"Em nossa visão de mundo, somos seres surgidos da terra, da água e do milho. Somos os guardiões ancestrais dos rios, o povo Lenca, também protegidos pelos espíritos das meninas que nos ensinam que dar a vida de múltiplas formas pela defesa dos rios é dar a vida pelo bem da humanidade e deste planeta (...) Vamos acordar! Vamos acordar a Humanidade! Não há tempo (...) A Mãe Terra militarizada, cercada, envenenada, onde os direitos elementares são sistematicamente violados, exige que ajamos. Construamos então sociedades capazes de conviver de maneira justa, digna e vitalícia" Berta Cáceres (1972-2016)
Num momento em que os povos originários das Américas são dos mais afetados pela profunda negligência dos governos nacionais em relação à pandemia de covid-19, as palavras de uma mulher indígena, do povo Lenca, em Honduras, são um ensinamento não apenas sobre a necessidade de resistência, mas também sobre a importância de um outro modelo de sociedade, baseada em valores anticapitalistas.
Ainda que tenham sido pronunciadas há quase seis anos, em 20 de abril de 2015, essas palavras seguem necessárias considerando que, de acordo com relatório da CEPAL, a pobreza dos povos indígenas latino-americanos e caribenhos é 26% maior que a dos não-indígenas.
Não apenas as palavras ditas naquele dia seguem necessárias, a história de vida e de luta dessa mulher segue imprescindível para todos os processos de mobilização popular e social que se realizam na região.
Essa mulher é Berta Isabel Cáceres Flores, nascida em 4 de março de 1971. O nome da cidade em que Berta nasceu é a síntese do que a sua trajetória em defesa dos povos tradicionais permanece sendo: La Esperanza.
Uma imprescindível no sentido do dito por Brecht – que luta toda a vida –, Berta encarnava a esperança no sentido freireano, do verbo esperançar: que levanta, vai atrás, que constrói e não desiste.
Bertha nasceu numa época em que a América Central gestava intensas e inovadoras experiências organizativas da sociedade civil, a exemplo da revolução sandinista e da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que enfrentavam dinastias e oligarquias respectivamente na Nicarágua e em El Salvador, países vizinhos de Honduras.
Prefeita, governadora e parteira, a mãe de Berta parece ter sido a principal influência para a filha. Como escreveu Beverly Bell, “sempre uma esquerdista comprometida, a mãe de Berta criou seus muitos filhos para acreditar na justiça. Dona Bertha – a mãe deu à filha mais nova seu homônimo – era prefeita e governadora de sua cidade e estado quando as mulheres não eram nem uma coisa nem outra, além de ser parteira. Ela foi a inspiração para toda a vida de Berta. Jovem adulta, como tantos outros da região que compartilhavam de suas convicções, Berta passou a apoiar a revolução salvadorenha”.
“Eles têm medo de nós porque não temos medo deles”
Ainda jovem, em 1993, Berta foi cofundadora do Consejo Cívico de Organizaciones Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), uma organização de caráter indígena e pluralista que atua em defesa dos direitos políticos, sociais, culturais e econômicos dos povos e comunidades indígenas do país, referenciada em três pilares de luta: anticapitalista, antipatriarcal e antirracista.
Em 2006, Berta protagonizou batalhas contra megaprojetos que acentuavam injustiças socioambientais, promoviam a expulsão de povos originários dos seus territórios e impactavam diretamente em modos de vida, conhecimentos e cuidados ancestrais.
Uma dessas batalhas foi contra a construção da hidrelétrica de Agua Zarca, um empreendimento da empresa hondurenha DESA (Desarrollos Energéticos AS) e a companhia chinesa Sinohydro, uma das maiores construtoras de represas do mundo, sobre o rio Gualcarque, considerado sagrado para o povo Lenca e fonte de água e alimentos para comunidades indígenas de Honduras.
Pela resistência ao projeto, Berta e outras lideranças indígenas foram alvos de constantes violências, perseguições e ameaças de morte. O cenário se exacerbou em 2009, com o golpe militar que depôs o então presidente Manuel Zelaya e estabelece uma série de práticas autoritárias e antidemocráticas em Honduras.
A gravidade era tamanha que, em 28 de junho daquele ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos incluiu Berta em uma lista de pessoas que corriam risco durante o golpe militar ocorrido naquele ano em Honduras. No dia seguinte, Berta recebeu medidas cautelares de proteção da CIDH, que pediu ao governo hondurenho que garantisse “sua vida e integridade pessoal”.
Nos anos seguintes, a repressão institucional foi potencializada em Honduras. Um relatório da Global Witness apontou que, entre 2010 e 2014, 101 ativistas ambientais foram assassinados no país. Um desses foi Tomás García, representante do Conselho Indígena Lenca, morto por membros do Exército de Honduras durante um protesto pacífico.
