O Brasil sai do encontro da Economia de Francisco fortalecido por poder compreender-se plural e não homogêneo. Em nosso país, em especial os jovens da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, temos como algo concreto que há três eixos a incidir: território, movimentos populares e educação.
Por Eduardo Brasileiro | Outras Palavras
Transcorridas duas semanas do encontro internacional “A Economia de Francisco” na cidade de Assis, na Itália, onde reuniu mais de mil jovens de todo o mundo e teve a presença calorosa do Papa Francisco, é obrigação da delegação brasileira participante no evento aterrar as perspectivas no chão do movimento brasileiro que se organiza há mais de três anos em torno deste novo pacto econômico.
“Para muitos de vocês (…) o encontro com a Economia de Francisco despertou algo que vocês já tinham dentro. Vocês já estavam comprometidos criando uma nova economia; aquela carta os uniu, deu-lhes um horizonte mais amplo, fez-lhes sentir parte de uma comunidade mundial de jovens que tinham a mesma vocação que vocês.” (Papa Francisco, 24 de setembro de 2022, em Assis)
Os jovens vindos de diversos lugares do mundo traziam um sinal de esperança. Jovens que enfrentam guerras, conflitos armados, narcotráfico, aqueles que construíram projetos de sustentabilidade econômica, social, ambiental, outros de movimentos sociais, eclesiais e políticos expressivos e uma grande parcela daqueles que ainda querem se inserir num processo de mudança e viram no Papa uma referência de valores e perspectivas de ações à luz do tripé inovador da Doutrina Social da Igreja em seu pontificado: A ecologia, a economia e a educação. Estamos testemunhando no mundo inteiro jovens que se organizam a partir de uma dessas três dimensões da vida social e, a partir do chamado do Papa, vem se inserindo em processos de mudança local e global.
Uma economia profética
A mística que nos envolveu e alimentou em Assis foi a da profecia. Oito jovens, oito mundos, oito dores, oito perspectivas, oito lutas ecoaram no teatro o texto de Isaias 21, 1-12: “Sentinela, quanto falta para a manhã chegar?”. O grito do texto e das histórias de cada um dos jovens desenhavam um corpo em oração, que na agonia da espera tem a alegria da esperança. O profeta é a sentinela da noite, não dá respostas que não pode dar, mas conhece a noite e sabe que a noite é o seu tempo na existência, então se faz presente nos combates da história, permanece fiel no seu posto de guarda fiel da esperança. Aguarda, crê e também tem dúvidas, mas se põe em diálogo com os que passam. A Economia de Francisco é uma economia profética: no anúncio e na denúncia, acompanha as madrugadas do mundo empunhando um candeeiro que ilumina o mundo esperançando outros mundos possíveis.
Nos dois dias que antecederam o momento com o papa Francisco a tônica em celebrar o encontro atravessado pelas histórias-experiências de diversos jovens foi a possibilidade de conhecer as vozes e os rostos da economia de Francisco. No momento das experiências a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara apresentou a necessária construção de ponte entre as periferias para superar o atual modelo econômico, que portanto para se mudar o modelo econômico é preciso que seja a partir dos pobres. E, foi ao final desta sessão que os brasileiros apresentaram a cartilha “A Economia de Francisco e Clara: Denúncia as violências financeiras e anúncio das economias para o bem viver dos povos”, mostrando que há uma necessária postura que devemos nos colocar começando a separar-nos daqueles que possuem economias estruturadas na mineração, no trabalho escravo, na exploração dos ecossistemas, no enriquecimento de grandes corporações e mercados financeiros, enquanto o povo espoliado pelo capital, não vê circular investimento em seus territórios. Denúncia. E, como Francisco anunciou em sua fala, a busca de economias que “Cheguem àquele “bem viver”, que não é a doce vida ou passar bem, não. O bem viver é aquela mística que os povos aborígenes nos ensinam a ter em relação à terra”. A Economia de Francisco e Clara mostra que precisamos começar debaixo, priorizando finanças de proximidade, com investimento em cooperação e para o surgimento de iniciativas produtivas locais, de compras públicas organizadas pelo Estado e descentralização do orçamento dos governos. Anúncio.
