Pobreza e degradação dos direitos sociais fazem explodirem casos de trabalho análogo ao escravo. Documentário aborda sua sua forte presença no Norte do País e traz à tona casos chocantes – como o de Marinaldo, escravizado 13 vezes desde os dez anos
Por Carolina Azevedo, no Le Monde Diplomatique Brasil
“O tema da escravidão é uma síntese, é a exploração do trabalho, da vida humana, do meio ambiente. Em suma, da vida. Onde não se valoriza a vida, cultiva-se a morte.” A fala de Renato Barbieri, premiado diretor de Pureza, resume a urgência do tema de seu novo filme, Servidão. Com narração da artista Negra Li, o documentário é um registro da realidade do trabalho escravo contemporâneo no Norte do Brasil e da luta pela abolição.
Embora o trabalho análogo à escravidão seja considerado crime previsto pelo artigo 149 do Código Penal Brasileiro – vitória do movimento abolicionista que se concretizou apenas no início da década de 2000, entre os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula – o regime de servidão vem sendo praticado no Brasil há séculos, como denúncias recentes vêm mostrando ao grande público.
Em 2021, o jornalista Chico Felitti escancarou a realidade do trabalho análogo à escravidão dentro das casas da alta classe com o podcast de enorme sucesso, A Mulher da Casa Abandonada, que desencadeou uma onda de denúncias desse tipo de crime. No início de 2023, relatos dos trabalhadores da colheita da uva resgatados em Bento Gonçalves (RS) descreveram um cenário de violência que a maior parte dos brasileiros desconhecia. Em seu documentário, filmado ainda em 2019, Barbieri foca em trabalhadores da Amazônia brasileira, como o maranhense Marinaldo Soares Santos, que foi escravizado 13 vezes e liberto em três diferentes ocasiões pelo Grupo Móvel, do Ministério do Trabalho e que conta com a participação do Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal.
Entre análises de historiadores, jornalistas, juízes e ativistas, são os relatos de Marinaldo que se destacam no mosaico de horrores exposto por Servidão. Hoje atuando na luta contra o trabalho análogo à escravidão como agente de cidadania no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, em Açailândia (MA), Marinaldo começou a trabalhar em fazendas aos dez anos de idade. Com pouca escolaridade e precisando de dinheiro, ele acabou sendo vítima de trabalho escravo repetidamente, em diferentes áreas rurais e de floresta na região Norte do país.
Hoje, com 52 anos, Marinaldo conta sua história para conscientizar outros trabalhadores e mostrar a realidade aos brasileiros: a Lei Áurea aboliu a escravidão clássica, mas não transformou as relações de trabalho e a mentalidade das classes mais abastadas, sobretudo quando a questão é o trabalho rural. Ouvir a história de Marinaldo é ter que encarar essa realidade, e esse é o objetivo do documentário, afinal, como disse Barbieri à reportagem, “a proximidade com o real nos humaniza, a distância nos desumaniza.”
A luta de personagens como Padre Josino, Frei Henri, Dona Pureza, Xavier Plassat e outros abolicionistas transformou o Brasil em um país de referência no que diz respeito ao combate à escravidão contemporânea – como lembra o Nobel da Paz e ativista indiano, Kailash Satyarthi, no documentário. Com a intensificação do autoritarismo e da violência no campo, dado o poder que a bancada ruralista ganhou durante o governo de Jair Bolsonaro, no entanto, vê-se que os trabalhadores continuam em perigo.
O documentário utiliza-se de fotografias de João Roberto Ripper e de Sergio Carvalho para contar, em imagens, as histórias de trabalhadores da extração ilegal de madeira na Amazônia brasileira. Apesar de não colocar a questão do racismo em palavras, é ele que se revela nas imagens, que refletem também os dados do balanço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE): das 2.575 pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão em 2022, 92% eram homens e 83% desses trabalhadores se autodeclaram como pretos ou pardos.
Em aparição emocionante pouco antes de sua morte, Alberto da Costa e Silva, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras, diz que, apesar da luta, sua geração falhou no combate ao racismo e à escravidão contemporânea. “A responsabilidade é nossa”, ele anuncia próximo ao fim do documentário. É essa urgência que Barbieri procura evocar no público com seu filme.
“O documentário se propõe como uma peça de resistência para fortalecer o debate e torná-lo mais amplo, para que mais pessoas se engajem. Eu tenho a convicção de que a abolição vai se dar na hora que a sociedade brasileira assumir isso como uma pauta síntese. A mentalidade escravagista gera crimes ambientais, crimes no campo e perpetua a desigualdade. Estamos vivendo a década decisiva, ou seja, a nossa geração é a geração que tem a possibilidade de mudar. Costumo dizer que não sou nem pessimista nem otimista, eu sou possibilista: a nossa geração tem a possibilidade de mudar, de não deixar o mundo ir para esse abismo.”
Para o diretor, não basta a mudança de consciência: é preciso tomar atitude. Assistir ao documentário Servidão é compreender a necessidade da abolição de fato, já que a outra não valeu.
Qualquer pessoa com uma suspeita pode relatar casos de trabalho análogo à escravidão através do Sistema Ipê ou do Disque 100.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.