A participação cidadã e organizada na vida pública e na gestão da coisa pública é uma das exigências fundamentais para a construção de uma sociedade fundada na equidade, defende Dom Reginaldo Andrietta
Por Luís Henrique Marques | Agência Signis
Dom José Reginaldo Andrietta, bispo da Diocese de Jales, no noroeste do Estado de São Paulo. Nascido em Pirassununga, ele pertenceu ao clero de Limeira (SP). Foi nomeado pelo Papa Francisco em outubro 2015 e ordenado bispo em 27 de dezembro desse mesmo ano, tendo assumido sua missão na Diocese de Jales em 31 de janeiro de 2016.
Andrietta é membro da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora e bispo referencial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para a Pastoral Operária Nacional. Ele é ainda bispo referencial para o Mundo do Trabalho e para a 6ª Semana Social Brasileira no Regional Sul 1 da CNBB (que compreende o Estado de São Paulo). Acompanhando a Pastoral Operária, Dom Reginaldo acompanha também a Juventude Operária Católica e o Movimento de Trabalhadores Cristãos.
Nessa entrevista, o bispo de Jales salienta a importância de uma postura ativa do cidadão ante as questões políticas, como condição essencial para a construção de um projeto de sociedade que corresponda ao que diz o Evangelho. Para ele, nesse sentido, é preciso reverter a lógica da cultura política atual que, em grande parte das vezes, é feita em favor do interesse de uma elite enquanto a massa de trabalhadoras e trabalhadores segue à margem de uma vida digna. Confira:
O Sr. poderia fazer uma avaliação geral do atual momento político brasileiro, especificamente do ponto de vista partidário e tendo em vista as eleições deste ano?
Nós vivemos um momento que é fruto também de uma história de mais de 500 anos, em primeiro lugar, de um colonialismo eurocêntrico, que conduziu a um processo de massacre dos povos originários e, depois, a quase 400 anos de escravidão afro no Brasil. Nós vivemos resquícios desse período colonialista. Mesmo que tenhamos passado – sobretudo no século passado – por transformações sociais profundas na linha de democratização, ao mesmo tempo, vivemos momentos de rupturas em favor da elite sustentada por poderes militares, sobretudo com o golpe militar de 1964. Depois de um processo longo de reconquista da democracia, vivenciamos após a Constituição de 1988 (que podemos dizer cidadã, especialmente do ponto de vista social), um processo ainda de resquícios de uma elite que veio governando, de alguma maneira, em favor de um projeto elitista de economia. Então, não tivemos um avanço de imediato do ponto de vista econômico. Depois, tivemos transições para um processo muito mais democrático, em função de uma democracia social, nacional, mais participativa da sociedade. Mas, houve uma ruptura com o golpe aplicado sobre a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Desde então, vivemos retrocessos profundos na sociedade brasileira, com reformas que nos fizeram retornar a condições que, eu diria, precedem inclusive o início do período republicano.
O Sr. poderia dizer algo mais a respeito desses retrocessos?
