“Este é um governo que se estabelece neste tripé: a frente ampla liberal, Lula mais à esquerda e vinculado às perspectivas sociais, e setores da sociedade civil, negros, mulheres e vítimas da violência política, que se estabelecem como alternativa política concreta de voz no governo. A tarefa será muito difícil”, afirma o pesquisador Michel Gherman
Por: Patricia Fachin | IHU
“O governo que está começando tem menos cara de governo e mais cara de projeto de país”, e, à frente da presidência da República pela terceira vez, Lula tem uma tarefa difícil: “criar um governo de frente ampla” e “uma nova oposição”, disse Michel Gherman ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em entrevista concedida por telefone. Segundo ele, a “tentativa de reconstrução”, enfatizada por Lula no discurso ao Congresso Nacional durante a posse presidencial, diz respeito à “reconstrução do país que ele próprio criou, não à reconstrução do país pré-Lula. Isto é importante: um país mais igualitário, mais colorido, com reconhecimento das minorias”.
Entretanto, adverte, a tentativa de cooptar partidos de centro-direita por parte do governo pode ter efeitos nefastos para a democracia futura. “Lula está sendo tão bem-sucedido na cooptação dos partidos de centro-direita, que, talvez, ele deixe como oposição somente os bolsonaristas. E isso é um risco porque é importante ter uma oposição democrática no país”, pontua.
Na entrevista a seguir, o historiador comenta possíveis conciliações e rupturas a partir da nova gestão e destaca pontos positivos do discurso presidencial, como a sinalização de responsabilização e punição por crimes cometidos no governo anterior. “Lula foi muito feliz no primeiro discurso quando falou da punição de acordo com os ritos cabíveis em lei. Quando se falou de crimes, não se trata de acusação conspiracionista. Então, se tem crime, tem punição. É por isso que a história do sigilo de cem anos é muito importante. É preciso abri-lo, é preciso que se reconheça e é preciso que se analise se houve crime e, havendo crime, tem que haver punição”, defende.
Gherman também reflete sobre o futuro da extrema-direita brasileira e a realidade paralela em que vive parte da população que está reproduzindo o discurso do exílio do ex-presidente Bolsonaro. “Aqui tem uma coisa potencial que ninguém está percebendo muito, mas que tem a ver com o discurso da extrema-direita, dizendo que o presidente está exilado porque, se estivesse no Brasil, seria preso. Isso tem a ver com a covardia de Bolsonaro de não assumir seus erros, mas também está sendo muito bem utilizado por ele para produzir a ideia de que as pessoas de direita estão sendo exiladas do país. Esse é um discurso muito poderoso e será um problema que vamos ter pela frente. É claro que tudo é muito ridículo, mas o ridículo não é o limite da extrema-direita”, frisa.
Michel Gherman é graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém e doutor em História Social pela UFRJ. É docente adjunto do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos – NIEJ, do Instituto de História da UFRJ. Coordena também o Laboratório de Religião, Espiritualidade e Política – LAREP do Departamento de Sociologia da UFRJ. É pesquisador associado do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo – USP, pesquisador associado do Centro Vital Sasson de Estudos de Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém. Também é professor do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. É diretor acadêmico do Instituto Brasil Israel. Recentemente, publicou o livro O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo (Fósforo Editora, 2022).
Confira a entrevista.
Como o novo governo Lula está começando? Qual sua avaliação dos primeiros movimentos do governo?
Michel Gherman – O governo que está começando tem menos cara de governo e mais cara de projeto de país. É por isso que, às vezes, não conseguimos entender qual é a direção que ele está seguindo. A tarefa do Lula é muito difícil: criar um novo governo, um governo de frente ampla, e uma nova oposição porque a oposição fascista não dá nenhuma possibilidade de diálogo e avanço. Então, uma das tarefas do Lula é, inclusive, criar uma nova oposição.
