Trabalho em tempos de pandemia: segurança econômica para quem?
Nas periferias do mundo existem milhões de trabalhadores expostos aos efeitos perversos da Indústria 4.0. Não há perspectivas favoráveis de mudança para os trabalhadores.
Palavras-chave: pandemia, economia, capitalismo, trabalho, Papa Francisco, Direitos humanos.
Artigo publicado originalmente em https://catholicethics.com/
A sociedade contemporânea está passando por fortes transformações. Os tempos de pandemia têm revelado muitas situações que nos obrigam a refletir sobre alguns paradigmas da sociedade. Um deles afeta diretamente a questão da economia, ou seja, que economia queremos? Quando uma pessoa não pode trabalhar ou abrir seu negócio, quem a protege, quem garante a segurança financeira? Segurança econômica para quem?
Segurança econômica é um conceito incorporado na Declaração de Filadélfia, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no final da Segunda Guerra Mundial em 1944.
Este conceito reafirma o objetivo da OIT no sentido de que uma paz duradoura só pode ser estabelecida com base na justiça social vinculada à segurança econômica das pessoas. A segurança econômica é um instrumento de equidade econômica para dotar as pessoas de dignidade e direitos, manifestando-se no seu poder de compra.
O capitalismo financeiro neoliberal está gerando desemprego monumental, trágica precariedade do emprego e uma crescente destruição da natureza, impulsionado pela lógica centrada na produção para a satisfação da sociedade de consumo. Para o capital, tudo é mercadoria. A lógica do sistema torna a busca por produtividade um processo destrutivo que gera uma sociedade de pessoas descartadas, desnecessárias e precárias.
O capital financeiro tira proveito da pandemia em seu próprio benefício, concretizando sua tendência à insegurança econômica para os trabalhadores. Milhões de pessoas trabalham em condições degradantes, sem proteção social e em troca de remuneração indecente. Nunca tantos trabalhadores ficaram sem proteção social. A insegurança econômica está intimamente relacionada aos riscos sócio trabalhistas. Há um processo generalizado de degradação das condições de trabalho, perda de expectativas profissionais, poucas possibilidades de promoção e maior risco de acidentes de trabalho.
A perda de renda causou uma explosão de pobreza. O Índice de Compromisso de Redução da Desigualdade (CRI) da Oxfam e o Development Finance International mostra que 103 países entraram na pandemia com pelo menos um em cada três de sua força de trabalho sem direitos trabalhistas e proteção social, como benefícios por auxílio doença[1].
É um modus operandi do capitalismo reorganizar formas de aprofundar a exploração do trabalho humano. As novas tecnologias são projetadas para responder aos interesses do capital. A pandemia acelerou a transição para novos sistemas baseados na infraestrutura de tecnologia digital da Indústria 4.0: robotização, inteligência artificial (IA), uberização. As empresas de plataforma estão entre as mais poderosas do mundo.
Nas periferias do mundo existem milhões de trabalhadores expostos aos efeitos perversos da Indústria 4.0. Não há perspectivas favoráveis de mudança para os trabalhadores. Não há preocupação do sistema em melhorar as condições econômicas das maiorias empobrecidas. O trabalho indigno e mal pago de muitos garante a extrema riqueza de poucos. Cada dólar de lucro dado aos acionistas é um dólar que poderia ter sido usado para pagar aos trabalhadores um salário justo.
Brasil e o necrocapitalismo
A classe trabalhadora tem maior potencial para doenças cardíacas, complicações respiratórias, diabetes, hipertensão e outros problemas. Na especificidade histórica do Brasil, é impossível pensar o processo de acumulação de capital, as classes populares e suas lutas, sem os determinantes raciais, de gênero e sócio-geográficos. As desigualdades sociais se materializaram a partir dessas especificidades.
A classe trabalhadora vive entre o desemprego, a fome e o vírus, o que mostra que a letalidade pandêmica tem classe social. Em um ano, de acordo com o IBGE, o número total de desempregados cresceu 20%. O país fechou 8 milhões de empregos em 2020. O número de desalentados - pessoas que deixaram de procurar trabalho - aumentou 25% (6 milhões). A população ativa fora do mercado de trabalho é de 77 milhões. O emprego na indústria caiu 11%; 40% duas pessoas ocupadas estão no setor informal; 32 milhões estão desempregados ou trabalham em condições muito precárias; 68 milhões de brasileiros dependem do auxílio emergencial do governo.
