O bispo maranhense, Dom José Valdeci, atua na denúncia de conflitos agrários em diferentes regiões do Maranhão, estado líder em violência no campo
Por Julia Dolce | Infoamazonia
Em 4 de fevereiro deste ano, o bispo Dom José Valdeci voltou para o município de Arari (MA), onde há mais de dez anos atuava como padre da paróquia local, para ministrar a missa em memória de um mês da execução da liderança quilombola José Francisco Lopes Rodrigues. Conhecido como “Quiqui”, Francisco teve seu matrimônio com Maria do Bom Parto, atual coordenadora da Comunidade Quilombola de Cedro, celebrado pelo bispo.
Quiqui foi o quinto quilombola assassinado na região nos últimos dois anos. Ele era uma das lideranças na defesa dos direitos dos quilombolas contra o cercamento de campos e lagos da Área de Proteção Ambiental Baixada Maranhense por criadores de búfalos. O bispo revela tristeza por lidar com uma “violência que só se expande” e preocupação com o que ainda pode acontecer com a comunidade.
Dom Valdeci é natural de uma comunidade camponesa que ficava no interior do município de Coroatá (MA) e que hoje não existe mais. A partir das pastorais da juventude e das comunidades eclesiais de base, foi adentrando a vida religiosa e construindo sua caminhada engajada com as lutas dos povos tradicionais do Maranhão e contra o racismo. Ele é membro do Instituto Mariama, que reúne bispos, presbíteros e diáconos negros do Brasil e presidente nacional da Comissão Pastoral dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (CPP).
Atualmente, o Maranhão lidera os índices de violência no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o que Dom Valdeci reconhece como um “grande desafio” para a igreja e para os movimentos sociais. A diocese onde o bispo atua fica em Brejo (MA), uma das regiões com maior número de denúncias de violações.
“Comunidades ameaçadas por agrotóxicos que são jogados em cima delas, desmatamento que acaba com tudo que o pessoal colhia e que gerava uma renda complementar, para não falar da contaminação das águas, escassez de peixes e animais das próprias comunidades que são mortos por fazendeiros”, lista. “Diante disso, a igreja tem o papel de estar junto com aqueles e aquelas que são marginalizados na sociedade. Ainda mais quando há uma omissão por parte do Estado”.
Confira a entrevista completa:
O senhor celebrou a missa de um mês da morte do quilombola Quiqui. O senhor já conhecia as comunidades quilombolas de Arari?
Dom José Valdeci – Eu fui pároco em Arari entre 2005 e 2010. Ali conheço todas as comunidades, eu ia celebrar nelas e acompanhava os casos nas margens do rio Mearim que já sofriam com os cercamentos dos campos. Existia já uma reflexão e resistência também em relação à criação de búfalos. Como igreja, a gente acompanhava também essas lutas.
Eu conheço os moradores de Cedro e de Flexeiras dessa época. Quando o Celino e o Wanderson (vítimas recentes do conflito rural na região da Baixada Maranhense) foram assassinados eu estive por lá e conversando com a atual coordenadora da comunidade de Cedro, Maria do Bom Parto, viúva do seu Quiqui, lembrei que havia celebrado seu matrimônio e o matrimônio de Celino também. Foi um choque saber da morte de seu Quiqui. Há uma afinidade e uma responsabilidade nossa em estar em todos os momentos com essas comunidades.
O que o senhor acha que mudou nos últimos anos em Arari, para a violência ter se intensificado e chegado a ponto de cinco assassinatos?
As comunidades resistem, quando há maior resistência há maior ameaça. Na medida em que a comunidade se organiza, há uma reação. Quando alguém me diz ‘na minha região não há conflito’ eu digo que é porque as pessoas ainda não despertaram para a situação cruel em que vivem. Às vezes estamos, infelizmente, adormecidos diante da opressão na disputa por terra, muito presente no nosso meio. Então a violência vem daí.
