"Infelizmente, a concentração de terras é um fenômeno mundial e é criminosa a forma como vem se dando no mundo inteiro, onde o investimento financeiro agora se concentra na terra. No Brasil sofremos deste mal desde o descobrimento, mas nos últimos anos é perceptível uma acentuada concentração, com danos terríveis aos produtores familiares, concentração de renda, êxodo rural, desemprego, desmatamento e à desindustrialização do país", escreve José Rodrigues Filho, professor da Universidade Federal da Paraíba, que foi pesquisador nas Universidades de Johns Hopkins e Harvard, e que recentemente foi professor visitante na McMaster University, Canadá, em artigo publicado por EcoDebate, 22-02-2021 e compartilhado pelo IHU
Eis o artigo.
Há pouco tempo uma Comissão do Senado do Canadá demonstrou preocupações com a aquisição de terras, considerando que a propriedade familiar rural sempre foi a espinha dorsal do país durante gerações. No final, a Comissão fez recomendações no sentido de uma cooperação nos diferentes níveis de governo para se discutir a aquisição de terras.
Estranhamente, o Senado do Brasil aprovou, há poucos dias, sem nenhuma discussão um projeto de aquisição de terras no Brasil por investidores estrangeiros.
Para o autor do projeto, senador Irajá (PSD-TO), a proposta visa “possibilitar o ingresso de agroindústrias transnacionais no Brasil voltadas para o desenvolvimento da cadeia produtiva agrícola de longo prazo, que agreguem valor, gerem mais empregos e aumentem a qualidade e a quantidade da produção agrícola brasileira“.
Considerando os riscos da concentração de terras em poucas mãos, estes argumentos são refutados pela nossa própria experiência brasileira, como por pesquisas nacionais e internacionais, que comprovam os riscos da concentração de terras à soberania e segurança alimentar, às mudanças climáticas e a nossa democracia.
Infelizmente, a concentração de terras é um fenômeno mundial e é criminosa a forma como vem se dando no mundo inteiro, onde o investimento financeiro agora se concentra na terra. No Brasil sofremos deste mal desde o descobrimento, mas nos últimos anos é perceptível uma acentuada concentração, com danos terríveis aos produtores familiares, concentração de renda, êxodo rural, desemprego, desmatamento e à desindustrialização do país.
Quando foi solicitado aos intelectuais americanos de esquerda, direita e centro apresentarem ao Presidente Biden sugestões para sua gestão, eles não mencionaram apenas a introdução de uma disciplina de teologia, filosofia e poesia nos currículos das escolas para tornar os americanos melhores seres humanos, mas consideraram investimentos na zona rural, onde pequenos agricultores, principalmente os negros, vem sofrendo todo tipo de discriminação destinada à inviabilizar suas atividades em pequenas fazendas. Os negros, que logo após a abolição da escravidão, fugiram das cidades para se livrarem da pobreza e do racismo, foram buscar nas terras e zonas rurais um melhor abrigo de sustentação. Há anos chegaram a representar 14% (quatorze por cento) das propriedades rurais, mas nos últimos anos isto caiu para menos de 2% (dois por cento). Tudo isto por conta de políticas perversas dos governos anteriores, principalmente nos últimos anos.
A literatura é rica sobre os riscos da concentração de terras e o Brasil jamais alcançará um desenvolvimento sustentável, diante das desigualdades sociais causadas por isto.
É lamentável que o Senado Brasileiro aprove projetos contrários à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável. Por conta de espaço não vamos aqui mencionar todos os riscos da concentração de terras no Brasil e no mundo, mas vamos nos limitar aos riscos dela sobre o sistema alimentar, fato ocorrido nos últimos meses no Brasil e no Canadá, que se tornou preocupante e de riscos incalculáveis à sociedade.
Com a proteção governamental e redução de rígida fiscalização, a indústria de embalagem de carnes conseguiu a vantagem de reduzir preços no mercado. Mas esta redução de custos foi exposta pelo Coronavírus no mundo inteiro, que pode quebrar e reformular o sistema de produção de carnes, no seu ponto mais fraco – a saúde dos trabalhadores.
Das poucas empresas que atuam no mercado canadense, a JBS, empresa brasileira, e a Cargill, empresa americana, se tornaram pontos marcantes do surto do Covid-19 tanto no Canadá como no Brasil. Enquanto o Covid-19 devastava os pobres trabalhadores nos matadouros da JBS e Cargill, é justamente neste ponto que os consumidores se beneficiam, à custa da desgraça deles, que ainda facilitavam a rápida disseminação da doença. Desta forma, os mega frigoríficos ameaçam a segurança e o sistema alimentar. Se o governo quer proteger estas indústrias e sua cadeia de suprimentos deve obrigá-las a proteger também sua força de trabalho.
Para o professor Chris Deutsch, Universidade de Missouri, o tipo de trabalho nestes matadouros é para pessoas pobres que vivem em péssimas condições sanitárias e de superlotação, não tendo a devida remuneração para viverem em melhores condições. Segundo a imprensa, algumas pessoas do frigorífico da JBS no Canadá tinham que dormir no carro temendo contaminar a família. No Canadá, a Cargill fechou suas portas por duas semanas e a JBS teve que reduzir seus turnos de trabalho. No Brasil, os comentários são de que a JBS não deu assistência aos seus trabalhadores e os frigoríficos contribuíram para a “propagação do vírus por cidades do interior”, segundo o Ministério Público do Trabalho.
Com ajuda de governos anteriores, através de empréstimos com juros subsidiados e outras facilidades absurdas, foi possível se criar no Brasil a maior corporação de distribuição de carnes do mundo – JBS, mas o Covid-19 trouxe à tona a insustentabilidade de sua cadeia de suprimentos. Num próximo texto, faremos uma análise das ações desta Corporação no Brasil e Canadá, que tem sido um sucesso para seus acionistas, mas um fardo para a população brasileira, que arca com parte de seus custos.
Por fim, o capital financeiro tem uma compulsão de possuir a terra e expulsar quem está nela. Já foi dito que a terra é a cena do crime, mas nunca foi criminosa. Ela é a base da independência, da liberdade, da justiça e igualdade.
Assim sendo, este projeto do Senado merece uma discussão em cima de uma sustentabilidade econômica, social e ambiental, visando corrigir injustiças e desigualdades brutais.