Saldo de um ano de pandemia: mais 9 milhões de brasileiros na pobreza. Entrevista especial com Luísa Cardoso
"Após a pandemia, teremos maior desigualdade de raça, maior desigualdade de gênero, maior desigualdade de renda e maiores desigualdades regionais no Brasil", diz a pesquisadora.
Antes da pandemia do novo coronavírus, em 2019, 13,9 milhões de brasileiros viviam na extrema pobreza e 51,9 milhões, na pobreza, o que corresponde, respectivamente, a 6,6% e 24,8% da população. Um ano depois do início da crise sanitária e com a redução do Auxílio Emergencial, o contingente de brasileiros vivendo nessas condições vai aumentar: "a taxa de extrema pobreza este ano será de 9,1% (19,3 milhões de pessoas) e a de pobreza 28,9% (61,1 milhões de pessoas). Assim, após um ano de pandemia, teremos um acréscimo de aproximadamente 9 milhões de brasileiros em situação de pobreza", diz Luísa Cardoso, uma das autoras do estudo realizado pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Universidade de São Paulo - Made-USP, a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2019 - Pnad Contínua e da Pesquisa Domiciliar Covid realizada ao longo de 2020 (Pnad Covid-19).
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Luísa explica como o pagamento do Auxílio Emergencial às famílias foi fundamental para reduzir o índice de pobreza no país. "No estudo, observamos dois momentos distintos para o ano de 2020: o primeiro em julho, quando o auxílio era R$ 600 reais e R$ 1.200 para mães solo, e o segundo momento em outubro, quando o auxílio era R$ 300 reais e R$ 600 para mães solo. Em julho, a taxa de extrema pobreza foi de 2,4%, ou seja, 5 milhões de pessoas estavam em situação de extrema pobreza, enquanto a taxa de pobreza era de 20,3%, representando 43 milhões de pessoas. Esse foi o patamar mais baixo registrado para esses indicadores nas últimas décadas. Com a redução do auxílio em outubro, a taxa de extrema pobreza mais que dobrou e foi para 5,1%; já a taxa de pobreza aumentou para 24,6%, números ainda menores do que os previstos para o cenário com o auxílio de 2021 e para o cenário sem o auxílio", informa.
Luísa Cardoso é doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e graduada em Economia pela Universidade de Brasília - UnB. É pesquisadora do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo - Made-USP.
Confira a entrevista.
Que percentual da população brasileira vivia em situação de pobreza ou extrema pobreza antes da pandemia e qual passou a ser este percentual no decorrer deste primeiro ano de crise sanitária?
Luísa Cardoso - Em 2019, antes da pandemia, a taxa de extrema pobreza era de 6,6%, o que representa 13,9 milhões de pessoas. Já a taxa de pobreza era de 24,8%, afetando 51,9 milhões de brasileiros. Considerando o valor médio de R$ 250 reais, estabelecido para o Auxílio Emergencial em 2021, calculamos que a taxa de extrema pobreza este ano será de 9,1% (19,3 milhões de pessoas) e a de pobreza 28,9% (61,1 milhões de pessoas). Assim, após um ano de pandemia, teremos um acréscimo de aproximadamente 9 milhões de brasileiros em situação de pobreza.
Qual foi o peso do Auxílio Emergencial em 2020 para conter o aumento da pobreza e da miséria no país?
Luísa Cardoso - Antes da pandemia, já era possível observar uma tendência de aumento da pobreza, mas ela foi contida graças ao Auxílio Emergencial.
No estudo, observamos dois momentos distintos para o ano de 2020: o primeiro em julho, quando o auxílio era R$ 600 reais e R$ 1.200 para mães solo, e o segundo momento em outubro, quando o auxílio era R$ 300 reais e R$ 600 para mães solo.
Em julho, a taxa de extrema pobreza foi de 2,4%, ou seja, 5 milhões de pessoas estavam em situação de extrema pobreza, enquanto a taxa de pobreza era de 20,3%, representando 43 milhões de pessoas. Esse foi o patamar mais baixo registrado para esses indicadores nas últimas décadas. Com a redução do auxílio em outubro, a taxa de extrema pobreza mais que dobrou e foi para 5,1%; já a taxa de pobreza aumentou para 24,6%, números ainda menores do que os previstos para o cenário com o auxílio de 2021 e para o cenário sem o auxílio.