Voltamos a viver um processo de liberalização extrema da economia e, nesse sentido, perdemos também direitos do ponto de vista trabalhista. Junto a isso, uma economia liberal, focada na canalização de recursos para o mercado financeiro nacional e internacional. Tanto é que temos a comprovação de que nos últimos anos e, de modo especial no último ano, houve uma canalização de mais de 50% do orçamento da União em favor do pagamento das dívidas públicas. Teríamos que vivenciar uma auditoria muito profunda dessa dívida pública para chegarmos à conclusão de que ela, em grande parte, já foi paga e que nós estamos ainda sequestrados por esse sistema. Isso significa cortes orçamentários profundos na área social, com o congelamento do investimento nessa área, que fez com que nós vivêssemos agora, sobretudo no período de pandemia, uma situação de catástrofe, com o desemprego altíssimo, mostrando que esse modelo econômico neoliberal é falido. Isso já era conhecido. Acontece que esse sistema foi reeditado na forma ultraliberal. Nesse sentido, temos a necessidade de reorientação. Vivemos um momento de necessidade de ruptura com esse modelo ultraliberal, que está em favor sobretudo do interesse do grande capital financeiro. Além disso, o Brasil entrou num projeto global da sociedade que faz com que o país seja aquele que está em função de comodities. É o Brasil que está fornecendo muitas matérias-primas e, por isso, ele veio se desindustrializando – esse é um projeto do capital internacional, na realidade -, favorecendo sobretudo o capital agrário, com o agronegócio muito desenvolvido, muito modernizado, mas que não produz uma democracia econômica no País, porque existe uma acumulação de riquezas em poucos grupos econômicos. Essa é também uma questão-chave: não é um país que se desenvolveu com a sua soberania em todos os sentidos, porque está atrelado e dependente da lógica do capital internacional. Então, os ditames que estamos tendo na política internacional no Brasil, vêm dessa lógica do capital internacional e o governo atual está atrelado a essa lógica, evidentemente.
A propósito do atual governo federal brasileiro especificamente, qual a sua avaliação?
Esse é um governo que desmontou tudo o que nós tínhamos de estrutura participativa ou que, em parte ainda existe por resistência. O desmonte da estrutura da participação cidadã (até então exercida por meio de um conjunto grande de conselhos e conferências), atrelou-nos a um autoritarismo muito grande que, ao mesmo tempo, significa indiferença aos grandes problemas sociais que estamos vivendo. E um dos grandes problemas é justamente o cuidado com a vida no tempo de pandemia. Nós vimos a negligência profunda por parte desse governo, vivendo, portanto, a lógica genocida. Essa lógica se manifesta no genocídio crescente dos povos indígenas, que já vivem em situação de precariedade, dependendo da natureza, como também comunidades quilombolas; aqueles que dependem também do trabalho nas pequenas propriedades – a agricultura familiar e ecológica – que são muito sacrificados. Nós tivemos também a liberalização ampla de uso de agrotóxicos que se soma a essa lógica genocida. Com a redução dos mecanismos de proteção social, passamos a viver a catástrofe da fome, que é o extremo do absurdo de um país que chegou a ser a sexta economia do mundo e hoje é a 12ª, justamente por esse tipo de política econômica. Então, é todo um sistema que precisa ser mudado. São rupturas profundas do ponto de vista da classe trabalhadora que têm que ser feitas.
Diante desse quadro, é possível ter esperança num processo de mudanças, a começar pelas eleições deste ano?
Eu vejo esperança, em primeiro lugar, por parte dos movimentos sociais populares, que sempre foram os motores de mudanças profundas. Os partidos políticos devem estar em função dos projetos que emergem dos movimentos sociais populares e não ao contrário. Ocorre que, muitas vezes, os partidos políticos atrelam aquilo que existe de mobilização da sociedade em favor daquilo que o próprio partido concebe como projeto de sociedade. Na realidade, tem que ser o contrário, porque um projeto de sociedade se constrói com a participação cidadã organizada. Nós temos que saber valorizar as forças vivas da sociedade em favor do bem comum. Não é qualquer tipo de força da sociedade. Tem aquelas que são forças destrutivas dos laços sociais e que protagonizam competição, concorrência, individualismo, egocentrismo, materialismo. Tudo aquilo que gera participação cidadã em favor do bem comum, a partir dali se constrói também um projeto novo de sociedade. É isso que tem que ser considerado em primeiro lugar como motor de mudança permanente da sociedade, porque, quando há um problema social concreto, diminuto que seja, e as pessoas se mobilizam em torno da sua resolução, ali já acontece uma ação política importante. Nesse sentido, o conceito de política não pode ser atrelado ao conceito de política partidária, porque muitas vezes os partidos políticos, se não estão em função justamente da participação cidadã em favor do bem comum, atrapalham a democracia. Então, temos que saber fazer um discernimento sobre os partidos que, além de respeitar, devem potencializar os movimentos sociais populares e não o contrário, isto é, aqueles que cooptam, reprimem ou até desprezem esses movimentos. Teríamos que desenvolver cada vez mais esse senso de que a política do bem se faz a partir da cidadania organizada na forma de movimentos sociais populares permanentes e crescentes. Dentro do quadro do que podemos conceber que é, até uma certa camisa de força da modernidade, quando se criaram os partidos políticos para o exercício da democracia, temos que entender que a prioridade dada aos partidos tem que ser superada. Os partidos políticos não são prioritários, mas sim os movimentos sociais populares. Os partidos políticos devem canalizar aquilo que é próprio do movimento social popular.
