e resistência por parte das outras formas de vida e do mundo não humano de maneira geral. Por isso mesmo não podemos parar de lutar”.
Na entrevista, Déborah lamenta o quanto rebaixamos nossos sonhos e expectativas, afinal, se 2021 não for ainda pior que 2020 já nos sentiremos no lucro. Enquanto o presidente de perfil nazifascista continua em sua voragem destrutiva e achacadora, com sua má fé sistemática e declarações de comandante que abandona o barco antes de tirar os passageiros, aqueles que não arredam pé do poder pedem mais e mais. E tratam de organizar os assaltos vindouros a despeito do gerente da vez, já que Temer, Bolsonaro e qualquer outro podem e devem ser descartados assim que o serviço estiver concluído.
“Se tiver um Guedes um pouco mais inteligente, um Mourão um pouco menos bruto, tudo bem, pronto. Enfim, alguém com a cara da Globo: um pouco mais progressista nos costumes, que não seja tão negacionista em relação à ciência, que faça uns discursos politicamente corretos em momentos pertinentes (não sempre), mas sobretudo que faça passarem as reformas econômicas, trazendo de volta os ‘investidores’ internacionais, segurando a inflação, acalmando o mercado. Feito isso, mundo que segue”.
Dessa forma, a filósofa e professora da PUC-Rio afirma que não há opções exceto lutar – e permanentemente – por um “mundo onde caibam todos os mundos”, humanos e não humanos.
“A coisa mais avassaladora que temos pela frente, que não exclui, que inclui e acirra todos os outros problemas, é a crise ecológica, a mudança climática decorrente da queima de combustíveis fósseis, o desmatamento, a queima de florestas para especulação ou para a criação de gado e produção de commodities, a poluição por plásticos, agrotóxicos e outros produtos, a mineração, a pesca predatória... Teremos que combater nesses campos, também porque é neles que o capitalismo se apoia para se reproduzir: o trabalho barato, a extração de matéria prima barata, os ‘serviços ambientais’ (detesto esse nome) prestados por outros seres vivos... Este é o ponto fraco do capitalismo, a acumulação primitiva, porque ele não se sustenta sem essa interação que ele oculta, mas que está sempre presente. Não se sustenta sem beber nas fontes aparentemente externas ao próprio capitalismo. A pandemia fez com que prestássemos mais atenção a tudo isso”, explicou.
Eis a entrevista.
Em uma entrevista sua à Agência Pública, ainda no início da pandemia do novo Coronavirus, você afirmou que estamos rumando para “um mundo onde não caberiam todos os mundos”. Diante do quadro geral em que entramos em 2021, a relação dos governos e do tecido social com a pandemia, o agravamento da crise social e ambiental, é possível vislumbrar um ano minimamente suportável ou devemos nos preparar para um tempo maior, talvez incalculável, de variadas formas de sofrimento?
É curioso que essa formulação, “um mundo onde não caberiam todos os mundos”, é um pouco diferente daquela que usei na entrevista à Pública, mas igualmente correta, e talvez até previna um mal entendido gerado pela frase anterior, “não tem mais mundo para todo mundo”, que acabou virando a manchete da entrevista. Acontece que algumas pessoas só leram o título, e pelo título presumiram que eu estivesse assumindo uma espécie de teoria do bote salva-vidas, um neomaltusianismo, segundo o qual não cabe todo mundo no mundo, que o mundo não suporta mais tanta gente e, portanto, alguns (os mais pobres, naturalmente) precisariam ser eliminados ou algo assim. Na verdade, eu estava falando, de forma crítica, do abandono descarado daquilo que até pouco tempo atrás era apresentado como o objetivo nobre do chamado projeto de globalização, ou seja, a distribuição da modernidade e da prosperidade a todos.
Hoje, os governos de extrema-direita no mundo todo (e o bolsonarismo é um excelente exemplo disso) acham que podem reservar um “mundo” para alguns poucos, um mundo-bunker, e os outros que se danem. Não percebem que, mesmo para eles, só é possível haver mundo, ou pelo menos um mundo não completamente devastado e inóspito, se nele couberem todos os outros mundos. Foi isso que eu quis dizer.
Sobre a possibilidade de termos um ano minimamente suportável, eu li há poucos dias um artigo de Zeynep Tufecki, no The Atlantic, que dizia que essa variante do novo coronavírus que já está circulando, inclusive no Brasil, e aparentemente é 50 a 70% mais contagiosa, embora não mais letal, pode ser uma verdadeira bomba-relógio. Basicamente, o artigo mostra, baseado em alguns estudos recentes, que uma maior capacidade de contágio chega a ser muito pior que uma maior letalidade, ocasionando uma rápida explosão no número de mortes. Diante dessa possibilidade, a autora alerta que devemos apressar ao máximo a vacinação, sem perder tempo.
Tudo isso para dizer que 2021 pode ser um pouco melhor ou bem pior que 2021. Não arrisco prever, a esta altura. Pode vir a ser mais suportável ou mais insuportável. É curioso que todo mundo está usando esses termos mínimos, “um ano mais leve”, “mais suportável”, “um pouco mais alegre”... Diminuímos bem nossas expectativas. Vê-se como tudo é relativo neste mundo.
