Para além do debate eleitoral, teólogo observa que uma espiritualidade degenerada pelo consumo e a mobilização de ressentimentos colocam em jogo disputas pela sociedade que queremos
Por: João Vitor Santos | IHU
“Em 2018, foi um voto de protesto. Agora foi uma escolha. Os eleitores compararam governos e candidaturas e fizeram suas opções”. A constatação é do teólogo e pastor Ed René Kivitz. Voz dissonante tanto entre os que endossam os meios do bolsonarismo para viabilizar seus fins, quanto outros que apontam nos evangélicos a causa da ascensão do conservadorismo, Kivitz destaca que essa opção feita no primeiro turno das eleições de 2022 revela que há disputas entre modelos civilizacionais. “Não estamos apenas discutindo o tipo de governo que desejamos, mas em qual sociedade queremos conviver. Os conservadores querem uma sociedade onde as hierarquias sejam mantidas, um mundo em que brancos valem mais do que pretos, homens mais do que mulheres, heterossexuais mais do que homossexuais, ricos mais do que pobres, e assim por diante”, completa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Kivitz situa o conservadorismo brasileiro numa história de autoritarismo e repressão, não somente religiosa. Num mundo em que a fé muitas vezes vira mercadoria e acaba degenerando a espiritualidade pela via do consumo, quem não consegue alcançar seu ideal de padrão de vida, de consumo e de poder nutre ressentimentos pelos seus fracassos. Como tem uma fé mercantil, aquela que dá e espera algo de volta, atribuiu seu “fracasso” a agentes externos. “O ressentimento é um dos afetos mais poderosos. A tendência de encontrar culpados para seus fracassos, terceirizando responsabilidades e transferindo culpas, é uma experiência atávica na humanidade”, detalha o teólogo.
É desse movimento que deriva a ideia segundo a qual o demônio, que comanda e nos lega esses fracassos, é preciso ser purgado por um destemido salvador. E, claro, isso resvala para a vida, para a política. “No Brasil, a extrema-direita usa anacronicamente o comunismo, o socialismo e o PT como bodes expiatórios prediletos. Não é de estranhar também a violência despropositada praticada especialmente nas redes sociais contra os nordestinos em razão dos resultados positivos das candidaturas de esquerda em seus colégios eleitorais”, exemplifica.
Para Kivitz, estes fatores são sinais claros de que “a modernidade fez água porque não entregou o que prometeu. O império do racionalismo científico, que expulsou Deus do mundo, desdenhou a dimensão existencial da fé e tratou a religião como superstição de gente ignorante, nos deu de presente duas guerras mundiais e um sem-número de conflitos geopolíticos, como esse último na Ucrânia”.
Assim, é fundamental ter clareza que nossa sobrevivência depende do modelo civilizacional que queremos e isso, segundo o teólogo, não necessariamente passa pela separação de campos como religião e política. Isso porque, como observa, o cristianismo pode ser posto como uma ética de vida, capaz de inspirar e orientar um modelo civilizatório. “A experiência religiosa cristã é essencialmente comunitária. O Deus cristão é uma unidade perfeita entre três pessoas que dançam uma ciranda de amor eterno”, aponta. E conclui: “Toda vez que a experiência religiosa cristã for capaz de promover comunidade, solidariedade, generosidade e mobilização popular na direção da justiça, o cristianismo estará atualizado”.
Ed René Kivitz é teólogo, pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. Entre os seus livros publicados, destacamos: Santidade (Mundo Cristão, 2020), Vivendo com propósitos: a resposta cristã para o sentido da vida (Mundo Cristão, 2006) e Outra espiritualidade: fé, graça e resistência (Mundo Cristão, 2014).
Confira a entrevista.
O que o resultado das eleições do primeiro turno revela sobre o Brasil? Que mensagem vem das urnas?
Ed René Kivitz – Em 2018, foi um voto de protesto. Agora foi uma escolha. Os eleitores compararam governos e candidaturas e fizeram suas opções. Um dos fatos mais emblemáticos, pelo que representa e comunica, foi a eleição de [Eduardo] Pazuello [para deputado federal pelo Rio de Janeiro] e a rejeição de [Luiz Henrique] Mandetta [que perdeu a disputa para vaga ao Senado pelo Mato Grosso do Sul]. O ministro técnico que seguiu as melhores indicações da ciência e se recusou a apoiar a gestão criminosa da pandemia foi esquecido, enquanto o general que conduziu o Ministério da Saúde de maneira subserviente ao chefe de Estado foi eleito. Isso revela a alma de certo contingente do eleitorado brasileiro.