A propósito dos movimentos sociais populares, como o Sr. vê a relação da Igreja no âmbito da ação social?
A Igreja Católica sempre teve um papel importantíssimo na área social; não só de assistência social, com tudo o que pode ser compreendido nesse âmbito. Todas as pastorais sociais que têm uma dimensão de serviço importante à vida, com distintas realidades, com muitas situações específicas, desde as condições de extrema precariedade de vida como também a Pastoral da Cidadania, que engloba o conjunto todo das ações das pastorais no sentido de uma ação comum em favor de um projeto alternativo de sociedade. Claro que as ações da Igreja na área social sempre foram muito benéficas, com muitos frutos de todo tipo: assistencial, promocional, reivindicativo e da participação cidadã (nesse caso, compreendida como participação política). Todas essas dimensões são dimensões da caridade de Cristo e, na tradição da Igreja, sobretudo papal, sabemos que a política é o mais alto grau da caridade. Temos que entender a caridade na globalidade desses elementos, sabendo que o amor político evocado pelo Papa Francisco na Fratelli Tutti é fundamental. É também a culminância de todas essas ações do tipo assistencial, promocional e reivindicativo. Evidentemente, engloba todas essas ações sem negá-las. Enfim, vemos que a Igreja sempre exerceu um papel muito importante através de comunidades organizadas em contextos de precariedade social, que nós chamamos de exclusão social ou de exploração sobre pessoas, famílias, trabalhadores, trabalhadoras, enfim, sobre a classe trabalhadora.
São muitas as pastorais sociais...
Sim! Temos muitas pastorais nesse sentido e muitas comunidades atuantes, sobretudo na segunda metade do século passado como também continua nesse novo milênio. Só que, ao longo desse processo, por meio dessa participação ativa de cristãos em distintas áreas sociais, a Igreja foi desenvolvendo também a militância, com o protagonismo laical. Uma militância cristã, transformadora da realidade. Por isso, a Igreja foi concebendo a importância não só de uma ação de serviço, mas também uma ação de transformação da realidade. É o que chamamos de Ação Sociotransformadora que, evidentemente, tem o seu caráter político. Quantos grupos, associações, coletivos, conferências, seminários e frentes amplas foram sendo criadas a partir da atuação de cristãs e cristãos e que muitas vezes avançaram bastante na sua militância, e não foram tão reconhecidos nas suas comunidades de origem e não tão bem acompanhados e, às vezes, descriminados, incompreendidos. Isso é normal! O próprio Cristo viveu na incompreensão. Então, quando avançamos na militância, com caráter político, conservando a identidade cristã, também vivemos o mesmo que o Cristo viveu: a incompreensão e, muitas vezes, até a condenação. Mas muitos militantes, mesmo nessas adversidades, continuaram e continuam exercendo a sua militância, procurando mostrar que a mística cristã está presente nesse engajamento. Quantas associações, de todo tipo, quantas redes, quantas frentes, quantos coletivos e quantos sindicatos sempre receberam a contribuição sempre muito significativa de cristãos muito bem engajados. Então, existe no movimento social popular brasileiro um substrato cristão muito forte e, por isso, quando temos encontros de diálogo entre Igreja e movimentos sociais, aqueles que estão nesses movimentos e nasceram e cresceram num contexto de Igreja, demonstram-se gratos, porque passam a ser reconhecidos também como sujeitos construtores de uma nova sociedade como a Igreja mesma propõe.
