SSB
26/06/2021
Imagem: fjo mr/https://www.flickr.com/photos

"Parece-me que o papel da Economia de Francisco e Clara seja aquele de ordenar estas e milhares de outras peças, visando a formação de um mosaico que nos mostre o desenho de uma Casa Comum bela, limpa e organizada. Uma sociedade fraterna, livre e igualitária, capaz de realmar a economia", escreve Alberto Chirone, doutor em Sociologia e Professor da Universidade Federal de Roraima, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”, no IHU

Eis o artigo.

sociedade moderna, de frequente, é representada como um triângulo com faixas paralelas que se referem às classes sociais, a partir da população mundial mais pobre, em baixo, até os mais ricos, no topo do triângulo. A sociedade pós-moderna pode ser sintetizada, tendencialmente, com uma linha ondulada que, renteando o chão, representa 99% da população mundial. Pairando no vazio, um ponto identifica o 1% de riquíssimos. Estes reproduzem dinheiro, quase sempre, de maneira virtual, isto é sem ligação direta com a produção de bens e serviços. Além disso, sonham de passear e/ou morar na Lua, em Marte e em outros planetas, ou satélites, do Sistema Solar.

No Brasil, as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) são uma das inúmeras entidades que operam entre o 99% da população. Elas são um serviço e uma maneira de ser Igreja. Constituídas principalmente de leigos e leigas, as CEBs tentam evidenciar a ligação entre as reivindicações dos mais necessitados e a mensagem evangélica. O objetivo é a construção de uma sociedade justa, democrática e ecologicamente sustentável.

As CEBs acolheram, com alegria, o apelo de Papa Francisco de modificar as estruturas sócio-econômicas que dominam o planeta. Os textos selecionados, que se podem ler a seguir, apresentam uma amostra das experiências vivenciadas, no mundo e no Brasil. Tratam-se de peças de um quebra-cabeça, espalhadas e fragmentadas. Parece-me que o papel da Economia de Francisco e Clara seja aquele de ordenar estas e milhares de outras peças, visando a formação de um mosaico que nos mostre o desenho de uma Casa Comum bela, limpa e organizada. Uma sociedade fraterna, livre e igualitária, capaz de realmar a economia.

Finalmente, é necessário alertar que a humanidade dispõe de pouco tempo para demonstrar que pode viver na Casa Comum. Parece que a covid-19 não mata animais, somente pessoas. É um aviso claro, duro e direto: a natureza não precisa de gente.

Introdução

No capítulo “Reflexões sobre a identidade e diversidade das CEBs brasileiras”, Solange S. Rodrigues evidencia que: “O que diferencia a leitura bíblica das CEBs de outras é que, nas CEBs, é feita uma leitura coletiva, comunitária, buscando relacionar o texto com a realidade do grupo que o lê. Dessa forma, o texto bíblico é atualizado e dialoga com um contexto sociocultural e religioso diverso daquele em que foi produzido. Em outras palavras, a leitura bíblica realizada nas CEBs não é fundamentalista, e a comunidade reunida procura tirar consequências práticas da leitura. Uma parte dessas consequências está relacionada à ação das CEBs na sociedade abrangente, que pode se expressar de diferentes maneiras: com a realização de um mutirão para beneficiar uma coletividade; o incentivo às mobilizações populares por melhores condições de vida; a participação em campanhas e movimentos sociais; o estabelecimento de práticas inovadoras como técnicas de agroecologia e saúde alternativa; a realização de debates políticos, a apresentação de algum membro para concorrer a eleições políticas; ou a participação em mecanismos de controle social da esfera pública, como os conselhos de direitos ou grupos de acompanhamento do poder legislativo e do executivo. Em todas essas formas de atuação social, em maior ou menor grau, as CEBs defendem um modelo alternativo de sociedade baseados em valores e justiça, partilha e solidariedade. Um tipo de organização societária que em diferentes momentos históricos se contrapôs à ordem social dominante, designada como regime militar, sociedade capitalista, ordem neoliberal.” (Francisco Orofino, Sérgio Ricardo Coutinho, Solange S. Rodrigues (orgs). “CEBs e os desafios do mundo contemporâneo”, página 113)

