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15/05/2021

A Encíclica Rerum Novarum tem uma importância muito grande no diálogo da Igreja com o mundo moderno e, sobretudo, no desenvolvimento práxico-teórico da dimensão social da fé. É um texto decisivo no processo de renovação eclesial que desembocou no Concílio Vaticano II e em sua recepção latino-americana. 

Rerum Novarum - Um guia de leitura[1]

Por Francisco de Aquino Júnior[2]

        

  A Carta Encíclica Rerum Novarum (RN) do papa Leão XIII “sobre a condição dos operários” foi publica no dia 15 de maio de 1891. É a primeira intervenção oficial do magistério romano sobre a “questão social” e chegou a ser considerada como “carta magna da atividade cristã no campo social” (Pio XII) e como “texto fundador” da doutrina/ensino social da Igreja (Jean-Marie Mayeu). Sem desconsiderar o movimento prático-teórico que se convencionou chamar “catolicismo social” que antecedeu e, de certa forma, preparou este documento, ele pode ser tomado como “ponto de partida” de uma tradição recente do pensamento social católico. E tanto em relação ao magistério do bispo de Roma que vem publicando uma série de encíclicas sociais por ocasião do aniversário da RN, quanto em relação ao desenvolvimento da reflexão social e teológica sobre as questões sociais por parte de teólogos e cientistas católicos, quanto, ainda, no que diz respeito à atuação dos católicos no campo social e político[3].

          Antes de apresentarmos a estrutura e conteúdo fundamentais da RN e de destacarmos alguns pontos importantes para sua adequada compreensão e interpretação, convém apresentar minimamente o contexto histórico socio-eclesial em que ela surge e ao qual procura responder.

I – CONTEXTO HISTÓRICO

          Nenhum texto importante pode ser compreendido adequadamente fora do contexto que o possibilita, em que surge e ao qual responde. E a RN não é uma exceção. Ela tem calendário (século XIX) e tem geografia (Europa industrial). É uma tomada de posição do Magistério romano sobre uma questão/situação bem concreta, em uma época e em um contexto determinados. Por isso mesmo é importante começar nosso estudo sobre este documento considerando seu contexto histórico.

          O século XIX foi um século determinante na história do Ocidente. Ele pode ser considerado como “o século de consolidação da sociedade moderna”[4] – um processo em curso na Europa desde a época renascentista e que se consolida com a revolução francesa e a revolução industrial. Na verdade, “os dois acontecimentos que mais profundamente alteraram a forma da civilização ocidental foram a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. É com elas que começa a história ‘moderna’. Todos os principais fatos do século XIX e começos do século XX – a disseminação do liberalismo burguês e o êxito da economia da classe média, o declínio das antigas aristocracias fundiárias e o desenvolvimento da consciência de classe entre os trabalhadores urbanos – tiveram origem nessas duas revoluções”[5]. Elas determinaram, em boa medida, o modo e as relações de produção, a forma de organização política, bem como sua respectiva legitimação ideológica.

          E é neste contexto mais amplo que se insere a RN e no qual ela deve ser lida e interpretada[6]. Mas nem temos condição nem pretensão de desenvolvê-lo aqui[7]. Nosso propósito é bem mais modesto. Ele se restringe a esboçar minimamente a “condição dos operários” com a qual se confronta a Encíclica, no contexto da revolução industrial e do chamado catolicismo social.

          A Revolução Industrial não pode ser reduzida a uma questão meramente técnica, como se as transformações tecnológicas fossem um fato social, política e culturalmente, neutro. Nem sequer pode ser reduzida a um fato puramente econômico, como se a economia fosse independente da política e prescindisse de algum tipo de legitimação ideológica. Ela tem aspectos técnicos, econômicos, políticos, sociais, ideológicos, dentre outros. De modo que se pode afirmar que as transformações tecnológicas, fruto do desenvolvimento das ciências experimentais; a fábrica com seu modo e suas relações de produção, jornada de trabalho, salário; o êxodo rural e o crescimento das cidades com seus problemas de moradia, saneamento, saúde e infra-estrutura em geral; e a ideologia liberal como mentalidade que legitima essa nova situação, em conjunto e em mútua interação, determinaram, em grande medida, as condições e o modo de vida da população européia no século XIX. E a tal ponto que Henrique Cristiano Matos chega a afirmar que “a máquina, a fábrica e a cidade são os três símbolos daquilo que podemos chamar de ‘civilização industrial’”[8].