O que o Sr. pode dizer sobre esse diálogo entre Igreja e movimentos sociais hoje?
Esse diálogo vem sendo feito cada vez mais. O exemplo está sendo dado pelo Papa Francisco com os encontros mundiais com os movimentos populares, desde o ano de 2014. Também no Brasil temos, agora, tido iniciativas muito positivas nesse sentido, de encontros entre bispos e representantes de movimentos sociais populares, como também distintas outras instâncias. Por exemplo, no Estado de São Paulo, no dia 6 de abril passado, na sede do Regional Sul 1 da CNBB, realizamos uma roda de conversa da 6ª Semana Social Brasileira com os movimentos sociais, justamente potencializando a participação e a atuação dos movimentos sociais por meio dessa Semana, que não é um evento, mas um processo que começou em 2019 e vai até 2023 (e terá a sua continuidade, evidentemente). Dentro de um processo de 30 anos de Semanas Sociais Brasileiras, também os movimentos sociais têm sido potencializados. O momento que estamos vivendo é de unificação, não só de critérios e de estratégias, mas também de formas de atuação, desenvolvendo não só agendas comuns, um contribuindo com o outro, tendo essa sinergia, mas também desenvolvendo um plano de lutas comuns, que emergem de planos de ações comuns. Estamos vendo que os movimentos sociais estão tendo uma emergência muito grande. Isso é sinal de esperança para o Brasil.
Ainda considerando o quadro que o Sr. apresentou no início desta nossa entrevista, quais recomendações daria ao eleitor que tem o compromisso de escolher seus candidatos no novo processo eleitoral que se aproxima?
Em primeiro lugar, saber escolher dentro do contexto dos partidos políticos que ainda terão convenções. Embora os candidatos ou pré-candidatos já se apresentem publicamente, eles ainda não são candidatos oficiais. Então, esse debate tem que ser exercido dentro dos partidos políticos, porque supostamente esses são espaços democráticos. Do contrário, seria uma contradição e estaríamos reproduzindo um coronelismo no seio dos próprios partidos políticos. E olha que tem muito disso! Há muito coronelismo, muitos “coronéis” dentro do contexto dos partidos políticos, que vão se preservando, porque têm projetos a defender que muitas vezes são discutidos em gabinetes, que estão a favor de interesses espúrios da grande parte da população brasileira. Nesse sentido, é preciso todo cuidado! Não podemos ficar esperando os candidatos aparecerem; temos que ter uma participação e discussão ampla: por que tal pessoa está se apresentando como candidata? É legítima a sua candidatura? Ela tem realmente uma trajetória? Tem um compromisso com o conjunto da sociedade brasileira ou está em função de seus interesses particulares? É urgente se fazer esse discernimento prévio, porque é ainda o momento de escolha daqueles que serão os candidatos. Estamos num período de pré-candidaturas, que dependem de escolhas a serem feitas nas convenções dos partidos, quando, então, será necessária a participação mais ativa, colocando-se em questão porque determinados pré-candidatos já apresentam como candidatos. Eles não podem fazer isso. Eles têm que ter ainda o aval das suas convenções, as quais esperamos que sejam verdadeiramente democráticas. Agora, a convenção é verdadeiramente democrática se não só as pessoas participarem na escolha, mas se os projetos ali em discussão, estiverem em favor de uma real democracia na sociedade brasileira.
O Sr. poderia dizer algo sobre como entende a real democracia?