Erich Fromm nos apresenta a vivência das primeiras comunidades cristãs: “Os primitivos cristãos, (...) eram sobretudo um grupo de pobres e desprezados socialmente, de humilhados e marginalizados, que – como alguns dos profetas do Velho Testamento – condenavam os ricos e poderosos, denunciando intransigentemente a riqueza e o poder secular sacerdotal como males implacáveis. (Cf. meu livro ‘O Dogma de Cristo’.) Na verdade, como disse Max Weber, o Sermão da Montanha foi o manifesto de uma grande rebelião de escravos. O espírito dos primeiros cristãos era de uma plena solidariedade humana, às vezes expresso na ideia de uma partilha comunal espontânea de todos os bens materiais (A. F. Utz analisa a primitiva propriedade comunal cristã e os primitivos exemplos gregos, talvez conhecidos de Lucas.) Esse espírito revolucionário da primitiva cristandade aparece com especial clareza nas partes mais antigas dos evangelhos, tal como eram conhecidos das comunidades cristãs que ainda não se haviam separado do judaísmo. (Aquelas partes mais antigas dos evangelhos podem se reconstituídas da fonte comum de Mateus e Lucas e são chamadas ‘Q’ [Q do alemão Quelle, ‘fonte’] por especialistas na história do Novo Testamento. A obra fundamental neste domínio é de Siegried Schulz, que faz uma diferenciação entre uma tradição mais antiga e uma recente de ‘Q’.)

Nesses dizeres, verificamos que o postulado central é que o povo deve livrar-se inteiramente da estrutura do ter e, inversamente, que todas as normas éticas positivas sejam enraizadas numa ética do ser, da comunhão e da solidariedade. Essa posição ética básica aplica-se tanto às nossas relações com outros como com as coisas. A renúncia radical dos próprios direitos (Mateus, 5:39-42; Lucas, 6:29) assim como o mandamento para amar o nosso inimigo (Mateus, 5: 44-48; Lucas, 6: 27, 32-36) acentuam, ainda mais radicalmente o ‘ama a teu próximo’ do Velho Testamento, o pleno interesse pelos seres humanos e completo abandono de todo egoísmo. A norma de nem mesmo julgar os outros (Mateus, 7: 1-5; Lucas, 6: 37, 41) constitui uma ampliação do princípio de que se esqueça o próprio ego e se seja inteiramente dedicado à compreensão e bem-estar de outrem. Também com respeito a coisas, exige-se a total renúncia da estrutura do ser. A comunidade mais antiga insistia na renúncia radical da propriedade; adverte contra a acumulação da riqueza: ‘Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde os ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam; porque onde está o teu tesouro aí estará também o teu coração’ (Mateus, 6:19-21; Lucas, 12:33). É no mesmo espírito que Jesus diz: ‘bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o reino de Deus’ (Lucas, 6:20; Mateus, 5:3). Na verdade, a cristandade primitiva era uma comunidade de pobres e sofredores, plena da convicção apocalíptica de que chegara o tempo do desaparecimento final da ordem existente, de acordo com o plano de Deus de salvação.” (Erich Fromm. “Ter ou ser?”, páginas 68-69).