Mas enquanto a ditadura militar hondurenha intensificava a violência, crescia em nível internacional o reconhecimento da importância de Berta Cáceres e dos povos indígenas daquele país localizado na América Central para os desafios democráticos do mundo.
Expressões desse reconhecimento foram a indicação de Berta como finalista do Prêmio Front Line Defenders 2014 e o recebimento, em 2015, do Prêmio Ambiental Goldman, que homenageia militantes em defesa da justiça socioambiental. Foi durante essa premiação, no Opera House, em San Francisco/California, que Berta proferiu o discurso que abre este texto e que segue registrado na história.
Menos de um ano após receber um dos principais prêmio de ativismo ambiental do mundo, Berta teve a sua vida interrompida. Na madrugada de 2 para 3 de março de 2016, em La Esperanza, homens não identificados entraram invadiram a casa de Berta e a assassinaram.
Gustavo Castro Soto, ativista ambiental mexicano, que estava na casa de Cáceres justamente como um apoio na proteção de Berta, também foi baleado, mas fingiu estar morto até que os executores do assassinato saíssem da residência. Pouco tempo depois, Gustavo foi detido pelos militares de Honduras e conseguiu retornar ao seu país somente em abril daquele ano.
Em documento divulgado no dia seguinte ao assassinato de Berta, a CIDH informou que poucos meses antes, em reunião com representantes de Honduras, havia discutido o risco que Berta continuava enfrentando, bem como “as deficiências na implementação de medidas de proteção” que o Estado deveria fornecer.
Menos de duas semanas após o assassinato de Berta, outro importante ativista hondurenho, Nelson García, foi morto a tiros durante a expulsão de indígenas do povo Lenca dos seus territórios.
Em novembro de 2018, sete homens foram condenados pelo assassinato de Berta Cáceres e, em dezembro de 2019, foram condenados a penas de 30 a 50 anos de prisão. Todos os condenados eram funcionários da DESA ou militares, não deixando dúvidas sobre a motivação política e econômica do crime.
As palavras que seguem sendo transmitidas…
Passados cinco anos do assassinato de Berta, organizações e movimentos sociais seguem exigindo justiça e cobrando do governo hondurenho a responsabilização de todos os autores do crime, não apenas os executores, mas também os mentores intelectuais, os “mandantes”, considerando que durante o julgamento foi declarado que houve consentimento e conhecimento de executivos de outros executivos da DESA e da governo de Honduras.
É nesse intento por justiça que o COPINH segue realizando uma série de ações, a exemplo da transmissão de uma audiência em janeiro deste ano para apresentar provas contra o empresário e oficial militar David Castillo, indicado como coautor do assassinato de Berta Cáceres, mas que, no entendimento de diversos coletivos e entidades, é protegido pelo Estado de Honduras.
Rode Murcia, da Coordinadora Nacional de Mujeres Indígenas e Negras de Honduras (CONAMINH), por exemplo, denuncia que “a posição do atual governo de Honduras é a favor dos assassinos da companheira Berta. É evidente que não há por parte do Estado de Honduras o desejo de acelerar a justiça e esclarecer quem são os autores intelectuais e materiais do assassinato de Berta”.
Em Nota Pública divulgada também no início de 2021, o Jubileo Sur Americas manifestou que o assassinato de Berta e a posição do Estado hondurenho, que a perseguiu, são expressões de “um modelo racista, patriarcal e extrativista que continua perpetuando a criminalização dos defensores dos espaços coletivos vivos. Este modelo também é sustentado pelas estruturas que garantem o pagamento de dívidas ilegítimas e imorais cobradas aos países do Sul, e naturalmente implica o aprofundamento da dívida histórica e ecológica, razão pela qual é necessário unir forças dos povos e territórios na luta pela vida e pela justiça socioambiental”.
“Você tem a bala, eu tenho a palavra. A bala morre quando detona, a palavra vive se você a transmitir”
O assassinato de Berta foi uma tentativa de silenciar a luta dos povos originários das Américas, mas eles esqueceram do que certa vez a própria Berta disse: “você tem a bala, eu tenho a palavra. A bala morre quando detona, a palavra vive se você a transmitir”.
Meia década após o seu assassinato, Berta segue viva na memória de todos aqueles que transmitem as suas palavras e ações. Como também ensinou Berta, “eles têm medo de nós porque não temos medo deles”.
Filme Guardiana de los Ríos
Dirigido por Katia Lara e produzido pela Campanha Madre Tierra, o filme resgata as lutas por justiça socioambiental e de resistência ao modelo extrativista predatório em Honduras, partindo da história de Berta Cáceres.
Filme El derecho a ser consultado. La lucha de los pueblos indígenas hondureños
O filme conta a história de Berta Cárceres e, de forma mais ampla, a luta dos povos indígenas de Honduras, que resistem ao saque de suas terras por empresas privadas.