O que seria uma real democracia? Democracia econômica, social, cultural; a democracia no respeito à diversidade cultural e religiosa; o respeito profundo a ser exercido com todas as pessoas, independentemente das suas orientações de quaisquer tipos. É o respeito à dignidade dos seres humanos e, portanto, o respeito aos direitos humanos. Nós não estamos vendo tanto isso sendo respeitado no Brasil. Passa também por uma ética no respeito da linguagem a ser utilizada, porque nós estamos numa cultura em que temos uma linguagem agressiva, de ódio, de destruir o outro e, muitas vezes, isso está presente no seio dos partidos políticos. E se tiver essa lógica, sobretudo aproveitando dos meios de comunicação, especialmente os digitais, para usar de falsidade, de Fake News, para destruir a imagem do outro, ali não tem democracia. Então, fuja desse contexto! Saia desse contexto e, se não conseguir encontrar contextos verdadeiramente democráticos, promova espaços democráticos de debate para oferecer também a sua contribuição, colocando em questão todos os partidos, todas as candidaturas que não respeitem ao processo democrático. Evidentemente, nós temos que fazer escolhas lá na frente, mesmo não saindo candidatos tão ideais, temos que saber fazer escolhas entre aqueles que são melhores ou menos ruins. Ter também critérios de escolhas daqueles ou daquelas que se aproximam mais, tanto do ponto de vista individual quanto grupal ou de projetos de partidos, de programas que se associam muito mais ou têm dado mostras que se associam mais àquilo que nós chamamos de democracia real, que é a democracia participativa.
Democracia participativa que, com efeito, não se limita ao voto...
De fato, o melhor momento para se exercer a participação política é também no pós-eleição, porque terminado o processo eleitoral, continua a luta, seja junto àqueles que foram eleitos, ou então em oposição. Uma luta em favor de tudo aquilo que é democracia real. Nesse sentido, eu coloco esse momento como o mais importante, porque muitas vezes, nós atrelamos o processo democrático ao voto, quando na realidade o voto já é a culminância de um processo participativo, que continua no momento seguinte à eleição com a participação cada vez mais coletiva, de forma organizada, dos cidadãos e cidadãs, de modo especial, as grandes massas excluídas do processo econômico, social, cultural, político brasileiro.
A propósito das agressividades, é fato que permanecemos num ambiente de polarização política. Como promover o debate de forma respeitosa, especialmente necessário nesse processo eleitoral, em meio a essa polarização?
Polarizações na vida política sempre existiram. Elas mudam de forma. A polarização não é um fenômeno somente dos últimos anos e da atualidade. Na realidade, o mundo sempre viveu grandes polarizações. E a maior polarização se dá entre o capital e o trabalho. Isso perpassa a história toda da humanidade. Afinal, em tantas outras épocas, por exemplo, quando escravos se rebelavam também contra os seus donos, dava-se um confronto, uma grande polarização. Então, essas polarizações existem. Como podemos evoluir, suplantando-as? Em primeiro lugar, é claro, do ponto de vista individual, como eu dizia, viver a ética e a espiritualidade do respeito, na linguagem, na forma de tratar os demais, mesmo que sejam adversários políticos. Mas nós estamos ainda condicionados justamente a um tipo de cultura política atrelada à concorrência de partidos políticos que tem que ser superada. A verdadeira política é construir projetos comuns de sociedade. Então, todo partido tem que ser exigido contribuir para um projeto comum de sociedade e não simplesmente defender o seu projeto em oposição ao outro. A questão é: com o que cada partido vai contribuir para um projeto comum de sociedade? Devemos trabalhar juntos, criar consensos a partir de atuações conjuntas, que nos ajudem a criarmos outro sistema eleitoral, muito mais direto, participativo, que permita muito mais a se chegar a consensos.
Como o Sr. entende que precisa ser essa participação política da sociedade cidadã e organizada?
