A guerra na Ucrânia – um dos maiores países fornecedores de trigo para as nossas intervenções contra a insegurança alimentar no mundo – já provocou enormes aumentos nos preços dos alimentos, mas também da energia, dos transportes, dos seguros de carga. Corremos o risco de uma crise sem precedentes.”
“A guerra agrava a fome, e a fome é utilizada como instrumento de guerra: desencadeia-se um círculo vicioso que, com a continuação do conflito, só pode se agravar. A guerra na Ucrânia – um dos maiores países fornecedores de trigo para as nossas intervenções contra a insegurança alimentar no mundo – já provocou enormes aumentos nos preços dos alimentos, mas também da energia, dos transportes, dos seguros de carga. Corremos o risco de uma crise sem precedentes.”
Por meio do Avvenire, quem lança o alerta é Vincenzo Sanasi D’Arpe, presidente da seção italiana do Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU, uma das organizações mais ativas em nível mundial na luta contra a fome e na adaptação às mudanças climáticas.
Eis a entrevista.
Segundo as estatísticas, os preços dos gêneros alimentícios já estão em seu nível máximo. Localmente, de que nível de emergência já estamos falando?
Posso oferecer um dado imediatamente. O PAM vive de doações voluntárias. Em 2020, captamos e utilizamos oito bilhões de dólares para as nossas operações. Neste ano, já sabemos que serão necessários 19 bilhões de dólares para continuar cumprindo a nossa missão. Estamos nos esforçando para reduzir os efeitos em cadeia da guerra na Ucrânia sobre o preço dos alimentos e, dentro da própria Ucrânia, neste momento, conseguimos alcançar um milhão de pessoas. Gostaríamos de chegar a pelo menos três milhões por meio do trabalho das ONGs, das comunidades locais, e também das Igrejas e das associações da sociedade civil.
Muitos países do norte da África dependem das importações de trigo da Ucrânia e da Rússia, agora bloqueadas, assim como as organizações humanitárias costumam usar esse grão para as suas intervenções, até porque é mais barato. Quais são as regiões mais em risco?
Países como Afeganistão, Etiópia e Síria são particularmente vulneráveis à interrupção das importações de trigo, das quais dependem milhões de pessoas. Mas muitos países já estão sofrendo com o efeito combinado de conflitos e mudanças climáticas. No Oriente Médio e no norte da África, o aumento dos preços dos alimentos e da energia significa miséria absoluta. Preveem-se situações críticas no Líbano, no Iêmen e também na África oriental, onde, entre outras coisas, 84% do trigo é importado. O Iêmen vive uma das piores crises alimentares do mundo, e mais de 16 milhões de pessoas sofrem de fome, com regiões do país em que já há carestia severa.
Como organizações como o PAM contornam a escassa disponibilidade de trigo? E até que ponto a especulação agrava a situação atual?
Tentaremos recuperar os suprimentos nos países limítrofes à Ucrânia. A especulação certamente agrava o quadro, embora seja difícil entender o seu impacto percentual. O certo é que, para vastas regiões da Ásia, África e América Latina, será um drama. De acordo com o relatório Sofi sobre o estado da segurança alimentar no mundo, no ritmo atual na África, metade da população mundial viverá com fome crônica em 2030. Mas também na Ásia, em termos absolutos, já há 381 milhões de desnutridos.
A adaptação às mudanças climáticas é outro caminho a seguir. Como vocês estão lidando com isso?
Os choques climáticos são a maior tragédia do século, são motivo de fome e conflito. O PAM investiu mais de 300 milhões de dólares em intervenções contra as mudanças climáticas. Um dos primeiros objetivos é a formação das comunidades locais sobre os cultivos. Por exemplo: temos um programa dedicado aos pequenos agricultores que consiste na recuperação de centenas de milhares de hectares de terras nas regiões mais desfavorecidas do mundo. Os agricultores são formados, e os seus produtos são usados para fornecer gêneros alimentícios às escolas locais, que lhes pagam uma compensação. Esse mecanismo desencadeia um círculo virtuoso crucial. Além disso, também no âmbito agrícola, outro programa fundamental é o “Stop the Waste”: entre as várias intervenções, temos nos esforçado também pela correta estocagem de frutas e legumes em câmaras frigoríficas, evitando, assim, o desperdício alimentar.
Depois da pandemia, a guerra. O grande desafio continua sendo alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU estabelecidos na Agenda 2030...
Poucos percebem que os 17 objetivos se baseiam em um pressuposto. Isto é, que o atual modelo de desenvolvimento econômico e social, se tiver que ser revisto, não é ideal, não é correto. Nesse pressuposto, há também algumas semelhanças com a encíclica Laudato si’, do papa, que em 2016 visitou a sede do PAM e que faz referência a um modelo que vê o ser humano na sua inteireza, na sua dimensão e dignidade no centro do processo de desenvolvimento econômico e social. Em suma, as finanças e a indústria é que devem estar a serviço do ser humano, e não vice-versa.