Enfim, além desses fatores externos à sociedade (mutações do vírus etc.), é importante dizer que 2021 pode ser um ano melhor se o governo deixar de fazer seus absurdos, incentivando aglomerações e bloqueando a liberação das vacinas, a compra de seringas, agulhas etc. E se as clínicas privadas não “roubarem” (i.e. não comprarem na frente) a vacina pública. Agora, imagine se ainda não houvesse a perspectiva da vacina, coisa que poderia perfeitamente ter acontecido. Qual seria nosso estado emocional e físico diante de mais um ano sem perspectivas? Sem contar que, é claro, tudo está sendo especialmente duro (e muitas vezes mortífero) para aqueles que não podem deixar de trabalhar, de pegar transporte público, aqueles que sustentam o isolamento dos que podem se dar ao luxo de se isolar. Está sendo muito duro também para as crianças e os jovens viver em isolamento, e para os idosos, sem contar o pessoal da saúde, claro. Não é à toa que estamos usando termos tão cautelosos para falar do que pode vir a ser 2021.
Estará o capitalismo em uma via irreversível de fascistização, independentemente de como se nomeiem os diversos sistemas políticos-institucionais que permitem a realização de seus interesses?
Essa é uma possibilidade que já vemos se realizar pelo mundo. É evidente a militarização e o aumento da presença e da violência policial – sendo que as polícias no mundo inteiro se parecem cada vez mais umas com as outras, com seus uniformes e aparatos pesados. É evidente também o aumento da vigilância pelo Estado, seja por meio de câmeras instaladas nas cidades ou pela internet e redes sociais. Assim, num certo sentido, isso é mais que uma possibilidade, é uma realidade. E as ficções distópicas são muito úteis para nos ajudar a pensar e imaginar futuros que aprofundem ainda mais este processo de fascistização. Mas irreversibilidade é algo diferente, e não estou muito certa se eu usaria esse termo.
Quando falamos de aquecimento global, as ciências do clima nos mostram que ele já é em certo grau irreversível, embora as coisas possam piorar menos ou mais no futuro. Grande parte dos gases de efeito estufa já liberados na atmosfera se acumulam nos chamados sumidouros do sistema climático, como os mantos de gelo, os solos e as florestas, e essa energia acumulada vai se manifestar de forma inevitável em algum momento. Quase todas as coberturas de gelo do planeta já estão derretendo e sofrendo outras transformações (como mudança na densidade e consistência do gelo). Há um ponto de não-retorno, que nunca podemos determinar com precisão antes de acontecer, e a partir do qual esses sumidouros não conseguem mais absorver calor e passam a ser emissores. São mecanismos que não dá pra fazer voltar atrás. Mesmo que se invente uma tecnologia boa e barata de retirar carbono da atmosfera, termodinamicamente não dá pra desfazer o estrago, no máximo diminuí-lo e atrasá-lo. Outros exemplos de parâmetros irreversíveis são a destruição das florestas (a floresta Amazônica, por exemplo, está muito perto de atingir esse limiar em que não conseguirá mais se recompor e irá se transformar em savana), a extinção de espécies e a diminuição da biodiversidade, a extenuação dos solos férteis.
Portanto, resumindo, não creio que haja irreversibilidade no que diz respeito à sociedade e à política, muito menos em relação ao capitalismo neoliberal. Embora seja difícil evitar o pessimismo nos dias de hoje, guardo em mim uma réstia de esperança quando lembro que existem outros modos de vidas e de pensamento, que resistem permanentemente ao fascismo. Há também resiliência e resistência por parte das outras formas de vida e do mundo não humano de maneira geral.
Por isso mesmo não podemos parar de lutar. Se se tratasse de um caso perdido, poderíamos largar tudo de mão, nos esconder no meio do mato, viver enquanto podemos nossa própria vida e esquecer o resto. Mas há tanta coisa acontecendo além dessa tendência fascista atual e da devastação causada por pequena parte de nossa espécie. Por pior que seja a situação (e a pandemia é só um prelúdio do quanto as coisas podem ficar piores), temos muito a aprender. E muitas surpresas pela frente. Por isso as lutas terão de ser perpétuas. É difícil, perigoso e cansativo, mas um mundo vivo é assim.
O que devemos fazer para avançar na construção de um “mundo onde caibam todos os mundos”? Quais seriam as noções essenciais disso?
