A violência contra os povos indígenas não pode ser naturalizada. Impunidade é inaceitável e pode alimentar condições para que violações continuem também em outros territórios

Grande área de garimpo com dezenas de barracões na região do rio Uraricoera na Terra Indígena Yanomami
| Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real.

Por CIMI

A situação que vive o povo Yanomami dentro de sua terra indígena ganhou uma ampla repercussão nas últimas semanas, dentro e fora do país. A trágica realidade enfrentada pelos indígenas chamou a atenção de boa parte da sociedade brasileira, que manifesta de diversas formas sua indignação, solidariedade e repúdio diante das cenas e informações divulgadas.

Ao mesmo tempo, o novo governo federal começou a tomar uma série de medidas emergenciais, tanto no campo do atendimento à saúde como no da segurança territorial e desintrusão dos garimpeiros de dentro da terra indígena.

É importante destacar que esta situação não foi revelada apenas agora. Organizações indígenas e aliados vêm denunciando e documentando sistematicamente o que estava ocorrendo dentro da Terra Indígena (TI) Yanomami há, pelo menos, cinco anos.

O ponto de inflexão na retomada maciça do garimpo dentro deste território começou a ser constatado ainda em 2017, quando informações davam conta da proximidade de acampamentos de garimpeiros com relação a aldeias do grupo indígena Moxihätëtëa, em situação de isolamento voluntário, na região da Serra da Estrutura.

Ainda em junho de 2018, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) já havia denunciado o provável assassinato de dois indígenas isolados Moxihätëtëa por garimpeiros naquela mesma região.

Uma Ação Cível Pública do Ministério Público Federal (MPF) resultou, já em novembro de 2018, numa decisão firme da Justiça Federal, obrigando a União a reestabelecer as Bases de Proteção Etnoambiental desativadas no território Yanomami.

A partir desse momento e até os dias atuais, a situação piorou de forma extraordinária e tudo isso foi amplamente denunciado pelas organizações indígenas e seus aliados, de forma permanente, inclusive com estudos altamente qualificados.

O tema ganhou mais espaço nos meios de comunicação a partir, principalmente, de maio de 2021, quando todo o país assistiu as imagens do tiroteio contra a comunidade Yanomami de Palimiú, no interior da terra indígena, e à série de ataques armados que se seguiu durante os meses seguintes.

Neste período de quatro anos, entre o final de 2018 e de 2022, houve outras decisões judiciais no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, incluindo a mais alta instância, o Supremo Tribunal Federal (STF), e também a publicação de uma medida cautelar por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em maio de 2020, em plena pandemia. Todas estas medidas foram sistematicamente descumpridas e desconsideradas pelo governo federal, presidido por Jair Bolsonaro.

A relação sinérgica entre o aumento do garimpo e a desassistência na saúde criou condições objetivas que comprometem a sobrevivência física e cultural do povo Yanomami. E ambos os vetores tiveram durante quatro anos a digital, explícita e intencional, do governo federal e a cumplicidade da elite política e empresarial de Roraima

O garimpo avançou e cresceu exponencialmente nestes últimos anos dentro da TI Yanomami, adquirindo uma maior complexidade de meios disponíveis, de maquinário e tecnologias de comunicação, bem como uma maior capacidade de destruição.

Este avanço do garimpo, como já foi suficientemente demonstrado, coincidiu com a desestruturação do sistema de atendimento à saúde do povo Yanomami através do Distrito Especial de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana e da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (Sesai).

Postos de saúde foram abandonados e desabastecidos, quando não ocupados pelos próprios garimpeiros; as equipes de profissionais de saúde ficaram sem condições para as tarefas de atenção primária nos postos e, a partir deles, nas visitas periódicas às comunidades. O resultado é o que hoje todos estamos constatando: aumento da violência contra os Yanomami, piora significativa dos indicadores de saúde relativos à malária, à desnutrição, à verminose ou a doenças respiratórias.

