Em Brasília para acompanhar a posse do presidente, representante o jornalista uruguaio Mario Lubetkin, representante regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para a América Latina e o Caribe, defende união dos países latino-americanos para combater a insegurança alimentar em um cenário de crises climática, econômica e energética
Em seu discurso proferido logo após receber a faixa presidencial de representantes da sociedade brasileira, no domingo (1º/01), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se emocionou ao mencionar situações atuais de miséria da população brasileira. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, divulgado no ano passado, 33,1 milhões de brasileiros não têm a garantia de comida na mesa.
Bandeira da primeira passagem de Lula pelo Planalto, o fim da fome no Brasil só se tornou realidade em 2014, já no governo Dilma Rousseff, também do PT, quando o país oficialmente saiu do chamado mapa da fome, sistematizado pela ONU.
"O presidente Lula sempre foi muito sensível ao problema da fome. Aliás, foi aqui no Brasil que se lançou a ideia de fome zero, depois incorporada pelas Nações Unidas. Não tenho dúvidas de que, para ele, a luta contra a fome é uma prioridade absoluta", afirma o jornalista uruguaio Mario Lubetkin, representante regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para a América Latina e o Caribe.
Ele observa, contudo, que o cenário político-econômico atual é muito diferente daquele encontrado pelo petista 20 anos atrás. E isso faz com que seja necessário outro processo para enfrentar o mesmo objetivo, ou seja, o enfrentamento da miséria.
"Hoje atravessamos uma crise na segurança alimentar que nunca havia acontecido; nunca antes o tema da segurança alimentar esteve no centro do debate mundial", afirma Lubetkin, que acompanhou a posse de Lula em Brasília e ficou no país até a manhã de quarta-feira (04/01), em reuniões com ministros e integrantes do alto escalão do novo governo.
Por se tratar de um problema mundial, o representante da FAO deixa claro: "Ninguém sozinho pode resolver. Lula demonstrou, a nível mundial, ter uma sensibilidade enorme para a segurança alimentar. Mas ele, só, não vai resolver o problema. Ele vai dar uma contribuição, esperamos, incrível. Mas isso tem de ser um processo de cooperação, de articulação, de interação, de integração da América Latina e do Caribe, de um tema que nunca foi o elemento principal e hoje é", diz.
Como o senhor analisa as preocupações do recém-empossado presidente Lula no que diz respeito à volta do Brasil ao mapa da fome?
O presidente Lula sempre foi muito sensível ao problema da fome. Aliás, foi aqui no Brasil que se lançou a ideia de fome zero, depois incorporada pelas Nações Unidas… Não tenho dúvidas de que, para ele, a luta contra a fome é uma prioridade absoluta. Mas a luta que ele está colocando para lograr este objetivo não tem relação com a que ele fez [nos mandatos anteriores]. O objetivo é o mesmo: eliminar a fome, garantir café da manhã, almoço e janta para todos os cidadãos do Brasil. Mas os processos, o quadro político e o cenário internacional que havia nas administrações Lula 1 e Lula 2 eram bem diferentes do atual. Hoje atravessamos uma crise na segurança alimentar que nunca havia acontecido; nunca antes o tema da segurança alimentar esteve no centro do debate mundial. […] São 830 milhões de pessoas que passam fome [no mundo], mais de 3 bilhões que não se alimentam bem. Na América Latina, são 56 milhões de pessoas que passam fome, e cerca de 27% estão aqui no Brasil.
E o que explica essa situação?
É uma combinação de fatores. O tema da guerra [russo-ucraniana] puxou nessa direção, mas ela não é a responsável única. […] Não podemos esquecer também o efeito da [pandemia de] covid nos últimos três anos do ponto de vista econômico na realidade alimentar, na indústria alimentar. […] E nada pode ser visto sem combinar o fator de crises que estão acontecendo hoje. Estamos falando da crise alimentar, mas também há a crise energética, a crise climática, a crise econômica. São elementos bem graves, bem complexos, bem estruturais, que têm de ser avaliados em conjunto para procurar soluções que tenham estabilidade, resiliência.
Como o senhor entende que devem ser as soluções?