No capítulo “Envolvimento e desenvolvimento: introdução à simpatia de todas as coisas”, Armando Dias Mendes compara o testemunho de São Francisco (1182-1226) e São Bento (480-547): “Talvez se possa dizer, (...), que Francisco melhor cumpriu o mandamento inaugural da história no tópico ‘guardar’ do que no tópico ‘cultivar’. De qualquer modo, a casa de Deus tem muitas moradas. Se tempo e capacidade houvera, fora pertinente comparar a ação do espírito franciscano com a do espírito beneditino. São Bento de Nursia foi, também ele, fiel mandatário do autor do Gênesis, mas com ênfase no tópico ‘cultivar’. A regra de São Bento – ora et labora – transformou a Europa, assentando nela alguns dos fundamentos da sua civilização. Os beneditinos e seus irmãos cistercienses e trapistas souberam ‘cultivar’ o jardim herdado. Secaram pantanais, transformando-os em sítios de lavoura e pasto, humanizaram bosques, canalizaram rios, aproveitaram a força hidráulica, recuperaram terras abandonadas. Em resumo: trataram o ambiente de modo a retirar dele o sustento das populações, mas sustentando o próprio ambiente. Utilizaram intensamente a terra, mas em contenção, mantendo a sua fertilidade. Foram ecologistas práticos (...). Em 1964 Paulo VI fez de São Bento padroeiro da Europa. A esse dueto é que René Dubos chama de dialética entre conservação franciscana e a organização beneditina. Palavras suas: ‘O apaixonado respeito contemplativo de Francisco de Assis diante da natureza vive ainda hoje na consciência da afinidade existente entre o homem e todas as coisas vivas e no movimento para a conservação do ambiente natural. O respeito, porém, não basta, porque o homem jamais foi testemunha passiva. Ele muda o ambiente com sua própria presença e as duas únicas alternativas possíveis de sua relação com a terra são a destruição ou a construção. Para ser criador, o homem deve aproximar-se da natureza com os sentidos, além de com a sensatez: com o coração, além de como a experiência’ (Apud Spisanti, in Fiores & Goffy, 1989:298). Seria temerário afirmar que esse é o ‘nó górdio’ que ata os cristãos hodiernos? Por um lado, esforçamo-nos por uma ordem social capaz de garantir para todos os seres humanos os frutos da riqueza – que precisa ser (re)produzida, como base material indispensável à prática dos direitos humanos. Somos, de certo modo ‘benedetinos’. Por outro lado, continuamos a ver a riqueza como intrinsecamente má, e os métodos para construi-la, quase sempre, condenáveis – melhor renunciar a ela e a seus frutos. Somos, neste aspecto, ‘franciscanos’. Simplificação grosseira, sem entretons, de um grave dilema? Por certo. Mas redução própria, ainda assim, para extrair das entranhas do ser humano a raiz mais penetrante de suas angústias.” (Armando Dias Mendes. “Envolvimento e desenvolvimento: introdução à esimpatia de todas as coisas”, in: Clóvis Cavalcanti (org.): “Desenvolvimento e natureza: Estudos para uma sociedade sustentável”, páginas 67-68)

Graves crises humanitárias

Papa Francisco apresenta iniciativas importantes para ajudar pessoas que enfrentam dificuldades extremas: “Por exemplo, incrementar e simplificar a concessão de vistos, adotar programas de patrocínio privado e comunitário, abrir corredores humanitários para os refugiados mais vulneráveis, oferecer um alojamento adequado e decente, garantir a segurança pessoal e o acesso aos serviços essenciais, assegurar uma adequada assistência consular, o direito de manter sempre consigo os documentos pessoais de identidade, um acesso imparcial à justiça, a possibilidade de abrir contas bancárias e a garantia do necessário para a subsistência vital, dar-lhes liberdade de movimento e a possibilidade de trabalhar, proteger os menores e assegurar-lhes o acesso regular à educação, prever programas de custódia temporária ou acolhimento, garantir a liberdade religiosa, promover sua inserção social, favorecer a reunificação familiar e preparar as comunidades locais para os processos de integração.” (Papa Francisco. “Fratelli Tutti”, número 130, página 72)