          Mas é preciso deixar bem claro que, nesta mesma “civilização industrial”, a situação dos operários é completamente diferente da situação da burguesia, de modo que “a máquina, a fábrica e a cidade” têm conseqüências e significados completamente diferentes para os operários e para os burgueses[9].

A jornada de trabalho de 14 a 16 horas, os salários miseráveis, as péssimas condições de trabalho, de moradia e de saneamento, a ausência de seguridade social em caso de doença, acidente de trabalho, desemprego e invalidez, a inexistência de organizações de reivindicação e defesa de direitos, dentre outros, tornavam a vida das massas operárias, particularmente das mulheres e das crianças, muito difícil, obrigando grande parte do operariado a viver em condições de extrema pobreza e miséria[10].

          Toda essa situação foi levando o operariado a criar mecanismos de ajuda mútua e de defesa de condições mais dignas de trabalho e de vida e, aos poucos, constituindo-o como classe operária[11]. É a origem do sindicalismo moderno, no qual se pode identificar uma “dupla evolução”: Externamente, foi passando da “ilegalidade” à “tolerância” e, finalmente, ao reconhecimento jurídico por parte do Estado. Internamente, ele assume, num primeiro momento, “o caráter de uma sociedade de mútua ajuda (e, nesse sentido, goza de certa simpatia por parte dos patrões!) para depois preocupar-se prioritariamente com a elevação social dos operários e seus direitos inalienáveis frente ao poder econômico, tornando-se o órgão por excelência de defesa de seus interesses”[12]. Neste contexto, foi progressivamente se vinculando aos partidos socialistas que, por sua vez, constituíam-se como instrumento privilegiado de atuação política da classe operária.

          É verdade que desde o final do século XVIII vários pensadores foram desenvolvendo e propagando ideais e utopias socialistas, o que se convencionou chamar “socialismo utópico”. A ele estão vinculados nomes como o do inglês Robert Owen (1771-1858)[13] e os dos franceses Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837) e Pierre Joseph Prudhon (1809-1865)[14]. Mas é com Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) que esses ideais passam do pleno meramente utópico e voluntarista para o plano científico e político com textos como o Manifesto do Partido Comunista (1848) e o Capital (1867) e com a organização política que se desenvolve a partir da Primeira Internacional dos Trabalhadores (1864)[15]. Tudo isso foi fundamental para a constituição e organização da classe operária no século XIX.

          Fato é que o sindicalismo europeu esteve sempre muito ligado aos partidos socialistas. A classe operária foi se constituindo, não sem tensões e ambiguidades, num movimento simultaneamente social (sindical) e político (partidário). Daí a vinculação histórica entre classe operária e socialismo[16].

          Mas isso não é tudo. Embora não se possa negar que os movimentos e partidos socialistas tenham sido os primeiros e mais importantes aliados da classe operária, não foram os únicos. Não se pode negar a importância do chamado “catolicismo social”[17], sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, não obstante suas ambigüidades e contradições. Se é verdade que, “a despeito da onda reacionária consecutiva à crise de 1848, Marx conseguiu organizar em 1864 a Primeira Internacional e animar numa comum esperança o proletariado industrial, ao passo que a maioria dos católicos e das autoridades eclesiásticas, até o fim do século, se recusou a encarar a necessidade de ‘reformas estruturais’, considerando como sendo perigosamente revolucionários os esforços que visavam modificar institucionalmente a condição operária”; também é verdade que “uma minoria mais clarividente de leigos, padres e bispos assumiu, de imediato, verdadeiras preocupações sociais, ao perceber que a questão operária colocava um problema não apenas de caridade mas sobretudo de justiça”[18].

          Já advertimos acerca do caráter ambíguo e contraditório do chamado “catolicismo social”. Ambigüidade e contradição que dizem respeito, antes de tudo, ao fato de grande parte de seus integrantes e propagadores serem provenientes da aristocracia rural e dos adversários mais ferrenhos do liberalismo. Embora não se possa negar em absoluto sua real preocupação com a situação das massas operárias, sua ação social, em geral, além de ter um caráter bastante paternalista, era encarada “como um meio de conseguirem a adesão das massas populares para sua causa, para sua luta contra a oligarquia burguesa anticlerical, por eles duplamente detestada: porque era anticlerical e porque pretendia substituir as antigas autoridades sociais pelo poder do dinheiro”[19]. Daí seu caráter reacionário, nostálgico e restauracionista.

          O “catolicismo social”, sem deixar de ser antissocialista, nasce, fundamentalmente, como antiliberal, vinculando preocupações sociais com resistência antiliberal. Aos poucos ele vai se desenvolvendo e se propagando pela Itália, França, Alemanha, Áustria e Bélgica e criando uma rede de articulação mediante publicações e contatos mais ou menos ocasionais. Merecem destaque aqui o Circulo de Estudos Sociais em Roma (1882) e a União Católica de Estudos Sociais em Friburgo (1884).

