Por Keka Werneck | Amazônia Real
Após quatro anos com a regularização interrompida no governo de Jair Bolsonaro (PL), as comunidades quilombolas do país iniciam uma mobilização nacional para destravar os processos parados no governo federal. Na gestão presidencial passada, apenas quatro foram tituladas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (duas delas na Amazônia) – em 2019 -, mas por força de decisão judicial, e por processos que já haviam sido concluídos antes de seu governo. Em 2017, quando era pré-candidato, Bolsonaro deu o tom do que viria ser como presidente da República: “nenhum centímetro de terra para quilombolas e indígenas”.
Em março de 2023, o governo do presidente Lula Inácio Lula da Silva (PT) titulou três comunidades, mas Biko Rodrigues, diretor da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas Negras Rurais Quilombolas), diz que há pelo menos 39 comunidades reconhecidas prontas para serem tituladas pelo governo federal. As três tituladas em março são Lagoa dos Campinhos e Serra da Guia, em Sergipe, e Brejo dos Criolos, em Minas Gerais. Em maio, o governo reconheceu cinco comunidades quilombolas, duas delas na Amazônia Legal: Campina de Pedra, em Mato Grosso, e Lajeado, no Tocantins. O reconhecimento é o início da fase final do processo no Incra. Antes dessas, em 2023, mais oito ações também avançaram para esta fase processual. Ainda assim, Biko considera que é preciso acelerar as regularizações.
“É uma demora, é uma morosidade, é uma burocracia e muitos de nós achamos que essa burocracia tem nome e é racismo institucional. Com Bolsonaro, passamos por uma restrição de direitos muito grande, havia uma determinação clara de não demarcar território quilombola. Esperamos que, com Lula, essas condições mudem”, disse Biko à Amazônia Real. Segundo ele, que é uma das principais lideranças quilombolas do país, passados esses primeiros meses, vai aumentar a pressão sobre o Governo para titular terras quilombolas.
A urgência nas titulações e no avanço em outros processos de regularização das comunidades que estão em diferentes estágios é uma das pautas do 2º Encontro de Mulheres Quilombolas do Brasil e da América Latina, que acontece nesta semana em Brasília. O evento está sendo realizado desde quarta-feira (14) e vai até neste sábado (17), no Centro de Estudo Sindical Rural (Cesir), com a participação de 400 pessoas.
De acordo com dados do Incra, há 1.803 comunidades quilombolas em processo de regularização. Destas, 207 estão regularizadas com títulos, sendo que 59 estão apenas tituladas parcialmente.
O número de territórios quilombolas é ainda maior, no entanto. Segundo Isabela Cruz, do Coletivo de Mulheres da Conaq, há aproximadamente 6 mil comunidades autodeterminadas quilombolas no país. Ela acredita que, em algum momento, estes territórios também podem pleitear regularização fundiária.
“O Incra só registra os procedimentos que são abertos na instituição, que são esses 1.803. Mas isso não quer dizer que o órgão já chegou em todas as 6 mil, que também precisam de reconhecimento e título. Nós, dos movimentos sociais, trabalhamos para que todas as comunidades auto determinadas sejam contempladas. Ainda faltam muitas inclusive abrirem o procedimento administrativo no Incra”, explica a liderança.
Biko Rodrigues, diretor da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas Negras Rurais Quilombolas
Isabela Cruz é uma das participantes do 2º Encontro de Mulheres Quilombolas do Brasil e da América Latina que acontece em Brasília nesta semana.
“Tivemos um momento de trevas, com um presidente que se expressava de forma racista. Mas, independente de governos, a luta para garantir a vida quilombola continua. Esta não é uma conta de um, dois, quatro ou seis anos, é de séculos. É o Estado brasileiro que ao longo dos anos tem essa dívida conosco”.
Ela reforça que a luta pela titulação de territórios está na pauta do encontro, assim como saúde, segurança e educação e que esses temas serão expostos à primeira-dama Janja Lula da Silva, à ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e ao ministro do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, que devem ir ao evento.
A regularização é importante, de acordo com Isabela Cruz, porque “é preciso parar com a violação de corpos e territórios quilombolas, dar um pouco de paz às famílias, garantir políticas de alimentação e saúde, escola e formação. Cidadania também, porque o abandono é tão grande que muitos nem sabem que ajudam a construir o país. E ainda tem a violência religiosa, política, cultural”.