A perspectiva do Sul Global
Sabemos que a linguagem é a forma mais exata com a qual podemos definir nossa dor, nossos medos, nossas angústias – assim como nossa maneira de resistir, propor e incidir na sociedade. Nesse sentido, aí decorreu nosso principal ponto de inflexão: as palavras e expressões que instigam a luta no Sul Global não são as mesmas do Norte, do mesmo modo que a perspectiva relacional com o capitalismo do Norte não é tão sofrível como o colonialismo, que agudizou desigualdades perenes até hoje no Sul. Não havia, vale a pena ressaltar, restrição alguma a nenhum debate, o tensionamento é simplesmente epistemológico, em que juventudes advindas do Sul Global percebem que a Economia de Francisco e Clara refletida pelos latinoamericanos ecoa uma profunda necessidade da ecologia de saberes, como afirma Boaventura de Sousa Santos, em que é a partir do contexto e no ato de formular modos de produção não-capitalistas que ocorre um enfrentamento ao modelo econômico. Latino-americanos vêm construindo uma hermenêutica das emergências que age e organiza a superação desse modelo dominante. Papa Francisco nos recomenda:
“Uma economia que se deixar inspirar na dimensão profética se expressa hoje em uma visão nova do ambiente e da terra. Devemos nos dirigir para essa harmonia com o ambiente, com a terra. São muitas as pessoas, as empresas e as instituições que estão fazendo uma conversão ecológica. É preciso seguir em frente nesse caminho e fazer mais. Esse “mais” vocês estão fazendo e estão pedindo a todos. Não basta fazer uma maquiagem. É preciso pôr em discussão o modelo de desenvolvimento. A situação é tal que não podemos apenas esperar pela próxima cúpula internacional, que pode não ajudar: a terra está queimando hoje, e é hoje que devemos mudar, em todos os níveis.”
Temos pressa por uma economia do amanhã
O Brasil sai do encontro da Economia de Francisco fortalecido por poder compreender-se plural e não homogêneo. Em nosso país, em especial os jovens da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, temos como algo concreto que há três eixos a incidir: território, movimentos populares e educação. No território, as Casas de Francisco e Clara agem como a popularização da gramática da esperança do Papa Francisco: Deveis retomar a atividade econômica a partir das raízes, das raízes humanas (Papa Francisco). Nos movimentos populares estará a coragem de tomar o partido das decisões que visam o bem comum – como a expansão de políticas públicas de bancos de desenvolvimento comunitário, economia solidária, orçamento participativo, agroecossistemas – e colocar na centralidade da gestão pública a meta fiscal de superar a fome, retomar o investimento em infraestrutura social por meio de um ação econômica ecológica e humana. Na educação uma multiplicidade de ações na educação popular para chegar o chamado a comunidades de fé em parceria com a CNBB e CONIC e no campo acadêmico a curricularização da economia de Francisco e Clara do ensino universitário ao ensino básico.
Para isso será necessária uma pedagogia do engajamento em causas populares. Pois nenhuma ação que se pretende ser de Francisco deve teorizar sobre os pobres, mas com eles construir alternativas: “‘E quando dás esmola, atiras a moeda ou tocas na mão do pobre?’. Não fitam nos olhos e não tocam; e este é um afastamento do espírito de pobreza, afastamento da verdadeira realidade dos pobres, da humanidade que toda a relação humana deve ter” (Papa Francisco). Construir o pacto comunitária e coletivamente exigirá bastante humildade de se colocar ao lado de processos históricos de lutas já existentes e coragem em reafirmar o caráter colaborativo e não central da Economia de Francisco e Clara, que portanto, está na decisão de que ela não seja um arcabouço ideológico – isso os movimentos já possuem –, ela é um convite a inspirar-se em processos de transformação e cumprir uma economia moral: Onde estarão os pobres? Qual a centralidade do trabalho? Que trabalho? Como encarnar as realidades em projetos?
Foi assim que o Papa Francisco advertiu os jovens em Assis:
- Olhar o mundo com os olhos dos mais pobres. O movimento franciscano soube inventar na Idade Média as primeiras teorias econômicas e até os primeiros bancos solidários (os “Monti di Pietà”), porque olhava o mundo com os olhos dos mais pobres. Vocês também melhorarão a economia se olharem as coisas a partir da perspectiva das vítimas e dos descartados (…).