          Através desses grupos e de suas articulações vai se desenvolvendo uma ampla reflexão sobre questões de economia social do ponto de vista da doutrina católica, em particular no que diz respeito à situação dos operários. Reflexão que, por um lado, explicita os princípios católicos da vida social e, por outro lado, orienta a ação dos católicos no que diz respeito à organização e à legitimação da vida social.

          O papa Leão XIII (1878-1903) tinha grande interesse pela “questão social” em geral e pela “questão operária” em particular – já da época em que foi núncio na Bélgica (1843-1846) e bispo de Perúgia (1846-1877). Acompanhava com regularidade os estudos e as discussões da União de Friburgo, bem como as controvérsias sobre a questão social dentro da própria Igreja, inclusive dentro do chamado “catolicismo social” como se pode ver, por exemplo, no conflito entre o que se convencionou chamar “escola de Liege” (partidária da intervenção do Estado nas questões sócio-econômicas) e “escola de Angers” (desconfiada de qualquer intervenção do Estado). Tudo isso ia pressionando/forçando o papa a tomar uma posição oficial sobre a questão operária.

          Além do mais, uma série de acontecimentos no final do século XIX reforçou a necessidade e urgência de uma intervenção oficial do papa: peregrinação da “França do Trabalho” a Roma (a partir de 1885); defesa dos Knights of Labour, primeira organização operária estadunidense, pelo cardeal Gibbons (1887-1888); apoio do cardeal Manning à greve dos doqueiros de Londres (1889); conferência do trabalho em Berlim (1890); surgimento de um tímido sindicalismo confessional, entre outros.

          É neste contexto que o papa Leão XIII publica no dia 15 de maio de 1891 sua Encíclica Rerum Novarum sobre a “condição dos operários”[20]. Trata-se de uma encíclica que conjuga, paradoxalmente, a preocupação com a crescente adesão do operariado ao socialismo e o “desejo de encontrar para a Igreja, nas massas populares em vias de obterem o direito ao sufrágio universal, um contrapeso para a política anticlerical frequentemente praticada pelo ‘país legal burguês’”[21], portanto, uma encíclica antissocialista e antiliberal.

II – TEXTO: ESTRUTURA E CONTEÚDO

          Tendo esboçado minimamente o contexto social e eclesial em que surge a Encíclica RN, podemos nos dedicar agora a um estudo mais analítico do texto, explicitando sua estrutura básica e apresentando, ainda que de modo muito resumido, seu conteúdo fundamental.

          Antes, porém, convém chamar atenção para um dado redacional que consideramos de extrema importância para uma compreensão adequada e global do texto. A publicação, em 1957, das sucessivas redações e correções que culminaram no texto definitivo, ajudam-nos a compreender melhor as tensões e ambigüidades que marcaram o processo redacional e que estão presentes na versão final do documento[22]. Um primeiro texto, marcadamente antiliberal e restauracionista, foi escrito pelo jesuíta Matteo Liberatore, editor da revista Civiltà Cattolica e ligado à União de Friburgo. Um segundo texto, radicalmente antisocialista e com tendência liberal, foi escrito pelo cardeal dominicando Tommaso Zigliara. Estes dois textos foram fundidos em um único texto, traduzido para o latim, no qual predominava a linha de Zigliara e que foi, posteriormente, revisado e reelaborado por Boccali, secretário pessoal do papa. Depois de muitas correções, precisões e ponderações, o texto foi finalmente publicado como documento oficial. Aqui, interessa-nos simplesmente chamar atenção para as duas linhas fundamentais que, em tensão e em mútua ponderação e correção, determinaram tanto o processo redacional quanto a versão final do documento: a tendência antiliberal do jesuíta Liberatore e a tendência antissocialista do dominicano Zigliara.

          Dito isto, passemos, então, para o estudo do texto.

1. Estrutura

           No texto original não consta subdivisões nem sequer numeração[23]. Somente a partir da Pacem in Terris de João XXIII as encíclicas têm numeração oficial. Em todo caso, é possível, a partir do próprio texto, identificar uma estrutura lógico-argumentativa no modo como o conteúdo é desenvolvido.