Claro, na medida em que cresce a consciência cresce a perseguição. Eu fui pároco na diocese de Coroatá, próxima a diocese de Bacabal, onde nos anos 1970 e 1980 muitos lavradores foram assassinados. Depois morei no município de São Mateus, com um padre italiano muito ligado à CPT e ali eu percebia também a perseguição que as comunidades sofriam exatamente por esse engajamento, por lutarem pela terra e pelo território.
Há um esquema de aniquilar essas comunidades, querem que elas desapareçam. Por isso a luta delas é tão importante. Jesus Cristo veio para todos, mas de modo especial para os mais pobres e excluídos.
O Maranhão atualmente lidera o ranking de violência no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O senhor atua na diocese de uma região que tem sido palco de muitos conflitos de terra, no Baixo Parnaíba Maranhense. A que o senhor atribui essa conjuntura?
É uma região de grande avanço do agronegócio, do Matopiba:A expressão MATOPIBA resulta de um acrônimo formado com as iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia., que chamam de última fronteira agrícola. Então há essa sede de desmatar para produzir a monocultura da soja, do eucalipto. Eles têm um olhar diferente para a terra do que o camponês, o trabalhador e trabalhadora rural, que trabalham com todo um cuidado. Aqui mesmo o pessoal morava em uma região mais baixa, onde faziam as roças, onde tem água, mas no alto, nas chapadas, era um lugar comum para criar animais, para juntar o pequi, o bacuri, fazer esse trabalho de complementação da renda.
O agronegócio chega, fomenta o desmatamento, desrespeita toda essa cultura e ainda grila terras. Na medida em que as comunidades se sentem ameaçadas e resistem, acontecem os conflitos.
Cada vez mais os sojeiros vão avançando de uma maneira muito agressiva sobre comunidades de Brejo e de Buriti. Há poucos dias visitei três na região e em uma delas o agrotóxico jogado por um avião pegou numa criança. Ela, na inocência, dizia que jogavam água do avião. Em poucos dias a pele dela estava soltando, ela estava cheirando mal. Houve denúncia, mas há sempre uma ligação, infelizmente, do fazendeiro com as autoridades, então as investigações não prosseguem. A justiça vai a passos muito lentos para o trabalhador e a trabalhadora rural, quando é a favor do fazendeiro tem toda uma pressa. Infelizmente é o que a gente constata.
Nesse sentido, eu falo do Baixo Parnaíba, mas falo também de todo o Maranhão. Acontece o mesmo com os povos indígenas, com as comunidades de pescadores do litoral que resistem às empresas de energia eólica. Esses conflitos por terras vão provocando pobreza, miséria e êxodo rural.
É um grande desafio que nós enfrentamos no Maranhão. Tantos lavradores e lavradoras que ao longo dos anos são assassinados e se vamos olhar, nesse contexto, poucos casos foram esclarecidos, são poucos em que a justiça acompanhou até o fim para prender o mandante ou quem de fato cometeu os assassinatos.
Como o senhor vê essa correlação de forças entre o agronegócio e o poder público no governo do Maranhão?
Há cerca de um mês o agronegócio mandou uma carta para o governo do Flávio Dino, elogiando o desentrave de questões que fariam o setor avançar. Se a gente olha quem está se propondo a ser o próximo governador do Maranhão, os perfis vão muito nessa linha também, em benefício ao agronegócio. Nesse sentido, eu diria que os órgãos do estados, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema), o Instituto de Terras do Maranhão (Iterma), se omitem. E isso é uma omissão do governo. Falta empenho, compromisso para que as coisas sejam resolvidas e como consequência dessa falta de vontade política, as comunidades e povos tradicionais são deixados de lado. A exportação de grãos cresce, mas cresce também o desmatamento e a pobreza cresce. Dos 20 municípios mais pobres do Brasil, 8 estão no Maranhão. Isso são dados que constatam a não distribuição de terras.