O processo de titulação de comunidades quilombolas é tão demorado que algumas lideranças moradores morrem sem assegurar formalmente seu território. Morto em 2018 aos 113 anos de idade, o líder quilombola Antônio Mulato, por exemplo, da comunidade Mata Cavalo (MT), em Mato Grosso, dizia que seu sonho era segurar o título em suas mãos. Relatava, antes de morrer, que tinha memória de quando era menino e chegou a notícia da abolição oficial da escravatura. Em 2018, a comunidade Mata Cavalo foi retratada em um documentário da Amazônia Real.
Em matéria publicada em 2014 pelo site Terra, ele lembrou que as terras na sesmaria foram doadas pela antiga proprietária aos seus escravos. A partir de então, tornaram-se livres, plantando nela e colhendo para si. Hoje em dia, Mata Cavalo é uma área invadida por diversas fazendas. A situação é complicada porque exige a desintrusão da área e a indenização por benfeitorias. Assim como em outros quilombos, tem histórico de conflitos violentos entre fazendeiros e remanescentes que disputam o direito ao território. O processo de regularização foi impetrado em 2004. O Decreto de Desapropriação saiu no Diário Oficial da União em 2009. De lá para cá, já são 19 anos e o caso está parado.
Comunidade pressionada por agronegócio
Antônio Mulato, liderança em Campina de Pedra | Foto: José Medeiros / GCOM MT
Estado de forte pressão do agronegócio, invasões de terras indígenas e tradicionais e demora em regularização fundiária, o Mato Grosso registrou recentemente um fato raro: o reconhecimento de uma comunidade quilombola. Campina de Pedra é uma das cinco que desde maio entrou no processo do Incra para titulação.
O processo fundiário foi aberto em 2005. Passados quase 20 anos, somente em 2023 o Incra declarou e reconheceu um limite de 1.779,80890 hectares. A Portaria saiu no Diário Oficial da União dia 22 de maio deste ano, após 18 anos de espera.
Uma das lideranças em Campina de Pedra, Teófilo Mendes da Silva, de 63 anos, recebeu a portaria do Incra como se fosse o próprio título. “Comemoramos muito porque, a partir daí, não tem mais volta, mesmo que demore mais para sair o título, essa portaria traz um certo alívio às nossas 45 famílias remanescentes”, disse ele à Amazônia Real. Agora, para encerrar o processo de Campina de Pedra, o que falta, segundo ele, é só a titulação.
Antonio Moura, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), pesquisou a comunidade quilombola de Mata Cavalo em seu doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp (SP). Nesse período, conheceu outros quilombos da região. E observou que a importância de titular territórios quilombolas vai além de dar segurança jurídica às famílias remanescentes. É também uma forma de proteger o modo de viver e pensar dos afrodescentes, suas festas, sua culinária, suas técnicas de plantar sem agredir o meio ambiente. Acontece que essa cultura se choca com a de seus arredores, ou seja, propriedades rurais que pulverizam às lavouras com agrotóxicos, com o intuito de expandir suas lavouras.
“O embate está posto e as elites rurais consideram uma questão de ordem brecar isso [as titulações de territórios quilombolas], porque significa que elas possam perder terras que apropriaram muitas vezes de forma ilegal ou às vezes legal, mas com violência, ameaças, no passado, então querem conservar a propriedade, porque através da terra detém o poder econômico e político também”.
O quilombola Teófilo reafirma que em Campina de Pedra, onde é liderança, venenos agrícolas não entram. “É tudo orgânico, embora a gente esteja cercado por fazendeiros que usam. Então manter esse tipo de plantio nosso é também uma forma de resistir, se fortalecer e de viver mais”.
Em Campina de Pedra, a longevidade é uma realidade. “O pai e a mãe de Teófilo, Benedito Mendes Gonçalves, e Filomena Mendes da Silva, morreram, respectivamente, com 97 e 103 anos. “Viver tanto assim aqui é muito comum”, diz ele. “É a comida fresca, a vida boa, a rapadura”.
A maior produção em Campina de Pedra é de cana de açúcar. Eles usam para produzir rapadura e melado, em uma cooperativa que as famílias construíram sozinhas, sem esperar nada de ninguém – a Associação Quilombola Negra Rural de Campina de Pedra. “Era isso ou a gente não tinha como sobreviver “, diz Teófilo.
Eles também plantam, banana da terra, nanica e banana ouro, parte da produção vira um doce regional chamado Furrundu, feito com mamão verde e rapadura.
Em Campina de Pedra, a religião predominante é a católica e a Festa de São Sebastião chega a reunir 3 mil pessoas das redondezas. É nessa hora que a culinária se mistura com a fé, que se mistura com a música através do Siriri e Cururu.