Essa é a pergunta mais difícil, pois há tanto a fazer e, ao mesmo tempo, tudo que fazemos parece, ou não surtir efeito ou ser desfeito e destruído em seguida. A pandemia é nossa questão mais imediata e premente, mas pensemos em como ela tem deixado evidente, e mesmo acirrado, outros problemas enormes, como as injustiças, as desigualdades, o racismo, a ganância, o negacionismo e a indiferença para com a morte alheia. Porém, nem a pandemia nem todas essas desgraças podem hoje ser separadas do colapso ecológico. Se você for lá nos relatórios do IPCC, vai ver que os cenários futuros falam de tudo isso. Teremos cada vez mais pandemias por conta do modo como vivemos, comemos, nos locomovemos, por causa da grande agroindústria, da mineração, enfim, de tudo aquilo que é destrutivo para os outros mundos. Cada um desses pontos é suficientemente grave para se tornar uma questão pertinente que requer nosso envolvimento, mas somados podem ser entendidos como partes do mesmo conjunto, o Antropoceno.
Portanto, a coisa mais avassaladora que temos pela frente, que não exclui, que inclui e acirra todos os outros problemas, é a crise ecológica, a mudança climática decorrente da queima de combustíveis fósseis, o desmatamento, a queima de florestas para especulação ou para a criação de gado e produção de commodities, a poluição por plásticos, agrotóxicos e outros produtos, a mineração, a pesca predatória... Teremos que combater nesses campos, também porque é neles que o capitalismo se apoia para se reproduzir: o trabalho barato, a extração de matéria prima barata, os “serviços ambientais” (detesto esse nome) prestados por outros seres vivos... Este é o ponto fraco do capitalismo, a acumulação primitiva, porque ele não se sustenta sem essa interação que ele oculta, mas que está sempre presente. Não se sustenta sem beber nas fontes aparentemente externas ao próprio capitalismo.
A pandemia fez com que prestássemos mais atenção a tudo isso. Percebemos, por exemplo, que dependemos profundamente de nossa relação com o não humano. O próprio vírus é uma forma de vida. Na verdade há diferentes teorias sobre isso, se os vírus são vivos ou não, mas de todo modo eles, como as bactérias e outros seres microscópicos, ao mesmo tempo são outros que nós e inseparáveis de nós. O que seríamos, o que seriam nossos corpos sem esses outros existentes que às vezes são tão perigosos? Sem eles nem estaríamos aqui.
Há, portanto, todo um solo e um subsolo que nos mantêm vivos, individualmente e coletivamente, e aos quais talvez tenhamos nos tornado um pouco mais sensíveis com a pandemia. É uma grande lição, e teremos mais sorte no futuro se aprendermos alguma coisa com ela.
Outros dois pontos que retomo para acabar de responder à sua pergunta: primeiro, a necessidade de fortalecermos as relações sociais, os coletivos e grupos independentes que vêm se mostrando essenciais para a “rede de segurança” da sociedade civil em meio a este caos, particularmente no Brasil. Eu fiz essa afirmação em uma entrevista ao IHU online em janeiro de 2019, já prevendo como isso seria importante para fazermos frente a esse governo de extrema-direita. Mas a situação se mostrou ainda mais grave do que eu ou qualquer um de nós poderia prever, pois naquela altura ainda era difícil imaginar os requintes de perversão do governo neofascista de Bolsonaro, que faz o que pode para nos lançar no puro caos. Também não imaginei que teríamos uma pandemia. Seja como for, estamos vendo a importância que é fortalecer redes e laços, para enfrentar o que está por vir e impedir justamente a barbárie, a fascistização do mundo e a devastação que ela traz consigo.
O segundo ponto é que precisamos corrigir um dos grandes erros do governo Lula, que foi não trabalhar pela descentralização da grande mídia. Tenho cada vez mais certeza disso. É evidente que tais monopólios dão o tom, pintam o quadro que querem, dizem o que querem as elites econômicas e financeiras. Felizmente há uma mídia alternativa, mas ela é vista e lida comparativamente por muito poucas pessoas. Enquanto houver controle da mídia de grande alcance por meia dúzia de famílias é muito difícil mudar alguma coisa. É preciso que outros discursos possam ser ouvidos, outras histórias... Elas existem, mas o muro da invisibilização é muito alto.
Diante disso que foi debatido aqui, concorda com a tese de que 2021 no Brasil será o ano da construção do “bolsonarismo sem Bolsonaro”?
Sem Bolsonaro, mas com Guedes, com Salles, com Tereza Cristina, talvez com Moro, Doria... As elites estão reclamando, mesmo limitadamente, porque não conseguem fazer na economia o que gostariam. Com o desastre social e econômico aprofundado pela pandemia, até o grande jornalismo chegou a admitir que era necessário dar algum sustento às pessoas em situação mais vulnerável, no caso, o auxílio emergencial, mas fora isso o problema deles com Bolsonaro é só que ele não consegue passar todas as reformas legislativas e econômicas desejadas. E não traz a vacina.
Se tiver um Guedes um pouco mais inteligente, um Mourão um pouco menos bruto, tudo bem, pronto. Enfim, alguém com a cara da Globo: um pouco mais progressista nos costumes, que não seja tão negacionista em relação à ciência, que faça uns discursos politicamente corretos em momentos pertinentes (não sempre), mas sobretudo que faça passarem as reformas econômicas, trazendo de volta os “investidores” internacionais, segurando a inflação, acalmando o mercado. Feito isso, mundo que segue.