Por outro lado, em comparação com 2018, Bolsonaro perdeu 660 cidades, enquanto o PT cresceu 764. Também vale ressaltar que Lula recebeu 25,6 milhões de votos a mais que Haddad em 2018, enquanto Bolsonaro ganha 1,7 milhão de votos. Com o resultado, Lula teve o melhor desempenho da história de um candidato em primeiro turno. O bolsonarismo está mais forte do que as pesquisas indicavam, mas suspeito que esteja mais fraco do que em 2018.
Bolsonaro elegeu todos os candidatos que apoiou para uma vaga no Senado, e isso é muito significativo, pois o Centrão tem a maior bancada na Câmara. Os progressistas, entretanto, também ampliaram sua representatividade, elegendo inclusive duas mulheres trans. Além disso, apesar dos evangélicos serem considerados a principal base social do bolsonarismo, a bancada evangélica terá uma das menores representatividades dos últimos 20 anos. Alguém já disse que o terceiro turno, que começa em 1º de janeiro, será mais complexo do que tudo quanto já vivemos até aqui em nossa adolescente democracia.
Como analisa a disputa pelo “voto evangélico” no primeiro turno? Que questões de fundo essa corrida não foi capaz de tocar?
Ed René Kivitz – Os discursos eleitoreiros insistiram na anacrônica ameaça do comunismo e a direita divulgou a ideia ultrapassada de que “cristão não pode ser de esquerda”. Coisas como “Lula vai fechar igrejas” e “se a esquerda voltar ao poder os cristãos serão perseguidos” foram amplamente divulgadas entre os evangélicos.
O fundo do debate, entretanto, ultrapassa a questão ideológica. Por trás de uma disputa eleitoral existe uma guerra cultural. O voto evangélico é motivado pela pauta moral, razão por que Bolsonaro repetiu à exaustão que era contra a descriminalização das drogas, o aborto e a ideologia de gênero, embora esteja no terceiro casamento, a favor da “família tradicional brasileira”. Não estamos apenas discutindo o tipo de governo que desejamos, mas em qual sociedade queremos conviver. Os conservadores querem uma sociedade onde as hierarquias sejam mantidas, um mundo em que brancos valem mais do que pretos, homens mais do que mulheres, heterossexuais mais do que homossexuais, ricos mais do que pobres, e assim por diante.
Superação de preconceitos e respeito às alteridades
Nós, os evangélicos, via de regra, fomos tratados pela esquerda como ignorantes, pouco inteligentes, e até mesmo de caráter duvidoso. Pouca gente percebe que quando sou contra vacina, você pode me chamar de burro ou ignorante, mas quando digo, por exemplo, que aborto é pecado, no mínimo você tem que considerar que não se trata de burrice, má-fé ou falta de informação, mas de um sistema de crenças diferente do seu.
Existe de fato muito religioso (e não apenas evangélico) ignorante, mal-informado e mau-caráter. Mas enquanto não enxergarmos os fenômenos religiosos como disputas entre sistemas de crenças que tecem culturas e moldam sociedades, estaremos na superfície do que está acontecendo no Brasil. Um religioso (evangélico) pode ser mal-esclarecido ou manipulado por fake news e informações distorcidas, mas muito provavelmente pode ser bem-informado e bem formado, tendo chegado a conclusões e a um sistema de crenças diferentes do progressista. A superação dos preconceitos e o respeito às alteridades é o caminho para um melhor futuro.
O que responderia a quem lhe dissesse que a ascensão de Bolsonaro e o sucesso do bolsonarismo nas eleições parlamentares de 2022 são fruto do chamado “voto evangélico”?
Ed René Kivitz – O sucesso do bolsonarismo, em geral, está inserido num quadro maior de ascensão da extrema-direita global, na esteira do tradicionalismo de ideólogos como Julius Evola, Alexandr Dugin, René Guénon, e os menos profundos como Steve Bannon e Olavo de Carvalho, que fez escola no Brasil. Por trás do bolsonarismo, estão nomes como Donald Trump e Viktor Orbán, e as noções de pureza racial e superioridade moral. O maniqueísmo dessas ideologias combina com o imaginário proselitista e supremacista do exclusivismo cristão evangélico, e sua mais nefasta expressão, o nacionalismo cristão.