De acordo com Teófilo, a luta pela terra em Campina de Pedra começou a ficar mais forte com a tomada de consciência da própria negritude.
“Antes a gente era recuado, nas festas, quando vinha gente branca lá de fora, a gente ficava em segundo lugar, eles que comiam primeiro, chegavam falando (de forma pejorativa) que iam jogar com pretada. Agora, graças a Deus sabemos valorizar nossa vida, nossa cultura. Temos muito respeito por quem vem nos visitar, mas não aceitamos discriminação, conhecemos a lei do racismo, e isso foi acontecendo de 2003 para cá”.
Quilombo do Abacatal | Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real
Como funciona o reconhecimento
Além de Campina de Pedra, outras 13 portarias de reconhecimento e declaração assinadas pelo presidente do Incra saíram em 2023, no governo Lula. Luiza Barros, assessora do Programa Quilombos da Comissão Pró-Índio, organização que faz monitoramento de terras quilombolas, diz que na gestão de Bolsonaro toda, foram publicadas oito portarias, processo que faz parte do início da regularização fundiária.
Segundo Luiza Barros, o processo [de reconhecimento e titulação] dentro do Incra possui diversas etapas e a maioria dos que tramitam – 84% deles – ainda não avançou da primeira etapa; da elaboração do RTID e consequente publicação de seu resumo em Diário Oficial da União. Ela afirma que essa morosidade se dá por diversas razões, entre elas, falta de orçamento e recursos para os órgãos fundiários, falta de pessoal, contestações às etapas dos processos, além, claro, de uma conjuntura mais ampla relacionada à estrutura fundiária do país”, destaca.
O processo de reconhecimento de uma comunidade quilombola no Incra começa com uma primeira exigência, que é a certidão da Fundação Palmares, reconhecendo que a comunidade é remanescente quilombola. A segunda etapa é a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Em seguida, o caso vai para análise do Comitê de Decisão Regional, que se julgar improcedente o processo pode ser arquivado. Caso contrário, segue para consulta de entidades e órgãos. Se houver contestações, também são analisadas, cabendo recurso.
A análise da situação fundiária é encaminhada para a Casa Civil e a AGU, desembocando na Presidência do Incra. São expedidas as portarias de reconhecimento e declaração dos hectares do território. Neste momento, o processo entra na fase final e pode seguir por diversos caminhos, dependo de cada caso, seja desapropriação, anulação de títulos viciados, reassentamento de posseiros ou pode ir para a Secretaria de Patrimônio da União (SPU). O penúltimo passo é a demarcação física dos limites. A titulação é o último passo, tendo todo esse um longo e burocrático caminho no meio.
Pedro Rodrigues Costa e seu filho, morador da comunidade Vista Alegre, no Maranhão, aguardam o reconhecimento juridico da sua coomunidade como um quilombo | Foto cedida por Ana Mendes/2015
O que diz o Incra
Procurado pela Amazônia Real e questionado sobre a morosidade dos processos de titulação de territórios quilombolas, o Incra não esclareceu integralmente o motivo e disse que outros órgãos (estaduais e municipais) também são responsáveis pelo regularização, pois cada ente federado possui legislação própria.
No Incra, segundo a nota do órgão enviada à reportagem, o processo começa com abertura de processo em seguida de um “extenso estudo, a trajetória histórica própria e as relações territoriais específicas da comunidade”.
O órgão disse que muitos casos do processo de regularização do território quilombola, passam por sobreposições com Unidades de Conservação, áreas militares, indígenas ou outras de interesse federal. “É preciso conciliar os interesses sobrepostos com os do respectivo órgão responsável”
Mas, conforme organizações do movimento quilombolas, os maiores entraves são cortes financeiros, identificados nas últimas gestões do Incra, e decisões políticas deliberadas para impedir a regularização, como aconteceu no governo Bolsonaro. Nos últimos quatro anos, a Conaq divulgou sucessivas denúncias e manifestos contra o que considerava racismo que impedia a regularização das terras quilombolas, como o manifesto de junho de 2022.
No governo passado, os próprios servidores do Incra chegaram a divulgar uma nota denunciando o desmonte do órgão, em carta aberta à sociedade. “Todas essas mudanças, somadas ao esvaziamento do orçamento do órgão, fragilizaram a atuação do Incra na política quilombola e alteraram arbitrariamente sua estrutura, sem a participação de quilombolas e servidores(as) que acumulam anos de experiência e conhecimento técnico, desqualificam a política quilombola e impedem que o Incra cumpra sua missão institucional de promover a titulação coletiva dos territórios quilombolas e proteger os direitos das comunidades”, diz trecho.