Além de uma introdução (1-2) e de uma conclusão (37), algumas traduções e alguns autores dividem o texto em quatro partes: a questão social e o socialismo (3-9), a questão social e a Igreja (10-18), a questão social e o Estado (19-30), a questão social e a ação conjunta de patrões e operários (31-36)[24]. Mas é possível identificar ainda, como faz Ildefonso Camacho, um esquema mais elementar e mais fundamental. Segundo este esquema, o texto, além da introdução (1-2) e da conclusão (37), pode ser dividido em duas partes: uma parte menor que apresenta e refuta a solução socialista (3-9) e uma parte bem maior que apresenta o que considera a solução verdadeira que envolve a Igreja, o Estado e os patrões e operários (10-36)[25]. E, assim, o texto pode ser esquematizado da seguinte forma:

- Introdução (1-2)

- Primeira Parte: solução socialista (3-9)

- Segunda parte: solução verdadeira (10-36)

          - A Igreja (10-18)

          - O Estado (19-30)

          - Os patrões e os operários (31-36)

- Conclusão (37)

2. Conteúdo

Tendo identificado e esquematizado a estrutura básica ou elementar do texto, passaremos a apresentar, ainda que de modo muito resumido e condensado, seu conteúdo fundamental. E o faremos seguindo o esquema acima esboçado.

Introdução

A introdução (1-2) contextualiza e justifica a intervenção do magistério na questão operária através de uma encíclica e esboça o que considera as causas fundamentais da situação da classe operária.

No que diz respeito ao contexto e à justificação da Encíclica, o texto começa reconhecendo a “sede de inovações” no âmbito da “economia social”: a revolução industrial resultou num “temível conflito” (1a) e essa situação “preocupa” e envolve a todos, também a Igreja (1b); afirma que a pretensão da Encíclica é “pôr em evidência os princípios duma solução conforme à justiça e à equidade”; que esse problema “nem é fácil de resolver, nem isento de perigos” (1c); mas que “é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida” (2).

Já no que diz respeito às causas dessa situação, o texto se refere à destruição, sem substituição por nada semelhante, das antigas “corporações” e ao desaparecimento dos “princípios e [do] sentimento religioso das leis e das instituições públicas”, deixando os trabalhadores “isolados e sem defesa”, “entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada”. Sem falar da “usura voraz” praticada por “homens ávidos de ganância e de insaciável ambição” e do “monopólio do trabalho e dos papeis de crédito” por parte “dum pequeno grupo de ricos e opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários” (2).

Primeira Parte

A primeira parte da Encíclica (3-9) apresenta e refuta como falsa e injusta a solução socialista para o problema da classe operária.

Segundo o documento, “para currar este mal”, os socialistas “instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem e pretendem que toda propriedade de bens particulares deve ser suprimida”. O “remédio” que propõem é, portanto, a “transladação das propriedades” e a “igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos” (3).

Mas esta “teoria”, diz o texto, “longe de ser capaz de por fim ao conflito, prejudicaria o operário” e, além do mais, “é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social” (3):

Em primeiro lugar, prejudicaria o operário, pois a “conversão da propriedade particular em propriedade coletiva [...] não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda esperança e toda possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação” (4).

Em segundo lugar, é sumamente injusta “porque a propriedade particular e pessoal é para o homem de direito natural” (5). Enquanto “senhor das suas ações”, o homem deve prover suas necessidades no “presente” e no “futuro”. Para isso, “deve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser sua fornecedora no futuro” (6). Além do mais, na medida em que cultiva a terra, o homem deixa nela a sua marca e, por isso, é justo que ela lhe pertença (7). Tudo o que foi dito sobre o indivíduo deve ser dito com “maior força” ainda do “homem constituído chefe de família” ou “pai de família” (8a).

Em terceiro lugar, vicia as funções do Estado, pois a “providência paterna” não pode ser substituída pela “providência do Estado”. Em casos extremos, o Estado deve vir em “auxílio” de uma família e, em caso de “graves violações de direitos mútuos”, deve intervir para “restituir a cada um os seus direitos”. Mas não deve “ultrapassar esses limites”. “A autoridade paterna nem pode ser abolida nem absorvida pelo Estado, porque ela tem uma origem comum com a vida humana” (8b).

Em quarto lugar, tende para subversão completa do edifício social pelas “funestas consequências” que produz na sociedade: “perturbação de todas as classes”; “odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos”; desestimula “o talento e a habilidade” e, assim, a um estancamento das riquezas em sua fonte; “igualdade na nudez, na indigência e na miséria” (9).

Por tudo isso, afirma: “compreende-se que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranqüilidade política”. E conclui afirmando que “o princípio fundamental a estabelecer para todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular” (9).