Os resultados recentes das urnas, entretanto, revelam uma diminuição da bancada evangélica na Câmara Federal, o que pode indicar que o voto evangélico foi menos determinante do que o voto conservador. Como nos esclareceu o sociólogo Alexandre Brasil aqui mesmo no IHU, comparativamente, no segundo turno de 2018, Bolsonaro teve 72% do voto evangélico e o PT 28%, e agora estamos falando de algo como 60% a 40% pelos números do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP. Mas, certamente, a máquina política dos templos e pastores evangélicos influencia consideravelmente a hegemonia de Bolsonaro no voto evangélico.
Por que parece haver essa proximidade tão grande entre evangélicos, especialmente neopentecostais, com a extrema-direita? O que esse grupo político parece ser capaz de captar e que os outros parecem não ver?
Ed René Kivitz – As noções de superioridade moral e monopólio da virtude (diga-se, presentes também em setores consideráveis da esquerda) nascem do maniqueísmo, a noção da luta do bem contra o mal. A esquerda navega nessas águas em razão de seu humanismo ateísta. A extrema-direita usa isso em nome de Deus. A diferença entre as duas referências é que o que é humano está sub judice, enquanto o que é divino está além do debate. Com Deus, e com quem fala em seu nome, não se discute.
O que se observa no Brasil é um fenômeno que carece de melhor interpretação, especialmente porque é paradoxal. Por definição, o protestantismo é de ordem dissidente, afirma a liberdade de consciência e a autonomia do indivíduo. O pentecostalismo e o neopentecostalismo, que têm origem no evangelicalismo protestante, entretanto, retornam às lógicas medievais, usando e abusando de hermenêuticas fundamentalistas: ou você concorda comigo e está do lado de Deus, do Evangelho e da luz, ou discorda e, portanto, está do lado do diabo, do mal e das trevas.
O sacrifício da autonomia das consciências, mesmo diante da responsabilidade de responder ao divino, transferindo tal responsabilidade aos pastores, bispos e apóstolos, profetas e profetizas, favorece o fenômeno de adesão dos religiosos à extrema-direita, com sua prepotente proposta de purificação do mundo.
Vivemos um nacionalismo cristão e reacionário concebido na relação entre religião e extrema-direita?
Ed René Kivitz – O nacionalismo cristão é a crença de que a nação brasileira é cristã e assim deve permanecer, inclusive com a ação do governo e a implementação de uma agenda religiosa nas políticas públicas. Isso implica, pelo menos, três distorções.
A primeira é tentar aplicar ao todo de uma nação os valores religiosos de uma de suas partes. A nação brasileira abarca a totalidade dos brasileiros, inclusive os não cristãos. A nacionalidade é uma condição, a religião é uma opção.
A segunda distorção inerente ao nacionalismo cristão é a consequente separação entre quem faz parte e quem não faz parte dessa nação cristã – o que deve ser feito com os não cristãos? Devem se submeter à cultura cristã?
Outra distorção do nacionalismo cristão é a degeneração do conceito de igreja. O coletivo de cristão não é nação, é igreja.
Raízes históricas do nacionalismo cristão
As razões pelas quais o nacionalismo cristão encontra terreno fértil em boa parte da população brasileira são diversas e têm origens históricas. Entre elas, destaco a formação do nosso imaginário religioso a partir da lógica colonialista, quando o cristianismo nos chegou com imposição catequista e coercitiva. Também o coronelismo e o caudilhismo ajudam a formar a noção de submissão às lideranças não apenas políticas, mas também religiosas.
A democracia é um valor ainda incipiente no Brasil. As recentes manifestações de setores populares pedindo intervenção militar, retorno da ditadura, reedição do AI-5, nos causam espanto e horror, mas revelam uma face de certa representatividade popular. O autoritarismo faz parte de nossa herança cultural e precisa ser exorcizado.
Uma série de analistas apontam que a extrema-direita tem sido capaz de mobilizar afetos, sentimentos como ódio e rancor, de um mundo e um Brasil em crise e de sujeitos desorientados. O senhor concorda?