Qual é o perfil dos brasileiros que foram beneficiados pelo Auxílio Emergencial?
Luísa Cardoso - Os beneficiários do Auxílio Emergencial são as pessoas de baixa renda, em maior situação de vulnerabilidade, pertencentes ou não ao Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal.
Por que é importante analisar o aumento da pobreza a partir de uma perspectiva de gênero e raça? O que esse tipo de abordagem revela sobre a pobreza no país?
Luísa Cardoso - A sobrerrepresentação feminina na pobreza é uma das consequências da desigualdade de gênero, dado que as mulheres estão mais presentes na economia informal e em ocupações de baixa remuneração, além de serem as principais responsáveis pelas tarefas domésticas e pelos cuidados com os filhos, idosos e doentes. De modo geral, as mulheres, em especial as mulheres negras, são mais vulneráveis à pobreza, devido ao caráter estrutural do machismo e do racismo na nossa sociedade.
Segundo projeções do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo - Made-USP, com a redução do Auxílio Emergencial neste ano, 61 milhões de brasileiros estarão na pobreza. Como é feita essa estimativa e o que este número significa e representa quando se trata de analisar a pobreza e as desigualdades no país, especialmente nos próximos anos?
Luísa Cardoso - De acordo com o Banco Mundial, utilizando a taxa de paridade do poder de compra de 2011 (1,90 dólares por dia e 5,50 dólares por dia), a linha da pobreza no Brasil é R$ 436 e R$ 469 e a da extrema pobreza, R$ 151 e R$ 162 em valores de 2020 e 2021, respectivamente.
Para implementar nossa análise, utilizamos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2019 - Pnad Contínua e dados da Pesquisa Domiciliar Covid realizada ao longo de 2020 (Pnad Covid-19). Utilizamos métodos de imputação múltipla para estimar a renda familiar simulada nos cenários sem auxílio e com auxílio nos valores estabelecidos para 2021. Imputamos os valores do Bolsa Família na Pnad Covid-19 de agosto e novembro a partir dos dados do Bolsa Família observados na primeira entrevista da Pnad Contínua anual de 2019. A imputação é feita por grupos de renda, raça e gênero. Criamos 18 grupos de acordo com a renda (abaixo de R$ 89 por mês, entre R$ 89 e R$ 178, e acima de R$ 178), gênero (mulher ou homem) e raça (brancos, pretos e pardos e outros) e replicamos na Pnad Covid-19 o percentual de famílias que, de acordo com a Pnad Contínua, receberam Bolsa Família em 2019 em cada um dos grupos. Apenas famílias que recebem auxílio na Pnad Covid-19 são alocadas para imputação do Bolsa Família. Em seguida, calculamos as taxas de pobreza no cenário de linha de base, nos dados observados da Pnad Covid e em um cenário simulado contabilizando o auxílio com os valores de 2021.
A partir desses cálculos, podemos afirmar que, após a pandemia, teremos maior desigualdade de raça, maior desigualdade de gênero, maior desigualdade de renda e maiores desigualdades regionais no Brasil. É muito provável que a nossa economia estará mais precária, com altos índices de desemprego e fome.
A partir da experiência do Auxílio Emergencial, que novos desenhos de políticas públicas precisam ser pensados para o Brasil, especialmente para atingir os brasileiros mais vulneráveis?
Luísa Cardoso - O nosso estudo deixa evidente que são as mulheres negras as que mais estão sofrendo com a crise atual. Assim, para proteção desse grupo demográfico, se torna crucial que sejam pensadas políticas de enfrentamento ao racismo e ao machismo.
Além disso, considerando o ciclo geracional da pobreza, precisamos da elaboração de políticas voltadas aos jovens e crianças que estão em casa, como políticas de acesso à internet para os alunos de escolas públicas. Não só os estudantes seriam beneficiados, mas também suas famílias.