Segunda Parte

A segunda parte (10-36) indica “onde convém procurar o remédio tão desejado” (9), isto é, “por quem e por que meios esta questão tão difícil demanda ser tratada e resolvida” (37): Igreja, Estado, patrões e operários (10).

1. Igreja (10-18)

A Igreja tem o “direito” e o “dever” de intervir e colaborar na solução da questão social. Mais. Sem a Igreja não há “solução eficaz” para essa questão e a atividade e os esforços do Estado e dos patrões e operários terminarão na “inanidade”. Sua contribuição específica dá-se em três campos fundamentais: “doutrina”, orientações sobre “a vida e os costumes” e “instituições benéficas” (11).

          Quanto à doutrina, o texto afirma que “o homem deve aceitar com paciência a sua condição” (11a) e que, depois do pecado, “a dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade” (11b). Afirma que “é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível”. Isso é “contra a natureza” que “estabeleceu entre os homens diferenças tão múltiplas como profundas”. Dessas diferenças “nasce espontaneamente a desigualdade das condições” que, por outro lado, “reverte em proveito de todos” (11a). Tal como no “corpo humano”, assim “na sociedade”. De modo que “as classes estão determinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio” (11b).

Quanto às orientações sobre a vida e os costumes, elas visam, acima de tudo, “aproximar e reconciliar os ricos e os pobres”. O texto começa lembrando às duas classes “seus deveres mútuos” (11c). Avança, ao propor a “união das duas classes” mediante “laços de verdadeira amizade” (13a), relativizando, em vista da “felicidade eterna”, a riqueza e a pobreza (13) e estimulando a prática da caridade no contexto da distinção entre “a justa posse das riquezas e o seu legítimo uso” (14). Para chegar finalmente ao “amor fraterno”: a comunhão nos “bens da natureza” e nos “bens celestes” (16a). Assim, mediante a observância dos deveres, os laços de amizade e a vivência do amor fraterno, será possível restabelecer a “pacificação” social (16b).

          Quanto às instituições benéficas, criadas e desenvolvidas ao longo da história da Igreja e facilmente comprováveis, elas dizem respeito tanto à orientação e instrução dos homens segundo os princípios e a doutrina católica (17) quanto à caridade e ao socorro aos pobres (18ab). O texto reage contra os que fazem da caridade uma “arma para atacar a Igreja” e contra a tendência a “uma beneficência estabelecida pelas leis civis” em substituição à “caridade cristã”, afirmando que esta caridade “não pode ser suprida por nenhuma intervenção humana” (18c).

          2. Estado (19-30)

          O texto começa afirmando que entende por Estado “não um governo estabelecido num determinado povo particular, mas todo governo que corresponde aos preceitos da razão natural e aos ensinamentos divinos” (19a). O que se espera de um governo é que faça “leis” e “instituições” que favoreçam a “prosperidade tanto pública como particular”. E isso se dá mediante “os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da religião e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma distribuição equitativa dos cargos públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura florescente”, dentre outros. Dessa forma, o Estado torna-se útil a todas as classes – “e isto em todo o rigor do seu direito e sem ter a temer a censura de ingerência, porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum” (20a). Sem falar que “a razão formal de toda sociedade é una e comum a todos os seus membros, grandes e pequenos” (20b). De modo que, “os pobres, com o mesmo título que os ricos são, por direito natural, cidadão” e, por isso, “a autoridade pública deve também tomar as medidas necessárias para zelar pela salvação e os interesses da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido” (20b). Respeitando a legitima autonomia do “indivíduo” e da “família”, que não podem ser absorvidos pelo Estado, mas tampouco podem atentar “contra o bem geral” nem prejudicar ninguém, “cabe aos governantes proteger a comunidade e suas partes” (21).

          Em seguida, o documento passa a indicar algumas ações/intervenções importantes e necessárias por parte do Estado: 1. Assegurar os direitos de “todos os cidadãos”, de maneira especial “dos fracos e dos indigentes”, da “classe pobre” que, “sem riquezas que a proteja contra as injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado” – “que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores que em geral pertencem à classe pobre” (22); 2. “Assegurar a propriedade particular por meio de leis sábias” (23); 3. Impedir as greves com a “autoridade da lei” e “removendo a tempo as causas das quais se prevê que possam nascer os conflitos entre operários e patrões” (24); 4. Proteger “os bens da alma” (25), garantindo o “repouso festivo”, um “repouso consagrado à religião” (26); 5. Proteção do trabalho dos operários, em especial das mulheres e das crianças: “horas de trabalho”, “quantidade de repouso” proporcional “à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à constituição e saúde dos operários” (27-28); 6. Auxiliar e apoiar, quando necessário, às “corporações ou sindicatos” (29c) na “fixação do salário” (29a) segundo a “lei de justiça natural” que determina que “o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado” (29b); 7. “Que as leis favoreçam o espírito de propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível nas massas populares” (30a) e que “a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de encargos e de impostos”, embora o Estado possa “regular o uso” do direito de propriedade e “conciliá-lo com o bem comum” (30c).

