Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e Associação Brasileira de Antropologia apontam falta de embasamento científico e constitucional da medida
POR ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI
Nesta semana, manifestações do Ministério Público Federal (MPF), de organizações da sociedade civil e de povos indígenas questionaram a constitucionalidade e o caráter integracionista da resolução da Fundação Nacional do Índio (Funai) que estabelece uma série de critérios para o processo do que define como “heteroidentificação indígena”.
Segundo o órgão indigenista, a Resolução de número 4, publicada no último dia 22 de janeiro, visa “padronizar e dar segurança jurídica” ao processo de autodeclaração indígena, como forma de “evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população”. Em seu site oficial, a Funai também fala em “banalização da identidade indígena”.
Em nota pública divulgada nesta quinta-feira (4), o MPF classificou a Resolução nº 4/2021 como inconstitucional e recomendou à Funai a revogação imediata da medida. O órgão salienta que “não há razão alguma para a criação de nova normativa, considerando que se trata matéria afeta aos valores, práticas e instituições das coletividades indígenas, que devem ser integralmente respeitados e protegidos pelo Estado brasileiro”.
Elaborada pela Sexta Câmara do MPF, a nota também destaca que “os chamados ‘critérios específicos de heteroidentificação’ definidos pela Funai, além de contrariarem o direito à autodeterminação dos povos indígenas, revelam-se ambíguos e permitem interpretações descabidas acerca da identidade indígena, como se esta fosse mera cristalização de diferenças biológicas ou culturais entre grupos humanos”.
“Definir quem é e quem não é indígena não é papel da Funai e agride a autodeterminação dos povos”
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) publicou, no dia 2 de fevereiro, uma nota na qual aponta que a resolução da Funai tem raízes na ditadura militar e contraria tanto a Constituição Federal de 1988 quanto normais internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Definir quem é e quem não é indígena não é papel da Funai e agride a autodeterminação dos povos”, afirma a Apib.
Estes e outros pontos também foram questionados no Parecer produzido pela Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que ressalta o retorno da Funai a uma perspectiva integracionista, como a que vigorou durante a Ditadura Militar, e a uma política de tutela do Estado sobre os povos indígenas.
Menos indígenas, menos vacinas
A resolução da Funai surge ao mesmo tempo em que o governo federal vem sendo questionado, inclusive judicialmente, pela exclusão de cerca de metade da população indígena do Plano Nacional de Vacinação, que incluiu no grupo prioritário de imunização apenas 410 mil “indígenas vivendo em terras indígenas”. Este ponto também é questionado pela Apib.
“A Funai publica essa resolução para negar a existência de mais de 42% da população indígena que vive no país, em áreas indígenas em processo de demarcação, e nas cidades”, afirma a nota da Apib.
“O tratamento racista que o governo federal adota contra os povos indígenas vem sendo denunciado pela APIB em muitas ocasiões e mais recentemente pelo fato do Ministério da Saúde excluir a maioria da população indígena do plano de vacinação por viver fora de territórios homologados”, critica a Apib, que recentemente lançou a campanha Vacina, Parente para garantir a imunização de todos os indígenas do país contra a covid-19.
Em sua nota, o MPF destaca que a resolução da Funai é uma “intervenção infundada” cujos riscos “tornam-se ainda mais gravosos no atual contexto da crise sanitária ocasionada pela pandemia da Covid-19, podendo, inclusive, conduzir a uma eventual subtração de direitos já consolidados”.
A avaliação também é compartilhada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), para quem a Resolução 4/2021 da Funai “tem forte potencial de gerar barreiras de acesso à vacina”.
ABA: “A heteroidentificação não encontra qualquer acolhida seja pela ciência antropológica contemporânea seja pela legislação”
“Heteroidentificação”
Em nota pública divulgada também no dia 1º de fevereiro, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) chama a atenção para o fato de que o termo heteroidentificação, utilizado pela Funai, “não encontra qualquer acolhida seja pela ciência antropológica contemporânea seja pela legislação (nacional e internacional) referente à identidade de um povo ou grupo social etnicamente definido”.
A associação destaca que tanto a ciência quanto a legislação “convergem para o fato de que a identidade étnica é única e exclusivamente definida por meio da autoidentificação”, de maneira que não há “qualquer possibilidade de agente externo ao próprio grupo definir a identidade deste grupo ou de pessoa a ele pertencente. A autoidentificação, esclareça-se, não significa que basta um indivíduo qualquer se dizer indígena, mas em ser também reconhecido como pertencendo a uma coletividade”.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em artigo publicado no blog da Comissão Arns, avalia que, na prática, “a Funai pretende se arrogar a autoridade de definir quem são os indígenas merecedores das políticas públicas do Estado”.
“Uma vez assente quem são os povos indígenas, como se pode reconhecer os indivíduos indígenas? São, evidentemente, indivíduos que se consideram membros de um determinado povo e são reconhecidos por esse povo, com seus critérios e instituições. O controle social é dos próprios indígenas. Quem, por conseguinte, é autorizado a colocar em dúvida, infirmar ou confirmar a identidade de um ou uma indígena são as instituições do povo indígena com o qual se identificam”, escreve a antropóloga.
“A Funai está, assim, empenhada em eliminar direitos, com o velho expediente de tentar apagar, no papel, os titulares desses direitos”
“A Funai está, assim, empenhada em eliminar direitos, com o velho expediente de tentar apagar, no papel, os titulares desses direitos”
Histórico anti-indígena
As manifestações públicas contra a Resolução 4/2021 da Funai destacam que essa é mais uma das diversas medidas do governo federal que, na prática, restringem os direitos dos povos originários.
A ABA cita, entre estas medidas, a Instrução Normativa 09/2020, publicada pela Funai em abril do ano passado. A medida libera a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas e, na avaliação da ABA, “exclui, efetivamente, do exercício de seus direitos, indígenas espoliados de seus territórios e que se encontram fora destes”.
Para Manuela Carneiro da Cunha, que cita este mesmo exemplo, a normativa abriu caminho para legalização de invasões. “A Funai está, assim, empenhada em eliminar direitos, com o velho expediente de tentar apagar, no papel, os titulares desses direitos”, avalia a antropóloga.