Uma participação que emerge do contexto local: a territorialidade é importante e a representatividade de territorialidades, não só do ponto de vista geográfico, mas de situações específicas vividas. Por exemplo: a grande maioria da população brasileira é da classe trabalhadora. Então, evidentemente, temos que ter uma representação maior, em todas as instâncias de governo, da classe trabalhadora. Mas isso não tem acontecido. Se nós avaliarmos as câmaras municipais, as gestões de prefeituras, as assembleias legislativas, os governos estaduais, o Congresso Nacional e até a presidência da República, em grande parte, são espaços ocupados pela elite econômica, porque essa investe dinheiro justamente para estar nessas instâncias de poder. Nós temos representações de indígenas? Qual é a representação dos afro-brasileiros, que são pelo menos metade da população do Brasil e que são vítimas das consequências graves de uma escravidão que não foi solucionada ainda na sua raiz? Ultimamente, temos um avanço da participação feminina, mas a tônica sempre foi sempre de a mulher ser colocado em segundo plano; também precisa acontecer a participação juvenil e a renovação dos quadros de instâncias de governo. Enfim, trata-se da representatividade daqueles que estão mais excluídos. Se eles estão excluídos, têm que serem também incluídos na participação na vida pública e na gestão pública para reverter esse quadro de grandes injustiças que temos no nosso país. É preciso colocar em questão as lógicas que muitas vezes essas lideranças aprendem a ter e recebem como herança de outras gerações e inverter totalmente essa lógica. A política real é aquela da colaboração e não da competição. Nesse sentido, é uma lógica diferenciada que precisamos criar, fazer rupturas com a lógica que vem desde o início da modernidade, quando, com a Revolução Francesa, se eliminou o estilo monárquico de se governar a sociedade para o que se diz ser uma sociedade democrática, da igualdade, da fraternidade e da liberdade. Na realidade, foi uma liberdade para os grandes, para os que têm mais poder continuarem explorando os outros, o que é contraditório. Temos que fazer avançar essa lógica da Revolução Francesa, baseados sobretudo no critério da igualdade, entendendo-o como equidade, fazendo com que todos tenham seus direitos garantidos e a sua dignidade respeitada segundo a sua condição: aquele que mais necessita é aquele que deve receber mais atenção. Essa é a lógica do Evangelho. A própria mãe de Jesus canta no Magnificat: “derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes; despediu os ricos de mãos vazias e saciou aqueles que têm fome”.
Voltemos à esperança: o que o Sr. gostaria de dizer, especialmente aos cristãos católicos, sobre este momento que precisamos enfrentar e fazê-lo bem?
A esperança do ponto de vista cristão é uma esperança ativa. Se nós somos indiferentes com o que ocorre na sociedade, não temos esperança cristã. Se somos pessoas ativas, que participam da vida comunitária e social, de forma cada vez mais lúcida e responsável, cultivamos a esperança cristã, uma esperança ativa. Agora, se somos pessoas que combatem aqueles que lutam por aquilo que é digno, justo e bom, não estamos verdadeiramente cultivando a esperança cristã. Reconhecemos, sim, esperança presente na vida social brasileira a partir daqueles que estão cultivando a sua responsabilidade cidadã, se organizando e atuando coletivamente, promovendo o bem comum e cuidando da “casa comum”. Agora, se você é daqueles que vivem na apatia, na lamentação, na negatividade e que não valoriza aqueles que estão fazendo o bem, você não está cultivando a esperança cristã. Mas há tantas e tantos nesse país que estão verdadeiramente cultivando essa esperança cristã e isso nos faz sentir bem-aventurados. Bem-aventurados aqueles que lutam pela justiça! Sentimos que Cristo está presente, nos nutrindo nessa esperança ativa e Nele nós fazemos confiança! Portanto, Ele é a razão da nossa esperança! Ele venceu os males, venceu o pecado da humanidade, doando-se plenamente; Ele venceu a própria morte e aí está a razão fundamental da nossa esperança. Com Ele, nós também viveremos e alcançaremos a vida em plenitude!