Renda básica

No final de seu livro “A era do capital improdutivo”, Ladislau Dowbor apresenta uma agenda de iniciativas que precisariam ser implementadas. Escolhi duas. A primeira é a seguinte: “A pobreza crítica é o drama maior, tanto pelo sofrimento que causa em si como pela articulação com os dramas ambientais, o não acesso ao conhecimento, a deformação do perfil de produção que se desinteressa das necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva. Tirar os pobres da miséria constitui custos ridículos quando se considera os trilhões transferidos para grupos econômicos financeiros no quadro da última crise financeira. O benefício ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de causas ridículas milhões de crianças por ano. O benefício de curto e médio prazo é grande, na medida em que os recursos direcionados à base da pirâmide dinamizam imediatamente a micro e pequena produção, agindo como processo anticíclico, como se tem constatado nas políticas sociais de muitos países. Ao dinamizar a demanda na base da sociedade, as transferências geram a dinâmica econômica que termina por cobrir os seus custos. É um ganha-ganha. No mais longo prazo, será uma geração de crianças alimentadas decentemente, o que se transforma em melhor aproveitamento escolar e maior produtividade na vida adulta. Em termos de estabilidade política e de segurança geral, os impactos são óbvios. Trata-se do dinheiro mais bem investido que se possa imaginar, e as experiências brasileira, mexicana e de outros países já nos forneceram todo o know-how correspondente. A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda é simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, a miséria é que trava as oportunidades.” (Ladislau Dowbor. “A era do capital improdutivo”, página 283)

Redução da jornada de trabalho

A segunda iniciativa escolhida, entre aquelas propostas por Ladislau Dowbor, é a redução da jornada de trabalho: “A subutilização da força de trabalho é um problema planetário, ainda que desigual na sua gravidade. No Brasil (2017), com 100 milhões de pessoas na população economicamente ativa (PEA), temos menos de 50 milhões formalmente empregadas no setor privado, e 9 milhões de empregados públicos. E os outros? A conta não bate. O setor informal situa-se na ordem de 40% da PEA. Apesar dos grandes avanços no período 2003/2013, uma imensa parte da nação ‘se vira’ para sobreviver. No lado dos empregos de ponta, as pessoas não vivem por excesso de carga de trabalho. Não se trata aqui de uma exigência de luxo. São incontáveis os suicídios nas empresas onde a corrida pela eficiência se tornou simplesmente desumana. O stress profissional está se tornando uma doença planetária, e a questão da qualidade de vida no trabalho passa a ocupar um espaço central. A redistribuição social da carga de trabalho é uma necessidade. As resistências são compreensíveis, mas a realidade é que com o avanços da tecnologia, em particular da robótica, os processos produtivos tornam-se cada vez menos intensivos em mão-de-obra, e reduzir a jornada é uma questão de tempo. Não podemos continuar a basear o nosso desenvolvimento em ilhas tecnológicas ultramodernas enquanto se gera uma massa de excluídos, inclusive porque se trata de equilibrar a remuneração e, consequentemente, a demanda. A redução da jornada não reduzirá o bem estar ou a riqueza da população, e sim a deslocará para novos setores mais centrados no uso do tempo livre, com mais atividades de cultura, economia criativa e lazer. Não precisamos necessariamente de mais carros e de mais bonecas Barbie, precisamos sim de mais qualidade de vida.” (Ladislau Dowbor. “A era do capital improdutivo”, página 285)

Terminamos com uma oração de Papa Francisco

Oração ao Criador

Senhor e Pai da humanidade,

Que criastes todos os seres humanos com a mesma dignidade,

Infundi nos nossos corações um espírito de irmãos.

Inspira-nos o sonho de um novo encontro, de diálogo, de justiça e de paz.

Estimulai-nos a criar sociedades mais sadias e um mundo mais digno,

Sem fome, sem pobreza, sem violência, sem guerras.

Que o nosso coração se abra

A todos os povos e nações da terra,

Para reconhecer o bem e a beleza

Que semeastes em cada um deles,

Para estabelecer laços de unidade, de projetos comuns,

De esperanças compartilhadas. Amém!

(Papa Francisco. “Fratelli Tutti”, página 148)