Entrevista especial com Charlotth Back: "O lawfare é uma forma de desestabilizar os governos, de usar de forma traiçoeira e contrária aos direitos humanos as leis que já existem nos países", adverte a advogada

Foto: Tiago Medina

Edição: Patricia Fachin | IHU

instrumentalização do direito e das leis vigentes com a finalidade de garantir interesses econômicos e políticos de determinados Estados ou grupos sociais internacionais e nacionais tem sido uma prática constante em todo o mundo e é comparada, por alguns pesquisadores, a estratégias de guerras para derrotar e aniquilar inimigos. Essa "tática", conhecida como "lawfare", consiste no "uso traiçoeiro das leis, quer dizer, de uma interpretação que não é a mais respeitosa dos direitos humanos", e na adoção de medidas institucionais que "são possíveis e legitimadas pelo direito e encobertas de uma retórica de legalidade", disse Charlotth Back, membro da Comissão de Direito Internacional da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/RJ e do Conselho Latino-Americano de Justiça e Democracia - CLAJUD, na conferência virtual intitulada “Lawfare como nova estratégia de guerra à luz dos contextos políticos nacional e internacional”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 30-06-2022.

Segundo ela, no Brasil a prática do lawfare tem ocorrido por intermédio do poder judiciário, que interfere em todas as instâncias da vida social, inclusive na política, gerando processos de judicialização desta. Entre as narrativas que sustentam a instrumentalização do direitoCharlotth destaca o discurso contra a corrupção que, sendo uma mazela da sociedade brasileira, encontra eco e reforça ações autoritárias por parte do Estado. "Quando estamos falando da utilização do direito pelo poder judiciário com a narrativa de combate à corrupção, estamos falando de um discurso autoritário que se reveste da defesa dos bens públicos no sentido de defender o que é de todos nós. Nesse sentido, achamos que essa é uma proposta democrática, que está nos protegendo, mas temos por trás disso um autoritarismo, um disfarce dos mais diferentes interesses políticos, econômicos e sociais de grupos tanto nacionais quanto estrangeiros, que tentam submeter a nossa população e mudar os rumos que traçamos para a nossa democracia e as nossas escolhas políticas".

A seguir, publicamos a conferência no formato de entrevista.

Charlotth Back é doutora em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide - UPO, da Espanha, e mestre em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. É professora de Direito Internacional na Universidade Estácio de Sá e pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas - HOMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.

Charlotth Back (Foto: Centro de Direitos Humanos e Empresas - HOMA)

Confira a entrevista.

O que significa lawfare?

Charlotth Back - O termo lawfare tem sido muito mencionado na mídia, especialmente nas mídias mais alternativas, mas, para começarmos, seria interessante dar uma definição sobre o que é. “Law” significa “direito” e lawfare é uma modificação do termo, que não foi feita pela academia, mas pelo próprio setor de Inteligência americano, pelos estrategistas de guerra que, a partir dos anos 2000, percebem que havia a possibilidade de as guerras serem empreendidas não apenas e não mais somente por meio dos aparelhos aos quais estamos acostumados, como ataques diretos, invasões, violência, ou seja, de tudo aquilo que é chamado de intervenção militar, que pode ser feita por ataques aéreos e navais.

sistema de Inteligência americano percebe que uma das melhores estratégias – e inclusive menos custosa – para fazer um ataque ou fazer com que um inimigo seja debilitado de forma a não conseguir se reerguer rapidamente, é a utilização de outros mecanismos. Um deles é exatamente o que foi chamado de lawfare pela própria Inteligência estadunidense, ou seja, a utilização do direito para fins de prejudicar, aniquilar e deslegitimar o inimigo, seja ele qual for. Trata-se do uso do direito nas mais diversas dimensões. Podemos falar de um uso traiçoeiro das leis, quer dizer, de uma interpretação que não é a mais respeitosa dos direitos humanos, como a imposição de sanções ilegais, tal como tem acontecido em diversos conflitos, como no contexto da Venezuela, contra as empresas e o mercado venezuelano. Todas essas medidas são possíveis e legitimadas pelo direito e encobertas de uma retórica de legalidade. A utilização do direito serve para um fim que é geopolítico, que é o que está por trás de tantas medidas que temos visto por aí.