Há poucos dias, juntamente com a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (FETAEMA), estive em uma reunião como novo secretário de segurança exatamente para denunciar essas questões, levar os nomes dos camponeses e quilombolas assassinadas desde 2020 no estado. O novo secretário se comprometeu nesse empenho, mas temos muito claro que embora a Secretaria de Segurança tenha seu papel, de não deixar que a violência impere, ela depende de outros órgãos. Se o Iterma não faz a demarcação da terra, a violência segue. Se a Sema continua licenciando o desmatamento e o uso de agrotóxicos, o problema segue. Então estamos muito conscientes que mesmo com essa abertura da Secretaria de Segurança, os conflitos envolvem outros órgãos. É uma questão estrutural.
Sua ligação com a luta pela distribuição de terra vem da sua criação?
A comunidade onde eu nasci era um povoado que agora nem mais existe. Eu nasci no interior e minha família se mudou para outro interior e ali ficamos até os meus 18 anos. Ali, a gente trabalhava na roça com o pai e com a mãe. Só adulto que fui morar na cidade, pela preocupação que meus pais tinham de a gente estudar, e mesmo assim a gente ainda seguiu acompanhando a perseguição que havia contra os pobres e lavradores.
A sensibilidade da gente vem diante desses clamores. Diante de tanta opressão, eu diria que essa sensibilidade não é uma opção minha, ela está no evangelho. Jesus diz que veio para que todos tenham vida e a missão da igreja é assumir esse compromisso e diante disso nos deparamos com muitos desafios.
O senhor é integrante do Instituto Mariama, de párocos, padres e bispos negros do Brasil. Qual é a atuação do Instituto?
Esse instituto tem uma missão, um compromisso de combater o racismo e atuar, na linha da liturgia, para que a inculturação possa acontecer a partir do diálogo com as comunidades negras. Agora mesmo, há uma parceria entre a Universidade de Passo Fundo com o Bispo negro Dom Zanoni Demettino Castrona Bahia em que estão fazendo formações nessa linha da maior compreensão da cultura afro para que os movimentos negros se fortaleçam contra o racismo estrutural e a marginalização. Então nosso papel é fortalecer a caminhada do povo negro, seja nos quilombos, seja nas cidades.
Como a sua atuação é vista no meio? As pautas da distribuição de terras e a luta das comunidades tradicionais são abraçadas pela Igreja Católica hoje?
Aqui no regional do Maranhão há todo um empenho da igreja na defesa dos pobres, dos lavradores. Há uma abertura dos bispos em relação a essa luta. Uma das nossas marcas é a Romaria da Terra e das Águas, um processo que acontece a partir de uma reflexão nas comunidades, que toda igreja abraça. É claro que nacionalmente há uma diversidade, os que são mais engajados nessa luta, os que estão mais preocupados com outras pautas, mas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) estruturalmente tem esse compromisso. Há um empenho grande nesse sentido.
A gente segue alimentando a esperança de que a luta não seja em vão. Estamos agora engajados na Sexta Semana Social Brasileira, que traz uma reflexão, um mutirão pela vida, por terra, teto e trabalho, e estamos nesse caminhar rumo a um projeto popular do Brasil que queremos. Há todo um empenho de mobilização em âmbito nacional que estamos fazendo para lutar por esse Brasil que sonhamos e queremos, onde os pobres e excluídos tenham vez.
Estamos diante de um grande desafio, com um Governo Federal que cada vez mais esmaga as iniciativas populares, persegue os povos indígenas e comunidades quilombolas, deteriora os direitos e valoriza o agronegócio em detrimento das comunidades. Mas temos essa convicção de que devemos nos engajar e lutar pela vida. Queremos fazer história com aqueles e aquelas que são marginalizados. Os protagonistas, os sujeitos das histórias, são aqueles que estão sendo perseguidos nas comunidades, e nosso papel é fazer suas vozes ecoarem.