Tripé + mercado
Em relação ao governo de frente ampla, Lula está mais social e, com algum cuidado, diria que é um Lula mais de esquerda no sentido de que estabelece uma relação mais clara e objetiva de igualdade ou que deseja um país menos desigual, como ele disse nos discursos. Tem, dentro do governo, em alguns setores, como na Economia e no Planejamento, perspectivas liberais muito diferentes da preocupação mais nuclear do governo de combate à desigualdade. Há também tem setores da sociedade civil que entram no governo, talvez pela primeira vez, como no Ministério das Mulheres, no Ministério da Diversidade Racial e no Ministério dos Direitos Humanos, que têm um projeto de país ainda mais progressista do que o projeto do governo. Então, este é um governo que se estabelece neste tripé: a frente ampla liberal, Lula mais à esquerda e vinculado às perspectivas sociais, e setores da sociedade civil, negros, mulheres e vítimas da violência política, que se estabelecem como alternativa política concreta de voz no governo. A tarefa será muito difícil.
Além disso, tem um quarto ator, que é o mercado, que entra em algum momento na crítica ao governo, falando sobre inépcia, medo e falta de capacidade. Mas o mercado não reagiu, como está reagindo nesta primeira semana de governo, ao que foi feito no governo neonazista de Bolsonaro, que desestruturou todo o projeto de país, e tem nas mãos a possibilidade de desestruturação da ordem econômica. A relação do mercado com o governo, hoje, é bastante tensionada. O distensionamento dessa relação pode ajudar no avanço dos outros elementos do tripé.
Alguns analistas, ao comentarem os primeiros movimentos do governo, chamam a atenção para a retomada do espírito de acomodação e, mais ainda, de conciliação, que marcaram os outros dois mandatos de Lula. O que as primeiras medidas do presidente sinalizam sobre isso? Em que aspectos este tende a ser um governo conciliador?
Michel Gherman – O espírito de conciliação não marcou somente os governos Lula. Ele marcou a história republicana do país. Lula assumiu o primeiro mandato em 2002 quando, em algum sentido, se estabeleceu, a partir da Carta ao Povo Brasileiro, como parte dessa tradição conciliadora. É uma tradição conciliadora que estabelece modificações e transições sem que essas transições estabeleçam responsabilidades com os momentos anteriores.
Costumo dizer que o Brasil é o único país do hemisfério sul em que, por exemplo, a escravidão se consolidou e se fortaleceu quando se transformou em uma prática ilegal. O fim da escravidão não estabeleceu uma responsabilidade, um vínculo entre os prejudicados por ela e os que se beneficiaram dela. E, assim, eu poderia falar de cada momento da história brasileira: do governo Getúlio Vargas, da própria ditadura militar, que se estabeleceu a partir de uma perspectiva de conciliação e não de ruptura, a partir de um discurso que supostamente defendeu a ordem democrática e a salvação da democracia, assim como o final da ditadura militar também se estabeleceu a partir da lógica de que a anistia era importante para manter a ordem e para não estabelecer uma perspectiva de vingança. A subida de um operário ao poder também estabelece uma possibilidade de conciliação entre capital e trabalho, que foi basicamente o foco do Lula nos dois governos anteriores.
Conciliação
Mas o que vejo em relação a esse novo governo, a partir do discurso da posse presidencial, é que há um problema: um dos dois lados da mudança política no país não estabeleceu nenhum discurso de conciliação. Inclusive, estabeleceu um discurso de ruptura até o último momento: até a fuga de Bolsonaro para fora do país, o discurso foi de ruptura. Quem estabeleceu uma certa perspectiva de não ruptura foi o vice-presidente [Hamilton Mourão], quando o presidente brasileiro estava fora do espaço aéreo brasileiro. Mas o discurso dele também não foi de conciliação; foi de manutenção da ordem. Então, de um lado, não teve nenhum elemento de conciliação. De outro lado – do que ganhou as eleições –, tem uma relação profunda entre uma conciliação produzida por um certo concerto democrático liberal, com uma direita liberal e uma esquerda nas suas várias tonalidades. Mas acho difícil falar de conciliação em uma ordem em que um lado nem sequer fala do reconhecimento dos resultados, onde a fuga é a atitude mais próxima da ordem democrática. Conciliação com quem? Com quem está ausente? Com quem não reconheceu os erros e produziu elementos que, para Lula, são práticas genocidas, como ele disse no discurso de posse? É difícil conciliar.