- Vocês são acima de tudo estudantes, estudiosos e empresários, mas não se esqueçam do trabalho, não se esqueçam dos trabalhadores. O trabalho das mãos. O trabalho já é o desafio do nosso tempo e será ainda mais o desafio de amanhã. Sem trabalho digno e bem remunerado, os jovens não se tornam verdadeiramente adultos, as desigualdades aumentam.
- Encarnação. Nos momentos cruciais da história (…), homens e mulheres deram origem a escolas e universidades, a bancos, a sindicatos, a cooperativas, a instituições. Vocês mudarão o mundo da economia se, junto com o coração e a cabeça, também usarem as mãos.
A linguagem do Papa Francisco é impossível de ser mais nítida: colocar-se em processos de transformação da vida dos empobrecidos por esse sistema exigirá engajamento em fortalecer em comunidades, associações, municípios a cultura do encontro em que nos colocaremos a produzir comunidades colaborativas, cooperadas e organizadas politicamente para decidir sobre seu futuro.
Em segundo lugar, diante do mundo do trabalho destroçado pela ganância das grandes corporações, em especial no Brasil, pela reforma trabalhista e a revolução tecnológica, é preciso um esforço conjunto para recuperar a dignidade do trabalho e da participação econômica através da descentralização da ação do Estado e o fortalecimento de comunidades, territórios e municípios desenvolvendo campos tecnológicos no paradigma do cuidado, acolhida e defesa de direitos geridos democraticamente pelo próprio povo.
E, por fim, a beleza da encarnação do Filho de Deus até os dias de hoje está no compromisso, o compromisso que se estende às realidades mais atingidas pelo capital. E isso é um compromisso martirial, é compreender-se no enfrentamento ao modelo de morte em que a Economia de Francisco e Clara tomba todos os dias com o assassinato de um indígena, com o lawfare que se estabelece contra um jovem advogado negro ativista, com a precarização da vida de uma mulher que constrói a economia solidária, com uma irmã boliviana ao lutar contra a privatização das águas ou um companheiro ao lutar contra mineração em Jáchal em San Juan, na Argentina. A centralidade não é levar o grito, nem mesmo escutar apenas, é estar ao lado.
A Economia de Francisco e Clara volta de Assis comprometida a se encarnar, porque “a realidade será sempre superior à ideia!”. E o Papa Francisco não nos permite vacilar, nos provoca a seguir organizando territorialmente brechas para a organização territorial. A convocação para nos inserirmos em alternativas produtivas, em esmiuçar formas cooperativas, em anunciar formas de desenvolvimento alternativo, em exigir a inserção econômica de cadeias produtivas fora das bolsas de valores e a resistência por reivindicar o valor da vida para além do mercado são marcas nobres para um movimento que reivindica uma nova moral econômica, mas seu êxito parte da capacidade em dialogar com as classes populares desta terceira década do século XXI.
Articular-se com comunidades de fé, ir aonde uma boa parte das lideranças políticas não alcançam, saber relacionar-se com a oração e postular compromissos para o bem comum é parte do que o Papa Francisco chamou de método sentipensante, ou seja, o comprometer-se em dialogar com o coração, seus medos, suas ausências, e levar a compreensão de que são saídas coletivas que darão respostas aos problemas impostos pelo modelo econômico como individuais. A história prova a cada relato de povos que constroem sua história e resistem ao modelo de dominação capitalista que todo movimento coletivo já é uma forma revolucionária de viver. Aproveitar o momento único de canalizar essa energia para novos modos de produção comunitária, será evidentemente uma façanha a ser alcançada por nós. Pois, como disse o Papa Francisco, nossa tarefa é não permitir que a sociedade durma em paz enquanto a dor do outro for um ativo financeiro.
“Digo-o seriamente: conto convosco! Por favor, não nos deixeis em paz, dai-nos o exemplo! E digo-vos a verdade: para viver neste caminho é preciso coragem e, às vezes, é preciso uma pitada de heroicidade”.