Ed René Kivitz – O ressentimento é um dos afetos mais poderosos. A tendência de encontrar culpados para seus fracassos, terceirizando responsabilidades e transferindo culpas, é uma experiência atávica na humanidade. A história oferece exemplos de como esse ressentimento é utilizado para gerar experiências coletivas autoritárias, totalitárias e violentas. O maior fenômeno recente é o nazismo e seu inominável holocausto, quando especialmente os judeus foram errônea e injustamente identificados como a causa da derrota alemã na 1ª Guerra.
Já na década de 1930, entre as igrejas reformadas circulavam periódicos racistas mobilizando pastores para que se juntassem à luta contra os judeus, falando de Adolf Hitler em termos messiânicas e usando a suástica como um sinal salvífico de Deus atuando, inclusive, na esfera política para trazer uma nova era gloriosa para a Alemanha. O uso de bodes expiatórios e a promessa de um reavivamento religioso capaz de “purificar” a sociedade constituem um artifício poderoso. Esse artifício foi utilizado pela campanha que levou Donald Trump ao poder temporário, convencendo o americano médio de que seu fracasso se explicava pela presença dos imigrantes que lhes roubavam oportunidades e empregos. Mais uma vez a xenofobia foi utilizada como alavanca de coesão de massa.
No Brasil, a extrema-direita usa anacronicamente o comunismo, o socialismo e o PT como bodes expiatórios prediletos. Não é de estranhar também a violência despropositada praticada especialmente nas redes sociais contra os nordestinos em razão dos resultados positivos das candidaturas de esquerda em seus colégios eleitorais.
Vivemos um estado de crises decorrentes da Modernidade? Como esse cenário impacta no cristianismo de nosso tempo?
Ed René Kivitz – A modernidade fez água porque não entregou o que prometeu. O império do racionalismo científico, que expulsou Deus do mundo, desdenhou a dimensão existencial da fé e tratou a religião como superstição de gente ignorante, nos deu de presente duas guerras mundiais e um sem-número de conflitos geopolíticos, como esse último na Ucrânia. A promessa de que o avanço da ciência e da tecnologia resolveriam os grandes dilemas humanos não se mostrou eficaz.
Para falar menos, ainda convivemos com o flagelo da fome, a corrupção sistêmica é um fenômeno universal em instâncias públicas e privadas, e vivemos assustados com o poder letal da pandemia de Covid-19 e outras tantas que se avizinham. A suspeita de que a solução para a humanidade está no suplemento de alma que a modernidade nos privou explica a resiliência da esperança na transcendência.
Os modernos profetizaram o fim da religião, que, por sua vez, nunca perdeu sua força e seu apelo. Os fenômenos atuais que se explicam pela aliança entre os fundamentalismos religioso e político podem ser explicados como a resposta ou efeito bumerangue do humanismo ateísta da modernidade, o que, por sua vez, favorece uma visão dialética, uma espécie de movimento pendular de como a história faz seu caminho rumo ao fim.
Muitas pessoas buscam a religiosidade cristã evangélica por se sentirem acolhidas. Como compreender esse acolhimento? Nesse sentido, é possível afirmar que a religiosidade cristã evangélica atualiza o cristianismo em nosso tempo?
Ed René Kivitz – A experiência religiosa cristã é essencialmente comunitária. O Deus cristão é uma unidade perfeita entre três pessoas que dançam uma ciranda de amor eterno. Ser cristão é viver a magia da unidade plural. Num mundo com tantas ameaças, desde as forças incontroláveis da natureza com seus terremotos, furacões e pandemias, passando pelos imprevisíveis e selvagens movimentos do mercado e da economia que favorecem apenas seus poucos detentores de riquezas econômicas, onde a pobreza é a regra e a riqueza é injusta, excludente e diabolicamente cruel, a comunidade religiosa se torna um abrigo não apenas desejável como também necessário.
Alguém já disse que a igreja evangélica organizada nas periferias do Brasil é uma espécie de estado de bem-estar paralelo, onde os serviços de apoio à população funcionam nos vazios da negligência dos governos. Toda vez que a experiência religiosa cristã for capaz de promover comunidade, solidariedade, generosidade e mobilização popular na direção da justiça, o cristianismo estará atualizado. Assim aconteceu, por exemplo, com as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs católicas desde a década de 1960, e acontece hoje nas centenas e milhares de pequenas comunidades evangélicas, especialmente pentecostais, nos rincões e bolsões de pobreza no Brasil.
