SSB
12/07/2020
Arte: Hanzala Khokhar - Pexels

“A alma e o contágio” é o título da intervenção do psicanalista Massimo Recalcati, ocorrida dia 10 junho de 2020, no evento “Repubblica delle Idee”, na Itália: uma reflexão sobre o que passamos e sobre onde encontraremos os caminhos a seguir.

A entrevista é de Laura Montanari, publicada em La Repubblica, 10-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto para o site IHU.

Voltamos para o lado de fora [na Itália], caminhando pelas ruas, mas com máscara e distâncias. O que a Covid-19 deixou dentro de nós, como herança?

Esperamos diversas coisas. Esperamos não esquecer tudo logo. Isso também aconteceu depois do 11 de setembro. Devemos reencontrar o mais rápido possível o direito de não pensar e de dormir em paz. Em vez disso, seria uma tragédia na tragédia se não tivéssemos aprendido nada, se voltássemos a dormir como se nada tivesse acontecido. Há pelo menos três imensas lições da Covid-19 que nos conviria não esquecer e herdar.

primeira: não se pode reduzir a natureza a um mero recurso a ser explorado impunemente.

segunda: não é possível que um país não tenha um sistema de saúde pública espalhado por todo o território e uma escola capaz de garantir educação, pesquisa científica e formação.

terceira: a liberdade não pode coincidir com uma propriedade do indivíduo, não pode ser reduzida ao capricho de fazer o que se quer. Sem a solidariedade, a liberdade é uma palavra vazia. A salvação ou é coletiva ou não pode existir.

De acordo com o Istat (Instituto Nacional de Estatísticas da Itália), o medo e a incerteza causados pela pandemia levarão a um colapso dos nascimentos até 2021. O que você acha?

Penso que o evento do nascimento envolve uma parte de confiança no futuro, e que, no tempo deste trauma coletivo, o horizonte do futuro inevitavelmente se contraiu. Mas, para reaver o futuro, é necessário agir no presente com decisão. Por exemplo, permanecendo próximo dos últimos e dos mais frágeis economicamente; por exemplo, garantindo o direito ao trabalho. Sem trabalho, não há futuro.

Então, como podemos reagir após as ansiedades e a reclusão?

O risco será o de preferir o fechado, a proteção, a defesa ao aberto, à liberdade, à geração. Era um risco já presente antes da Covid-19 nas formas da pulsão securitária, da defesa das fronteiras, da sua militarização. O símbolo do muro havia voltado a ser de grande atualidade de modo inquietante pelos Estados Unidos de Trump até os arames farpados de Orban. O risco que eu vejo é uma acentuação da cultura do muro e da segregação.

A partir do seu observatório clínico, como estiveram as relações entre os casais no confinamento? Houve mais ou menos separações?

A proximidade, quando forçada, é sempre prejudicial ao desejo. Foi o que muitas vezes ocorreu. Ao mesmo tempo, porém, experimentamos que mesmo as relações a distância podem ser próximas.

E as famílias?

As famílias foram o lugar da resistência civil ao vírus. Supriram a ausência da escola, suportaram a angústia dos filhos, mantiveram aberta a esperança, suportaram materialmente condições de vida muitas vezes difíceis.

O que pode nos ajudar a retomar a normalidade que o vírus nos roubou: imaginar as férias, inscrever-se em um curso de ioga, ler um livro...? Como podemos reencontrar o equilíbrio que perdemos, o abraço com os amigos que nos falta?

Continuar distinguindo o essencial do não essencial. Porque essa foi outra lição do vírus que seria bom não esquecer tão cedo.

"A liberdade não pode coincidir com uma propriedade do indivíduo, não pode ser reduzida ao capricho de fazer o que se quer. Sem a solidariedade, a liberdade é uma palavra vazia. A salvação ou é coletiva ou não pode existir".