Pagar pelas responsabilidades
O segundo discurso de Lula foi interrompido com gritos da massa: “não à anistia”. Então, há uma possibilidade de conciliação com os que foram enganados por Bolsonaro, mas Lula não vai apostar na conciliação com as práticas genocidas, com a desestruturação do Estado, com o processo de milicialização da sociedade brasileira e a venda de armas. Este Lula é outro Lula. Não é mais o Lula da conciliação que era antes. Afinal, no Brasil estamos diante da possibilidade efetiva de que finalmente haja um grupo que acabe forçado a assumir as responsabilidades durante um período como o da pandemia, mas não só, porque o governo armou setores da população, disseminou discursos de ódio contra grupos minoritários e estabeleceu o desmonte das estruturas sociais. Esse governo, em algum momento, pode estar fadado a pagar pelas responsabilidades que são dele e isso talvez seja uma novidade.
Não sei se estou sendo muito otimista, mas os dois primeiros discursos de Lula indicam algo nessa direção, e, no primeiro deles, ele falou de responsabilidade, de responsabilização cívica e usou a palavra “genocídio”; ele foi aplaudido pelo presidente da Câmara dos Deputados [Rodrigo Pacheco]. O núcleo duro do governo Bolsonaro vai precisar pagar pelos seus atos até porque o próprio Lula pagou pelos seus não atos. Houve uma certa ruptura com a ordem conciliadora brasileira com a própria prisão de Lula.
Quais os três pontos dos discursos do presidente que destacaria?
Michel Gherman – O primeiro ponto é o de não conciliação e responsabilização. Lula chama as coisas pelo nome. Ele falou que a vitória foi contra o fascismo e mencionou, nos dois discursos, o genocídio como uma dimensão que deve ser recuperada e punida. Falar sobre punição é uma novidade muito importante.
O segundo elemento é aquele que indica que ele está mais à esquerda – não à esquerda autoritária, no sentido típico da palavra, mas no sentido de que há um resgate de uma ordem mais igualitária para o país. Lula é um excelente orador no sentido pleno da palavra, não só pelo que fala, mas como fala. A emoção dele quando falou da fome reproduz a noção de que esse é o ponto-chave do seu governo no sentido de um país que tem fome e precisa ser levado em direção a um país que pode ser grande.
Outro elemento foi aquele permitido justamente pela mudança de ordem de Bolsonaro, que foi efetivamente o chamado do povo brasileiro à posse, não mais como coadjuvante, mas como participante da posse. Poucas pessoas acreditaram naquela história da caneta, que é uma história típica do realismo fantástico latino-americano, mas que é também uma forma de chamar as pessoas que o ajudaram naquele momento a participarem da posse. A história da caneta produziu a noção de frente ampla muito claramente naquele momento que vai desde um apoiador do Piauí até o pai da Simone Tebet. Mas, na rampa, isso foi ainda mais poderoso, quando ele chamou o povo brasileiro na sua mais estruturada diversidade: indígenas, crianças negras, catadoras, homens, mulheres, pessoas com deficiência. A ideia do cão vira-lata também é muito poderosa. Ou seja, não é um cachorro de raça que está lá, mas um vira-lata que se chama Resistência. A primeira-dama subindo como uma pessoa que tem poder, mas se torna coadjuvante, o vice-presidente e sua esposa, ou seja, tem ali uma estrutura de estética de país que não poderia ser mais diferente do que a estrutura da posse de Bolsonaro em 2018.
Eu publiquei um artigo na revista Serrote sobre o discurso de Bolsonaro em 2018 e é impressionante observar a diferença. Bolsonaro não cita o vice-presidente, fala do resgate das coisas verde-amarelo e da retirada do vermelho, fala do fim da era do socialismo no país, mas, principalmente, ele centra tudo nele, ou seja, a posse do presidente da República é mais importante do que qualquer outra coisa. Na sua posse, Lula tenta produzir, a partir da sua centralidade, a ideia de que aquela posse é do povo e faz parte dela o vice-presidente, a frente ampla e as pessoas que foram convidadas para subir a rampa junto. É um resgate não de um Brasil desse ou daquele jeito, mas um resgate do Brasil dos brasileiros. Esteticamente, foi uma posse revolucionária.