Nesse ponto de vista não podemos esperar achar a solução perfeita. Lógico que o governo [que acaba de assumir] está procurando achar soluções imediatas, mas queremos soluções sustentáveis, porque é preciso combinar as soluções imediatas com as soluções sustentáveis. Esse é o desafio. Desafio do governo brasileiro, do governo argentino e de todos os governos da América Latina e do Caribe. Uma coisa bem clara: ninguém sozinho pode resolver. Lula demonstrou, a nível mundial, ter uma sensibilidade enorme para a segurança alimentar. Mas ele, só, não vai resolver o problema. Ele vai dar uma contribuição, esperamos, incrível. Mas isso tem de ser um processo de cooperação, de articulação, de interação, de integração da América Latina e do Caribe, de um tema que nunca foi o elemento principal e é hoje. E, sem dúvida, acredito que o presidente Lula vai puxar nessa direção, como ele falou. […] No discurso de ontem [domingo], ele falou em dar prioridade na erradicação da pobreza, em dar subsídios aos mais pobres, em investir na educação e na atenção médica. […] Que a FAO seja e tenha um papel importante. […] Temos uma liderança global reconhecida.
Como a FAO avalia o atual cenário brasileiro?
Não é a FAO quem tem o papel de avaliar o que aconteceu, como aconteceu e de que forma aconteceu. É papel da FAO apoiar o governo e as política de governo. […] Não há dúvida que a situação hoje é muito complexa para o Brasil, que havia saído do mapa da fome em 2014, uma coisa gloriosa, incrível, e agora está em nível de situação de segurança alimentar que vai a cerca de 27% do total de toda a América Latina. […] O que acontecia no mundo e na América Latina quatro anos atrás não tem nenhuma relação com o que acontece hoje. E isso, aumentado pelas tendências globais e dos problemas locais estruturais, leva a um panorama bem complicado. Nossa posição é apoiar, dar todo o conhecimento para poder respaldar, transmitir as experiências de outras realidades e de outros tempos, se as autoridades brasileiras nos pedirem isso.
A piora verificada nos índices brasileiros é compatível com o cenário internacional?
Não tenho dúvida que é compatível… A palavra compatível não é justa. O que há é uma tendência frente a outras realidades. O Brasil é muito grande, o maior país da região e o que acontece aqui afeta terrivelmente a região. […] Não há dúvida de que a América Latina toda está olhando para o que acontece no Brasil desde ontem [domingo, dia 1º de janeiro], porque qualquer coisa em qualquer direção, espero que seja uma direção de resultados importantes, positivos, rápidos, sem dúvida pode melhorar a situação da América Latina.
A gente organizou no início de dezembro em Buenos Aires […] uma grande reunião de agricultura da América Latina e Caribe [na cúpula da Celac, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], da qual participaram cerca de 20 ministros. […] Foi bem interessante porque não foi uma reunião dos ministros falando sobre todos os problemas que eles têm. Sabemos que não estamos em um momento bom, este é o diagnóstico. Mas falamos sobre as soluções. E o interessante […] é que ninguém tem a solução que abarca o todo. Todos têm soluções parciais. Mas a soma das soluções parciais, em um processo de integração, de fluidez, de diálogo, de intercâmbio, com alguns países líderes que serão os que vão puxar para frente isso, vai dar resultado. A pergunta é justamente qual vai ser o espaço que o Brasil vai ocupar nisso aí. Há uma esperança muito grande, como se pode avaliar, dos outros países.
A julgar pelo que o senhor viu em Brasília nesses últimos dias, qual é o maior desafio?
O desafio é esse. Ninguém sozinho, o presidente Lula sozinho não vai poder fazer. Todo esse programa para a América Latina vai ter de envolver a América Latina, vai ter de envolver até o G20 [grupo das maiores economias do planeta], porque não é um problema apenas latino-americano. É um problema global, onde há especificidades e oportunidades latino-americanas. […] Por exemplo, a produção alimentar. Sem dúvida a América Latina tem uma oportunidade incrível, pois a região pode produzir alimentos suficientes para 1,3 bilhão de pessoas, mas só produz a metade. Portanto, potencialmente, temos uma oportunidade excepcional. O problema é a visão, a capacidade, as articulações. E a FAO está na primeira linha para apoiar com todo nosso conhecimento e capacidade.