          3. Patrões e operários (31-36)

          Eles podem auxiliar na solução da questão operária, sobretudo, através de “corporações” ou de “associações”, importantes para “aliviar eficazmente a indigência” e para “operar uma aproximação entre as duas classes”. O texto constata, “com prazer”, a multiplicação dessas “corporações” ou “associações” por toda parte – “quer compostas só de operários, quer mistas, reunindo ao mesmo tempo operários e patrões” – e passa a falar sobre “a sua oportunidade e o seu direito de existência” e a indicar “como devem organizar-se e qual deve ser o seu programa de ação” (31).

          Há uma “propensão natural” no homem para a associação e a cooperação. Daqui nasce a “sociedade civil” e, em seu seio, “outras sociedades” (32b). Enquanto a “sociedade civil” visa o “bem comum” e tem um fim universal (32c), as “outras sociedades” visam o bem “exclusivo de seus membros” e têm um fim “particular”. Ambas têm origem em um “mesmo princípio: a natural sociabilidade do homem’. Por isso, o Estado não pode negar o direito natural de existência a essas sociedades, a não ser que, “em virtude mesmo dos seus estatutos orgânicos, trabalhasse para um fim em oposição flagrante com a probidade, com a justiça, com a segurança do Estado” (32d). Ao falar dessas sociedades particulares, o texto faz referência às “confrarias”, às “ordens religiosas de todo gênero” (33), mas, sobretudo, às “associações operárias” – sejam as que são “governadas por chefes ocultos e que obedecem a uma palavra de ordem [...] hostil ao nome cristão e à segurança das nações” (34a), sejam as que se constituem inspiradas na doutrina e nos princípios católicos (34). Ao Estado cabe “respeitá-las, protegê-las e, em case de necessidade, defendê-las” (33).

          Pensando concretamente nas associações operárias católicas, o texto afirma que, para que haja nelas “unidade de ação e acordo de vontades, elas precisam evidentemente de uma sábia e prudente disciplina”. E, embora não se proponha a “dar regras certas e precisas para lhes determinar os pormenores”, afirma que elas devem “tomar como regra universal e constante e organizar e governar por tal forma as corporações que proporcionem a cada um dos seus membros os meios aptos para lhe fazerem atingir, pelo caminho mais cômodo e curto, o fim que eles se propõem, que consiste no maior aumento possível dos bens do corpo, do espírito e da fortuna” (35a), insistindo em que seu objetivo principal deve ser o “aperfeiçoamento religioso” (35b). Assim, “constituída a religião em fundamento de todas as leis sociais, não é difícil determinar as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter a paz e a prosperidade da sociedade” (35c). O texto conclui falando da necessidade de “prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário” e de criar “um fundo de reserva” para casos de “acidentes de trabalho”, “doença”, “velhice” e “reveses da fortuna” (36a); destacando a importância das corporações católicas tanto para “assegurar aos fracos a subsistência e um certo bem-estar”, quanto para a “prosperidade geral” (36b); e exortando os operários católicos a tomarem parte nessas associações, entrando “no caminho em que seus antepassados encontraram o seu bem e o dos povos” (36c).

          Conclusão

A conclusão (37) exorta todos os implicados a assumirem sua tarefa e reafirma o compromisso da Igreja com a questão operária.

          Referindo-se ao conteúdo desenvolvido na segunda parte – “por quem e por que meios” a questão operária “demanda ser tratada e resolvida” – o texto exorta a que “cada um tome a tarefa que lhe pertence, e isso sem demora, para que não suceda que, diferindo-se o remédio, se torne incurável o mal, já por si tão grave”.

No que diz respeito à Igreja, afirma que, “a sua ação jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver”. E conclui expressando o desejo de que isso seja compreendido, sobretudo, pelos que têm a missão de “velar pelo bem público” e exortando os “ministros do santuário” a empregarem “toda a energia de sua alma e generosidade do seu zelo” recomendando “a todas as classes da sociedade as máximas do Evangelho” – centrado na caridade, “senhora e rainha de todas as virtudes” (37).