Um aspecto que chama a atenção é o da reconstrução mencionada pelo presidente Lula quando assumiu o compromisso de “reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos”. O que isso significa na prática?
Michel Gherman – O discurso de Bolsonaro foi um discurso de destruição – sem juízo de valor, não estou dizendo que foi bom ou ruim, mas o que ele apresentou foi um símbolo do fim da ditadura socialista, da ditadura politicamente correta, ou seja, ele marcou uma série de fins, como uma espécie de ponto-final. O discurso do Lula é um parágrafo em que ele estabelece uma tentativa de reconstrução – é essa a palavra que ele usa. Agora, que reconstrução é essa? A reconstrução do país que ele próprio criou, não a reconstrução do país pré-Lula. Isto é importante: um país mais igualitário, mais colorido, com reconhecimento das minorias.
O que isso vai produzir em termos práticos, não sei. Mas, ao mesmo tempo, o discurso também é uma prática. Quando se discursa na presença de inúmeras pessoas, já está se produzindo uma prática. Então, a percepção do país que Bolsonaro impôs em 2018 é diferente da percepção de país que Lula impôs. O convite de Lula às pessoas e a exclusão de Bolsonaro a outras pessoas já estabelecem uma prática e uma nova energia política.
Acredito que a escolha de um ministério militar, branco e masculino, no caso de Bolsonaro, e um ministério profundamente civil, colorido e diversificado, no caso de Lula, já demonstra que os discursos – de um e de outro – já produziram discursos que foram e serão implementados depois. Não acredito que discurso e prática estejam em oposição. O discurso é prática e indica a prática.
Os discursos do presidente e o início do governo tendem a ter alguma incidência sobre a “epidemia do neonazismo”, tal como o senhor a compreende e a explicitou na recente entrevista que concedeu ao IHU? Como esse discurso pode modificar a mentalidade de uma parcela da população que está vivendo uma realidade paralela?
Michel Gherman – Estamos em uma situação em que o discurso de estética nazista do Bolsonaro estabeleceu a circulação dessas ideias de maneira muito livre, de um nazismo que não usa suástica e não fala de judeu, mas se estabeleceu país afora. Existe hoje uma realidade concreta de epidemia que precisa ser controlada e ela tem dinâmicas e possibilidades de espalhamento local. Esse problema pode ser resolvido com três elementos: o reconhecimento dessa realidade, a punição e a educação.
A pergunta, tal qual como os nazistas conseguiram construir Auschwitz, é: como os brasileiros, com toda a carga de discurso humanitário e de conciliação, mediado por uma certa narrativa de cordialidade, elegeram a monstruosidade do Bolsonaro, alguém que tem discursos de ódio contra determinados grupos e foi eleito presidente da República? O discurso do Bolsonaro, aceito por parte da população, continua presente na sociedade. Então, ou tomamos pé disso ou vamos tomar um susto daqui dez, 12 anos. Não estamos livre disso, não.
Como o senhor interpreta a presença do ministro das Relações Exteriores e dos Expatriados da Palestina, Riad Al Malki, na posse presidencial do presidente Lula? Qual o seu significado político dessa presença e o que ela indica?
Michel Gherman – Não vejo por que o representante da Palestina, reconhecida pelo Brasil como Estado independente ainda no governo Lula, não tenha que estar na posse. O ministro da Palestina tem que estar na posse. A pergunta é: por que o primeiro-ministro de Israel [Benjamin Netanyahu] não esteve na posse? Essa pergunta é mais importante se lembrarmos que ele veio na posse de Bolsonaro. É mais importante entender o processo do que o evento: quem veio e quem não veio, e quem veio e quem não veio antes. Por que foi importante Netanyahu vir na posse de uma figura como Bolsonaro e não foi importante vir na posse do Lula? Seria quase um ato de justiça profética ele vir nas duas posses, mas ele não veio. E quando ele veio na posse de Bolsonaro, ajudou Bolsonaro a tomar a comunidade judaica – que é uma comunidade que teoricamente ele também representa – como refém do bolsonarismo ao ir em uma sinagoga em Copacabana e chamar Bolsonaro de líder.