Como podemos compreender que um mesmo cristianismo defenda pautas da extrema-direita enquanto outro vai diametralmente no sentido oposto? Que fundamentações e leituras teológicas estão em disputa?
Ed René Kivitz – A chamada igreja evangélica brasileira recebe ainda forte influência do protestantismo de conotação calvinista ou neocalvinista, tanto em sua origem na Europa quanto aquele degenerado nos Estados Unidos. Teologias como a da prosperidade, da batalha espiritual e do domínio estão presentes com mais ou menos força no evangelicalismo brasileiro. A ênfase no empreendedorismo individual com pretensão de ascensão social do neoliberalismo, a cultura norte-americana do self made man e a sugestão de que ficar rico é promessa e evidência da bênção de Deus, sustentam essa recente coach theology, a teologia de autoajuda, que o teólogo canadense James Houston chamou de “Mickey Mouse Theology”.
Em termos mais abrangentes, temos a “profecia das sete montanhas”, que advoga a necessidade de os cristãos conquistarem as sete áreas de influência na sociedade com vistas à vitória do cristianismo como matriz cultural de uma nação: religião, família, educação, mídia, entretenimento, finanças e governo. Por trás dessa “teologia do domínio” está a crença de que é necessário “tirar o diabo do poder”, o que explica o recente pronunciamento da primeira-dama Michelle Bolsonaro, afirmando que o Palácio do Planalto estava consagrado a demônios.
A cristianização do mundo tem um apelo forte especialmente na população que vive em áreas dominadas por facções criminosas e que sofre, praticamente indefesa, as consequências da pobreza extrema, assistindo seus filhos sendo cooptados e mortos pelo crime e pela polícia. A explicação de que as coisas são como são porque o diabo está no controle, e que somente Deus pode resolver sua vida fazendo você superar a miséria e se estabelecer com um mínimo de dignidade, não apenas tem certa lógica empírica, como também aparenta ser praticamente irresistível para quem se sente abandonado à própria má sorte. Onde o crime governa, a polícia é bruta e o estado é ausente, a igreja se apresenta como portal de esperança.
Qual a leitura que faz da espiritualidade de nosso tempo? Em que medida a crise do capitalismo se revela também como uma crise de espiritualidade?
Ed René Kivitz – O filósofo Walter Benjamin já denunciou o “capitalismo como religião”. O capitalismo não exige a adesão a um credo, uma doutrina ou uma teologia, apenas se movimenta na ação tipificada como culto, baseado na adoração ao dinheiro, o deus-Mamon, que Benjamin chama de Plutão, o deus da riqueza. Ao redor dessas sugestões de Benjamin, deduzimos a tirania do mercado, o império do dinheiro e a consequente crueldade da sociedade onde tudo está à venda e, portanto, tudo é mercadoria, já denunciada no Apocalipse na figura da grande Babilônia, cujo maior pecado é a compra e venda de almas humanas.
Jesus advertiu enfaticamente que é impossível servir a Deus e às riquezas ao mesmo tempo. A palavra usada foi Mamon, que o teólogo Jung Mo Sung definiu como “dinheiro elevado à categoria de deus”. Também o Papa Francisco já denunciou que o oposto da fé não é a incredulidade, mas a idolatria, sendo o dinheiro o ídolo do nosso tempo.
Uma espiritualidade deturpada pelas categorias do consumo, ainda do consumo do sagrado, implica a degeneração da fé que se torna idolátrica: Deus passa a ser o meio pelo qual se chega aos fins, a saber, a satisfação dos desejos egocêntricos e a atomização da experiência religiosa no mundo do eu e do meu. Quando Deus é transformado em meio, passa a ser tratado como ídolo, pois Deus é sempre um fim em si mesmo. Eis o pecado da espiritualidade do capitalismo, a idolatria.
No que reside o fundamentalismo religioso da atualidade?
Ed René Kivitz – Por definição, o fundamentalismo é a afirmação dos princípios fundantes de uma tradição interpretados e pretensamente praticados literalmente. Por trás da índole fundamentalista, esconde-se a sugestão da necessidade de um retorno às origens, que por sua vez exige a conversão ou eliminação das forças ou agentes que deturparam, no correr da história, as intenções, proposições e mandamentos dos pais originais da respectiva tradição. No fundamentalismo, o novo é sempre associado ao mal, inclusive a mera intenção de atualização da tradição é condenada como deturpação e ou heresia.