III – DESTAQUES

          Depois de contextualizar a Encíclica e de apresentar sua estrutura e seu conteúdo fundamentais, destacaremos, a modo de teses, algumas questões importantes e necessárias para sua adequada compreensão; questões que dizem respeito ao seu contexto, à sua elaboração, ao seu conteúdo e aos seus desdobramentos.

          1. A RN tem uma dupla importância. Por um lado, é uma resposta do magistério da Igreja de Roma à questão operária. Pio XII se referiu a essa encíclica como a “‘Magna Carta’ da atividade cristã no campo social”. E não se deve esquecer a importância e o peso de um pronunciamento do bispo de Roma, sobretudo num contexto de centralização e absolutização do papado. Mais ainda, em se tratando algo novo, inédito, como era o caso de uma encíclica social. Por outro lado, ela acabou adquirindo o caráter de “texto fundador”, de “ponto de partida” de uma tradição importante que, desde então, vem sendo mantida e desenvolvida por todos os papas e que é conhecida como “doutrina” ou “ensino” social da Igreja. Uma série de encíclicas sociais foi publicada por ocasião do seu aniversário: Quadragésimo anno (1931), Mater et magistra (1961), Octogesima adveniens (1971), Laborem exercens (1981), Centesimus annus (1991). E a reflexão sobre as questões sociais foi amplamente desenvolvida por teólogos e por cientistas sociais católicos[26]. De modo que a importância dessa encíclica deve ser medida tanto pelo impacto que ela produziu no final do século XIX na Igreja e na sociedade (acontecimento), quanto por suas conseqüências ou pelo processo que ela desencadeou (efeitos).

          2. Essa encíclica não surgiu do nada nem é um fato absolutamente isolado na Igreja, nem sequer no papado de Leão XIII. Considerando apenas seu contexto mais imediato, ela se insere dentro do grande projeto restauracionista de Leão XIII frente ao liberalismo e ao socialismo[27] e dentro do movimento tenso e ambíguo que foi se desenvolvendo ao longo do século XIX em diferentes países da Europa conhecido como “catolicismo social”. Em boa medida, é “resultado” da reflexão e das iniciativas desse “catolicismo social”[28]. Há até quem se refira à RN como “uma conquista dos movimentos sociais cristãos ‘de base’”[29]. Na formulação de Roger Aubert, “não somente ela se inscrevia como novo elemento no projeto global de restauração da sociedade cristã que Leão XIII elaborava peça por peça desde o início do seu pontificado, mas além disso ela consagrava uma série de iniciativas, nos domínios doutrinal e prático, tomadas um pouco em toda parte, no curso das duas décadas precedentes, pela comunidade eclesial – bispos, padres, religiosos, mas também leigos – animada pela preocupação de traduzir a mensagem evangélica na vida cotidiana da sociedade do tempo”[30]. E, assim, ela aparece não apenas como “ponto de partida”, mas também como “ponto de chegada” ou, para sermos mais precisos, como parte de uma tradição maior e mais ampla que nem começa com ela nem termina com ela.

          3. A posição que a encíclica toma com relação à questão operária é bem mais complexa do que parece e do que dão a entender certas interpretações simplistas e ideologicamente interessadas. Ela não é sem mais uma encíclica antissocialista nem muito menos uma encíclica liberal. É verdade que refuta explicita e radicalmente a solução socialista, considerada do ponto de vista da abolição da propriedade privada e da luta de classes e, neste sentido, aproxima-se, sob muitos aspectos, da posição liberal, como se pode constatar, sobretudo, na primeira parte do documento. Mas é verdade também que critica fortemente a solução liberal, responsabilizada pela situação de “infortúnio e de miséria imerecidas” em que se encontra a classe operária, como se pode ver na introdução, e se afasta radicalmente dela em pontos muito importantes e decisivos: intervenção do estado na economia, defesa das associações operárias e defesa da determinação do salário não apenas segundo o critério de livre acordo entre patrões e operários, mas também segundo o critério da necessidade e da garantia da subsistência do operário, como se pode constatar na segunda parte do documento. E, aqui, aproxima-se, em certo sentido, de algumas posições socialistas. Esta tensão e ambigüidade com relação ao socialismo e ao liberalismo, já presentes no chamado “catolicismo social”, deve-se, em boa medida, aos principais redatores do documento: Liberatore com sua tendência anti-liberal e Zigliara com sua tendência anti-socialista.