O ministro da Palestina tem que vir e é fundamental que o Brasil retome e coloque seu apoio aos dois Estados, coisa que ele tem feito já na primeira semana do novo governo, no âmbito das Relações Exteriores.
A ausência e a presença mostram os alinhamentos políticos?
Michel Gherman – Acho que não. Claro que seria importante para Lula que viesse um representante de Israel, e houve um esforço para que o representante de Israel viesse. Se o governo de Israel não veio, não foi por falta de convite do governo brasileiro. A questão é o porquê da ausência.
Das medidas iniciadas pelo governo, como a revogação de alguns decretos, por exemplo, quais foram as mais significativas?
Michel Gherman – Considero muito importante a dimensão simbólica da política. Então, num primeiro momento, há dois elementos que são importantes: a revogação do decreto das armas e quando o ministro da Justiça [Flávio Dino] falou da responsabilidade individual. A segunda questão fundamental é o fato de o Ministério da Justiça ter colocado o caso de Marielle [Franco] como elemento central no sentido de ser uma questão de honra solucioná-lo. Ter uma ministra [da Igualdade Racial] que, entre outras coisas, é irmã de Marielle [Anielle Franco], é uma coisa simbólica muito importante não só para o governo Lula, mas para a retomada da normalidade no país.
Uma questão que gerou discussão na quarta-feira foi a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia para representar o governo no combate à desinformação sobre políticas públicas. Alguns criticam a iniciativa porque não há ordenamento jurídico para tal. Como vê essa iniciativa à luz da disseminação de fake news? Esse é o mecanismo mais eficaz para resolver o problema da desinformação?
Michel Gherman – Não sou capaz de dizer, mas está havendo um debate interno sobre a necessidade de regulação das mídias, o que será fundamental. É um grande desafio no mundo inteiro, e me parece estranho que o ministro das comunicações [Juscelino Filho] seja um ministro vinculado, em algum momento, à base de apoio a Bolsonaro.
As estruturas que podem combater as fake news e as ameaças à democracia também têm uma dimensão simbólica. Não estou discutindo se são legais ou viáveis, mas a discussão simbólica sobre o combate à desinformação é um risco à vida em comum, à vida social, é fundamental que saibamos disso. O governo está colocando o tema na mesa, e é importante discutir a desinformação. O discurso tosco de que a liberdade de comunicação, de informação e de opinião pode superar as ameaças às ordens democráticas está sendo posto de maneira prática no sentido de mostrar que não há oposição entre liberdade de opinião e regulamentação. Essa é uma nova fase, e poucos governos no mundo deram respostas adequadas para isso, como a Alemanha. O Brasil, que em algum momento foi vítima da desinformação, com o novo governo está colocando essa questão, o que é fundamental.
O que tende a acontecer com a extrema-direita a partir de agora? Uma pulverização, como alguns têm apostado ou uma radicalização da realidade paralela?
Michel Gherman – A extrema-direita brasileira está tomando o seu destino nas próprias mãos. O que ela está produzindo para si própria é, em algum sentido, a ideia de que o seu líder virou um líder no exílio – ao menos é o que estamos vendo até agora –, e não em qualquer exílio, mas na Flórida, em Orlando. Isto é importante em termos de discurso e produção de imagem: a ideia de exilados na Flórida produz um diálogo com outros exilados da Flórida. Esse é um discurso poderoso porque tem uma dimensão profunda da comparação desse exílio com o exílio de cubanos que fugiram do socialismo de Cuba. Aqui está a tentativa do discurso.
O segundo elemento é que Bolsonaro não conseguiu produzir um partido para si, nem um setor bolsonarista em um partido só, mas uma certa energia política e um discurso público que nem sequer ele controla, mas que está estabelecido no Congresso Nacional em vários partidos. Temos que ver o que vai acontecer com esses bolsonaristas eleitos que, apesar de serem numerosos, estão longe de representar uma ameaça à maioria parlamentar. O grande desafio está em como produzir uma oposição que não seja essa. Ao que parece, Lula está sendo tão bem-sucedido na cooptação dos partidos de centro-direita, que, talvez, ele deixe como oposição somente os bolsonaristas. E isso é um risco porque é importante ter uma oposição democrática no país.