O filósofo israelense Amós Oz sugeriu que a possibilidade de um futuro mais pacificado entre as diferentes culturas e civilizações globais repousa na possibilidade de diálogo entre os moderados das tradições que lhes dão origem e sustentação. O problema do mundo não são as religiões, mas o fundamentalismo religioso, índole maniqueísta e totalitária dos radicais que prepotentemente se consideram detentores exclusivos do divino. Deus, por definição, é aquilo em nome de que se fazem sacrifícios absolutos. O que não pode ser sacrificado é, na verdade, o deus a ser preservado.
O Evangelho é a afirmação contundente do extremo equívoco de matar em nome de Deus, uma vez que tal lógica resultou no assassinato do próprio Deus feito carne. O Deus revelado no Evangelho não mata, não autoriza matar, pois morre e se deixa matar em nome do amor à sua criação, especialmente a família humana. O exclusivismo excludente e segregacionista, inerente aos fundamentalismos, é uma negação do Evangelho e, no caso do fundamentalismo cristão, uma traição ao seu Cristo crucificado.
As igrejas abraâmicas históricas tentam, em alguma medida, superar o fundamentalismo e promover a fraternidade universal. Como analisa esses movimentos? E como observa os neopentecostais nesse debate?
Ed René Kivitz – As tentativas de diálogo entre as religiões abraâmicas sempre se deparam com os limites do exclusivismo: quem tem o Deus certo, a revelação certa, ou a interpretação certa do Deus certo. A sabedoria, entretanto, nos ensina que, em vez de nos distanciarmos em razão de nossas crenças distintas, devemos buscar sempre a unidade ao redor de temas universais, como a justiça, a compaixão e a solidariedade.
Nos casos extremos, e que o diálogo e a cooperação não forem possíveis, devemos nos lembrar, como já afirmou o teólogo croata Miroslav Volf, que “o amor ao inimigo é a assinatura moral da fé cristã”. O máximo da espiritualidade e da fé em Deus é o amor ao próximo, e o máximo do amor ao próximo é o amor ao inimigo, amar como Cristo amou. Fora desse mandamento inescapável deixado por Jesus, o cristianismo se degenera em idolatria, pois o Deus revelado no seu Cristo se perde no panteão de deuses e ídolos tribais, nacionais e, especialmente, individuais.
Qual a importância de voltarmos às Escrituras para amadurecer nossa fé de acordo com nosso tempo? E que leitura podemos e devemos fazer?
Ed René Kivitz – Entre as mais importantes influências na minha formação teológica está a teologia latino-americana, notadamente a leitura popular da Bíblia protagonizada por Carlos Mesters. Suas obras “Flor sem defesa” e “Por trás das palavras” me marcaram de maneira indelével.
Lembro também quando ainda no seminário, na minha juventude, me encantei com Clodovis Boff e sua “Teologia pé no chão”. Voltar à Bíblia, mas com as lentes que favorecem uma hermenêutica em defesa e promoção da vida em todas as dimensões, com atenção especial à vida humana, inclusive e principalmente dos vulneráveis, pobres e vitimados pela crueldade do mundo. As leituras bíblicas dogmática e catequista, moralista e legalista, egocêntrica e individualista, mais promovem exclusão e segregação, e acabam a serviço da manutenção das estruturas históricas e sociais injustas.
Que Brasil o senhor vê no futuro? Como a fé, a espiritualidade e a religiosidade entram nesse país do futuro?
Ed René Kivitz – A fé, a espiritualidade e a religiosidade jamais saíram do mundo, e permanecerão vivas em qualquer futuro. A pergunta a respeito de qual versão de cristianismo prevalecerá é um mistério e assim deve permanecer. O desafio maior é fazermos, hoje, as escolhas pelos caminhos espirituais que percorreremos, qual leitura do Evangelho utilizaremos como referência, qual matriz de fé seguiremos e quais sementes de espiritualidade depositaremos no solo do presente.
Deseja acrescentar algo?
Ed René Kivitz – Apenas a lembrança da solene declaração de Jesus, o Cristo, o Filho do Deus vivo: “Eu edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.”