O cenário é dramático para jovens, mulheres e negros. Os jovens representam 28% da população, estão angustiados. Quem está desempregado não tem como adquirir experiência para entrar no mercado de trabalho. Houve uma explosão do número de jovens que não estudam nem trabalham (“nem-nem”). A proporção de brasileiros nessa situação é a maior em oito anos de pesquisa do IBGE. Ao longo de 2020, o índice “nem nem” atingiu 30%. Em geral, os jovens estavam restritos à informalidade e aos empregos precários. As perspectivas são terríveis. À medida que os jovens envelhecem, é mais difícil entrar no mercado de trabalho. Se a pessoa é jovem, negro e mulher, a situação fica ainda pior. 73% dos desocupados se declararam pretos ou pardos.
Antes da pandemia, em 2019, 14 milhões de brasileiros viviam na pobreza extrema e 52 milhões na pobreza. Um ano depois, e com a redução drástica do auxílio emergencial do governo, aumentou o contingente que vivia nessas condições. A taxa de pobreza extrema em 2021 será de 9,1% (20 milhões de pessoas) e a pobreza de 29% - 62 milhões de pessoas (IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua).
É importante olhar para o aumento da pobreza a partir de uma perspectiva de gênero. A super-representação das mulheres na pobreza é uma das consequências da desigualdade de gênero. As mulheres estão mais presentes na economia informal e em ocupações de baixa remuneração, além de serem as principais responsáveis pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos, dos idosos e dos enfermos. As mulheres, principalmente as negras, são mais vulneráveis à pobreza, devido à natureza estrutural do machismo e do racismo. Depois da pandemia, haverá maior desigualdade racial, maior desigualdade de gênero, maior desigualdade de renda.
Há toda uma geração de trabalhadores que nunca terá acesso a redes de seguridade social e que nunca terá uma legislação laboral para protegê-los. O governo Bolsonaro está condenando milhares de trabalhadores a viverem sufocados por uma vida muito dura e presos por uma dupla perversidade, ora trabalhando arduamente, trabalhando pouco ou mesmo não trabalhando, e tudo isso em condição de impossibilidade de acesso a direitos.
Nada disso é surpreendente. É apenas mais um capítulo na extensa produção de morte patrocinada pelo capitalismo para a eliminação dos indesejáveis do sistema, como ocorre no extermínio de negros e pobres nas periferias das grandes cidades, no genocídio dos povos indígenas, na destruição do meio ambiente, bem como na superexploração da força de trabalho que exclui e mata.
Segundo o Papa Francisco, “o desemprego, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas resultam de uma opção social anterior, de um sistema econômico que coloca o lucro acima do homem”[2]. Portanto, enfrentamos a morte como estratégia política, em palavras de Achille Mbembe[3]. Contudo, por se tratar de um caráter sistêmico da produção da morte, talvez fosse mais apropriado chamá-lo de necrocapitalismo. A vida humana só importa ao capitalismo enquanto servir ao propósito de acumular riqueza. A pandemia apenas se apresenta como possibilidade real. Os seres humanos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente supérfluos para o capital.
A sociedade precisa compreender melhor esse processo de precarização do trabalho como atividade humana vital e suas consequências deletérias para a realização do objetivo civilizador da fraternidade universal.
O trabalho é um direito humano! O Artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama o direito ao trabalho entre os direitos humanos universais e inalienáveis. A extensão dos mesmos direitos garantidos por todos sem exceção é baseada em dois princípios: igualdade e não discriminação. O Artigo 1 da mesma Declaração Universal é muito claro: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Sem dúvida - diz Papa Francisco em Fratelli tutti: “Se não se fizer esforço para entrar nesta lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio. Mas, se se aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz” (FT, 127).
[1] MARTIN, M. ET AL. (2020). Fighting inequality in the time of COVID-19: The Commitment to Reducing Inequality Index 2020. Oxfam International and Development Finance International (DFI). https://www.oxfam.org/en/research/fighting-inequality-time-Covid-19-commitmentreducing-inequality-
index-2020
[2] PAPA FRANCISCO. Discurso ao I Encontro Mundial dos Movimentos Populares: http://www.vatican.va/content/francesco/es/speeches/2014/october/documents/papa-francesco_20141028_incontro-mondiale-movimenti-popolari.html, Outubro de 2014.
[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018.
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*Elio Gasda, professor da área de Ética Teológica e Práxis Cristã. Bacharel em Filosofia (FAJE) e Doutor em Teologia pela Universidad Pontifícia Comillas (Madrid). Pós-doutorado em Filosofia Política, Universidade Católica Portuguesa.