O terceiro ponto é o descontrole de uma cultura política de extrema-direita no Brasil, que está colocada porque está na sociedade. Se isso vai virar uma política institucional, não sei. Se perspectivas neonazistas, de violência, de exclusão, homofóbicas, racistas, vão virar uma representação política no futuro, como viraram com Bolsonaro, não dá para dizer ainda, mas temos matéria-prima para que isso aconteça. Há um discurso político produzido ou cooptado pelo bolsonarismo que continua na sociedade brasileira empoderada.
Na noite anterior à posse do presidente Lula, grupos bolsonaristas disseminavam fake news e muitos bolsonaristas aguardavam uma intervenção militar na expectativa de que Lula não fosse assumir o cargo. Esse tipo de desinformação e discurso tende a continuar nos próximos quatro anos?
Michel Gherman – Um dos elementos do fascismo é a produção de uma nova temporalidade que combate a temporalidade hegemônica. E está sendo criada uma nova temporalidade que é a temporalidade do exílio: “Estamos no exílio para esperar.” Frases como essa viram memes e não as levamos muito a sério, a exemplo daquela frase: “Esperem 72 horas.” É quase o infinito, ou seja, as pessoas não perdem a esperança de que alguma coisa está sendo produzida e nosso líder está produzindo alguma coisa. Isso não vai acabar, e é o grande elemento que vai sustentar a oposição antipetista bolsonarista.
Além da dimensão da temporalidade, tem a dimensão do espaço. Tem uma relação entre tempo e espaço que é muito interessante, ou seja, não reconhecemos o resultado das eleições, vamos embora e vamos para Orlando. Quem está em Orlando? A maior comunidade cubana de exilados do mundo. E por que eles estão exilados em Orlando? Por causa de Cuba. Aqui tem uma coisa potencial que ninguém está percebendo muito, mas que tem a ver com o discurso da extrema-direita, dizendo que o presidente está exilado porque, se estivesse no Brasil, seria preso. Isso tem a ver com a covardia de Bolsonaro de não assumir seus erros, mas também está sendo muito bem utilizado por ele para produzir a ideia de que as pessoas de direita estão sendo exiladas do país. É um discurso muito poderoso e será um problema que vamos ter pela frente. É claro que tudo é muito ridículo, mas o ridículo não é o limite da extrema-direita.
Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino já estão falando isso. Já tem aí uma determinação de atuação que é fundamental. A própria ideia de Orlando é significativa porque Orlando é uma cidade para exilados, para ser fotografada por exilados. É quase uma cidade cenográfica de exílio. A escolha de Bolsonaro, a casa em que ele está, a frequência de brasileiros na frente da casa, é um potencial muito grande de produção de imagem de exílio.
Quais os riscos dessa encenação para a democracia brasileira e para o desempenho do novo governo porque, embora o presidente Lula tenha se manifestado sobre a responsabilização, que diz respeito à atuação do Estado, outra postura é entrar no jogo de pingue-pongue com os bolsonaristas, como fez Bolsonaro com a esquerda. Quais os desafios do próprio presidente em relação a qual postura tomar para governar visando à elaboração de um projeto de país?
Michel Gherman – Lula foi muito feliz no primeiro discurso quando falou da punição de acordo com os ritos cabíveis em lei. Quando se falou de crimes, não se trata de acusação conspiracionista. Então, se tem crime, tem punição. É por isso que a história do sigilo de cem anos é muito importante. É preciso abri-lo, é preciso que se reconheça e é preciso que se analise se houve crime e, havendo crime, tem que haver punição – ao contrário do que houve no final da ditadura militar, quando houve crime e não houve punição. O debate não é se deve-se ou não punir Bolsonaro, mas é que os que cometeram crime durante o governo Bolsonaro têm que ser punidos. Por exemplo, não dá para, cinco anos depois do assassinato de Marielle, não sabermos qual é a motivação e o mandante. Não ter punição pode comprometer o futuro democrático do Brasil.