A relação sinérgica entre o aumento do garimpo e a desassistência na saúde criou condições objetivas que comprometem a sobrevivência física e cultural do povo Yanomami. E ambos os vetores tiveram durante quatro anos a digital, explícita e intencional, do governo federal e a cumplicidade da elite política e empresarial de Roraima.

Por isso, mais do que falar de “crise”, deve-se falar de situação grave de extermínio de um povo causada por um conjunto sistemático de medidas, ações e inações do governo.

Em janeiro de 2023, o novo governo federal decretou a Emergência Sanitária de Saúde Pública e começou a fazer um levantamento detalhado das informações e a adotar uma série de medidas que nos parecem absolutamente necessárias e fundamentais.

Todas estas medidas buscam, em um primeiro momento, ativar as condições emergenciais de atendimento ao povo Yanomami, com o objetivo de salvar vidas; ao mesmo tempo, estas medidas deverão ter como horizonte próximo a recuperação das condições para uma adequada atenção primária dentro do território, em diálogo com as comunidades indígenas, que permita retomar os programas de atendimento, prevenção e cuidado cotidiano da saúde do povo Yanomami.

Entretanto, as medidas de emergência sanitária não serão efetivas se não for abordada de forma contundente, firme e permanente a desintrusão do garimpo de dentro da TI Yanomami e de outras terras indígenas no país, bem como o desmantelamento de toda a estrutura de apoio e de toda a cadeia de interesses que há por trás do garimpo e que envolve agentes públicos e privados.

As iniciativas de controle do tráfego aéreo e fluvial, adotadas pelo governo desde a semana passada, eram medidas necessárias e possíveis – o que só evidencia, mais uma vez, a falta de vontade política do governo anterior, manifesta em sua permanente omissão.

É importante que estas medidas sejam acompanhadas por outras, como o controle da venda de combustíveis ou mantimentos por parte de empresários locais e, efetivamente, a continuidade das investigações até chegar aos mandantes e articuladores da rede criminosa que lucra com a destruição do território e dos meios de vida da população Yanomami.

É fundamental instalar as medidas necessárias, no âmbito dos inquéritos policiais e da retomada da proteção territorial, para evitar que o garimpo se desloque em direção a outras terras indígenas ou, inclusive, retorne ao mesmo território Yanomami

A desintrusão dos garimpeiros é medida urgente, como o confirma a atuação rápida do novo governo. A situação é complexa e exige determinação. Imagens de movimentos e deslocamentos de grupos de garimpeiros, por via fluvial ou varando no meio da floresta, circularam nos últimos dias em mensagens em redes sociais e em imagens de vídeos. Estes deslocamentos não significam necessariamente a livre e espontânea decisão de sair definitivamente do território.

É fundamental instalar as medidas necessárias, no âmbito dos inquéritos policiais e da retomada da proteção territorial, para evitar que o garimpo se desloque em direção a outras terras indígenas ou, inclusive, retorne ao mesmo território Yanomami, como demonstra a apreensão, pelas forças de segurança, de garimpeiros que adentravam o território nesta quarta-feira, dia 8.

A saída dos garimpeiros deverá ser acompanhada de medidas de apuração dos crimes cometidos contra o povo Yanomami: assassinatos, ameaças, intimidações, exploração sexual, aliciamento e destruição do ambiente, com o qual os Yanomami tecem, com uma riqueza cultural imensurável, sua visão de mundo e seu projeto de vida.

Somos cientes da complexidade deste trabalho de investigação, considerando o volume do contingente garimpeiro. Os crimes cometidos, contudo, precisam ser apurados; do contrário, o Estado passaria a mensagem de uma naturalização da violência contra os povos indígenas e de uma impunidade absolutamente inaceitáveis, alimentando as condições para que esta violência continue também em outros territórios.