A guerra híbrida coaduna as táticas comuns de guerra, como ataques, fornecimento de armas para determinados grupos, mas também técnicas de desestabilização político-ideológicas do inimigo - Charlotth Back


Como surgiu a ideia de lawfare?

Charlotth Back – Ela surge a partir do que é chamado de guerra híbrida. Esse termo foi popularizado no início dos anos 2000, mas começou a ser mais utilizado a partir das estratégias americanas com relação ao Oriente Médio e suas Revoluções Coloridas, como vimos em relação à Líbia e regiões que sofreram com terremotos políticos e mudanças políticas drásticas. A guerra híbrida coaduna as táticas comuns de guerra, como ataques, fornecimento de armas para determinados grupos, mas também técnicas de desestabilização político-ideológicas do inimigo, que nesse caso seriam os governos que não interessariam mais à lógica norte-americana naquele espaço.


O lawfare também é uma forma de desestabilizar os governos, de usar de forma traiçoeira e contrária aos direitos humanos as leis que já existem nos países - Charlotth Back


Como são aplicadas as técnicas de desestabilização dos governos por meio do lawfare?

Charlotth Back – Especialmente por meio do consentimento da população, de grupos jovens através das redes sociais ou de formadores de opinião, o que dá um ar de espontaneidade aos movimentos que acontecem naquele espaço. Portanto, nos parece que – ao analisarmos essa tática de forma pouco profunda – o que está acontecendo é um estopim que vem de dentro da população [de determinado país], de uma insatisfação que vem sendo abafada por algum tempo ou por algum motivo específico, como a alta do preço dos combustíveis ou a morte de algum ativista. No entanto, há uma instrumentalização dessa vontade [da população] ou talvez uma instrumentalização das pequenas revoltas que existem nas sociedades, especialmente naquelas que têm uma vinculação econômica, social e ideológica com os EUA. Nesse sentido, não conseguimos perceber quem de fato deu origem àqueles movimentos que são, aparentemente, espontâneos.

Jessé Souza, ao tratar sobre a guerra híbrida e o lawfare, diz que é quase impossível perceber quem são aqueles que integram o exército inimigo porque parece que não há exército inimigo e quem combater. Parece que é algo que foi gestado dentro de cada sociedade. Nesse sentido, o lawfare também é uma forma de desestabilizar os governos, de usar de forma traiçoeira e contrária aos direitos humanos as leis que já existem nos países, ou seja, usar essas leis com a máscara de legalidade para distorcer a vontade da maioria quando estamos falando sobre a necessidade de retirar governos contrários aos interesses hegemônicos ou para impedir que pessoas estejam presentes na disputa eleitoral.


Os EUA defendem uma mão invisível do Estado, mas nunca, na sua história, utilizaram dessa mão invisível; a mão do Estado sempre foi visível - Charlotth Back


Manipulação do direito

Isso quer dizer que a manipulação do direito e das instituições do Estado democrático de direito consegue viabilizar mudanças institucionais e de regime nas estruturas dos países sem que haja a necessidade de qualquer tipo de custo militar, humano e político, como vemos durante as guerras normais.

Para tratar do lawfare, temos que olhar para o espaço geopolítico com o qual estamos lidando. Por exemplo, é impossível lidar com os interesses dos EUA e das empresas estadunidenses sem lidar de forma indissociável com os interesses do Estado estadunidense. Os EUA, portanto, implementam certas táticas – muitas vezes táticas de guerra explícitas, e outras vezes, implícitas – não menos violentas às populações para abrir espaço para as suas empresas e para seus interesses comerciais, financeiros e econômicos. Isso no sentido de controlar e acessar mercados e matérias-primas e ou de destruir concorrentes. Os EUA defendem uma mão invisível do Estado, mas nunca, na sua história, utilizaram dessa mão invisível; a mão do Estado sempre foi visível no sentido de direcionar suas estratégias militares para conseguir e perseguir os interesses das empresas americanas e seus conglomerados.


O direito é uma construção eminentemente humana e política. Então, políticas públicas são escolhas e opções públicas de colocar mais dinheiro em uma coisa e menos dinheiro em outra - Charlotth Back


Rafael ValimCristiano Zanin e Valeska Teixeira Zanin Martins, que são três advogados proeminentes no tratamento do lawfare, o separam em três dimensões complementares que acontecem de forma simultânea, comparando suas estratégias com as estratégias das guerras tradicionais. Em uma guerra tradicional, primeiro, é fundamental sabermos sobre a geografia do lugar em que estamos entrando. Depois, saber o armamento que vamos utilizar e, em terceiro lugar, quais são as externalidades, ou seja, o que pode vir de fora e ser previsto e que poderá nos ajudar ou atrapalhar na estratégia militar. No caso do lawfare, também se buscam essas três dimensões: o campo de batalha, as armas que podem ser utilizadas e as externalidades. O campo de batalha consiste em buscar os espaços, dentro dos países, que sejam permeáveis ao ataque sistemático contra as instituições.

No caso do Brasil e de outros países da América Latina, o espaço do campo de batalha mais utilizado é o poder judiciário, um poder não eleito, que não tem interferência da sociedade, que é elitista e tem uma formação bastante vinculada com as instituições americanas. Nesse sentido, o campo de batalha, de modo amplo, é o Brasil, mas, especialmente, o poder judiciário e, dentro dele, o Ministério Público – embora ele não faça parte do poder judiciário, mas trabalha diretamente com ele. Em segundo lugar, podemos pensar no armamento, em quais seriam as armas e instrumentos utilizados para o lawfare. No caso do Brasil, são estratégias jurídicas, legais, ou seja, a utilização das leis e da Constituição para atingir os fins almejados por essa estratégia. Em terceiro lugar, temos a ideia de externalidades e, no caso do lawfare, a principal delas seria a utilização da informação midiática para gerar um ambiente favorável que contribua para a aceitação dessa estratégia de lawfare. Quer dizer, o uso integrado e inteligente dessas três dimensões é essencial para que o lawfare aconteça e tenha resultados positivos para aqueles que têm interesse em deslegitimar o governo brasileiro e em causar danos à população brasileira.

Não há, portanto, uma confrontação explícita entre interesses hegemônicos geopolíticos e os interesses locais. Por isso que quando analisamos o lawfare, se começamos de dentro, perdemos a noção do que ele é de fato, porque parece que não faz sentido o que está acontecendo. Mas na verdade faz, porque temos uma abordagem que gera o caos, o qual legitima a utilização do direito como arma. Esse processo é encoberto por uma retórica de legalidade de que o direito é algo dado, de que o poder judiciário é legítimo para fazer o que faz. Ou seja, há uma compreensão de que o direito não é uma construção jurídica humana; ele é visto como uma construção quase que divina, como se o direito e a Constituição caíssem no nosso colo como os Dez Mandamentos, para fazer uma comparação. Mas sabemos que isso não é verdade; o direito é uma construção eminentemente humana e política. Então, políticas públicas são escolhas e opções públicas de colocar mais dinheiro em uma coisa e menos dinheiro em outra. Ou seja, o direito não é uma realidade dada; ele é construído.


O lawfare insiste muito na retórica de legalidade porque é uma forma de não questionarmos o que está acontecendo - Charlotth Back


Retórica da legalidade e instrumentalização da lei

lawfare insiste muito na retórica de legalidade porque é uma forma de não questionarmos o que está acontecendo. Muitas vezes já discutimos sobre a lei, mas a lei precisa ser uma expressão da vontade da maioria. Se a lei não é uma expressão da vontade da maioria, muda-se a lei, faz-se um processo de atualização legislativa porque ela não é inquestionável e imutável. Então, o lawfare é, por meio da instrumentalização do poder judiciário e da legislação brasileira, uma forma de perturbar a ordem. Além de ser legitimado pela ideia de legalidade, ele é legitimado por uma ideia de valores democráticos, como se estivéssemos defendendo o Estado democrático brasileiro. É como se aqueles que se colocam contra o lawfare se colocassem contra o Estado e não contra os métodos utilizados de ataque contra o Estado brasileiro.

Lawfare como nova estratégia de guerra à luz dos contextos políticos nacional e internacional