Medidas sociais e econômicas que favoreçam a inserção e empregabilidade de pessoas envolvidas no garimpo parecem fundamentais. No entanto, estas medidas não poderão ser tomadas em detrimento da necessária apuração dos crimes cometidos contra o povo Yanomami.

É preciso salientar que a configuração social do garimpo hoje é muito mais complexa que décadas atrás. Nunca interessou à elite política de Roraima, que ocupa o poder regional há décadas, a busca de alternativas para estes segmentos sociais, pois sempre defenderam o garimpo como solução econômica para o estado e sempre defenderam apenas seus próprios interesses, mesmo cientes do desastre ambiental e da violação de direitos que o garimpo significava.

Preocupam-nos, por outro lado, declarações públicas de membros do atual governo federal que apontam para soluções que contemplam a persistência desta prática. A possibilidade de concretizar áreas reservadas ao garimpo em Roraima, como anunciado pelo ministro da Defesa, mesmo que “fora das terras indígenas”, mostra a pouca compreensão que se tem sobre o problema.

Esta proposta estava contemplada no projeto de lei de autoria do governo estadual de Roraima, presidido por Antônio Denarium, aprovado pela Assembleia Legislativa do estado em janeiro de 2021 e suspenso um mês depois pelo STF.

Além de autorizar de forma irresponsável o uso do mercúrio, organizações indígenas e a sociedade civil chamaram a atenção para o fato de que a regularização do garimpo “fora da terra indígena” acabaria servindo, de forma evidente, para a lavagem do ouro que continuaria sendo retirado ilegalmente dentro dos territórios indígenas.

Nos surpreende agora que um tema já superado retorne como suposta solução aos problemas econômicos de Roraima – e, neste caso, com a anuência e apoio de membros do novo governo federal. O garimpo nunca foi, nem será, solução econômica para Roraima e apenas irá manter a permanente degradação ambiental, violação de direitos e manutenção dos privilégios de uns poucos.

As responsabilidades políticas, civis e criminais deverão ser apuradas com rigor e deverão alcançar os mais altos interesses econômicos e políticos, tanto no âmbito do governo federal anterior como no âmbito do poder Legislativo

Entendemos que o atual governo federal precisa manter a firmeza e a coesão, compreender o histórico da região e, sobretudo, escutar com maior profundidade aos povos indígenas e suas organizações.

Destacamos, por fim, que as responsabilidades políticas, civis e criminais deverão ser apuradas com rigor e deverão alcançar os mais altos interesses econômicos e políticos, tanto no âmbito do governo federal anterior como no âmbito do poder Legislativo.

É estarrecedor constatar que aqueles que ocuparam as responsabilidades nos Ministérios de Justiça, Saúde, Meio Ambiente ou Direitos Humanos durante os quatro anos de violência contra o povo Yanomami hoje ocupem lugares na Câmara e no Senado Federal, sem que sejam responsabilizados pela omissão e inação no tempo em que exerciam responsabilidades públicas com competências e atribuições fundamentais.

É inaceitável que deputados federais que sempre defenderam o garimpo e que mantiveram vínculos com o desmando na saúde pública hoje sejam premiados e conduzidos para lugares de poder.

Na abordagem da situação atual da TI Yanomami, há muitas coisas em jogo e não podemos pretender resolvê-las de forma rápida e simples. É necessário atuar com firmeza e somar forças.

Estão em jogo os direitos, os territórios e os projetos de vida dos povos indígenas de Roraima e de todo o Brasil; estão em jogo as possibilidades de que o Brasil supere uma mentalidade predatória e um esquema de privilégios construídos sobre a vida dos povos indígenas e outras comunidades; estão em jogo as condições para pensar uma Roraima diferente, plural, justa, com perspectivas econômicas sustentáveis e próprias; estão em jogo, em síntese, as oportunidades de superar o domínio instalado pelas elites políticas e econômicas deste país.

10 de fevereiro de 2023