          4. Não se pode negar sem mais o interesse e a preocupação do papa Leão XIII com a questão operária. Interesse e preocupação que o acompanham desde os tempos em que foi Núncio Apostólico na Bélgica (1843-1846), país em pleno desenvolvimento industrial, e Bispo de Perúgia na Itália (1846-1877). Mas isso não é tudo nem é suficiente para explicar as origens da encíclica. A RN é parte do projeto restauracionista mais amplo de Leão XIII em sua luta contra o liberalismo e contra o socialismo. Em boa medida, ela é motivada pelo temor com a crescente adesão das massas operárias ao socialismo e pela intuição de que, nessas mesmas massas, a Igreja poderia encontrar uma nova estratégia de intervenção política na sociedade liberal. De fato, “a tendência anti-socialista é um traço marcante nos documentos leoninos”[31]. Mas isso não significa sem mais adesão ao liberalismo. Basta recordar, além do que dissemos no item anterior acerca da RN, que, antes da publicação desta encíclica, Leão XIII havia publicado cinco encíclicas sobre questões políticas nas quais se enfrenta diretamente com o liberalismo[32]. E, assim, a preocupação do papa com a “condição dos operários”, na encíclica RN, é inseparável de sua angústia “ante os progressos do socialismo e a esperança de suplantá-lo”, bem como do seu “desejo de encontrar, para a Igreja, nas massas operárias em vias de obterem o direito ao sufrágio universal, um contrapeso para a política anticlerical frequentemente praticada pelo ‘país legal burguês’”[33].

          5. É curioso que numa encíclica dedicada à questão operária, o confronto com o socialismo acerca da propriedade privada gire em torno da propriedade da terra e não da propriedade dos meios de produção industrial (cf. RN 3-9). Nesse pondo, a Encíclica parece se situar “na perspectiva de uma economia agrária relativamente primitiva sem olhar as modalidades próprias da propriedade industrial numa economia capitalista completa”[34]. Ela “recorre a uma argumentação não adaptada à realidade de uma sociedade que deixara de ser agrícola ou que, pelo menos, não encontrava nesse terreno seus problemas mais graves”[35]. E não deixa de ser curioso também que, embora defenda o direito universal da propriedade privada como um direito que emana da própria natureza humana (cf. RN 5, 6, 7, 14b, 30), o documento “pouco diz sobre o que deve ser feito a fim de facilitar o acesso dos operários à propriedade”[36]. Neste ponto, o único indicativo que aparece é o salário, mediante a força do trabalho (cf. RN 4, 30). No confronto com o socialismo, a defesa incondicional da propriedade privada deixou de lado ou pelo menos considerou como questão menor e secundária o problema de sua repartição, isto é, de sua verdadeira universalidade ou, como afirma Camacho, a insistência no direito “individual” de propriedade deixou em “segundo plano” o princípio do “destino universal dos bens”, tão arraigado na tradição da Igreja e do qual não resta na Encíclica senão um “vestígio” (cf. RN 6)[37].

          6. Além dessas questões relativas ao direito de propriedade, Roger Aubert indica uma série de “limites e pontos fracos” da Encíclica, tanto no que diz respeito à abordagem teórica da questão operária, quanto no que diz respeito à eficácia da solução proposta: “perspectiva de restauração da cristandade”; “pregações moralizantes”; “reformismo moral” que denuncia muito superficialmente “as verdadeiras raízes do mal”, isto é, “as estruturas do regime capitalista concreto tal como se apresentava no final d século XIX”; falta de um “exame crítico, mesmo sumário, do mecanismo moderno da produção”; “ausência de uma reflexão sobre a noção de capital [...] não trata do capitalismo numa perspectiva econômica”; apresentação “muito superficial” do socialismo, “identificado com o comunismo absoluto ou com o anarquismo, quando por volta de 1890 a social democracia [...] tinha já com nitidez tomado suas distâncias em relação às correntes utópicas”[38]. Isso não nega a importância do documento, particularmente no que diz respeito ao enfrentamento dos problemas do seu tempo, colocando-se “com realismo num terreno análogo ao do socialismo reformista, procurando a elevação da classe operária no quadro das instituições existentes” (salário, intervenção do Estado, associações profissionais etc.) e ao fato de que “pela primeira vez os direitos dos operários e a injustiça do sistema liberal fosse solenemente proclamados pela mais alta autoridade espiritual”[39]. Isso teve muita repercussão e muitas conseqüências dentro e fora da Igreja.

          7. Por fim, convém advertir com Hackmann que, “como esta encíclica de Leão XIII inaugura a doutrina social da Igreja, apresenta um magistério social ainda embrionário. Só mais tarde, com as encíclicas sociais subseqüentes e a evolução do pensamento, os conceitos adquirem mais clareza e profundidade teológica [...]. Não se pode querer encontrar nela os conhecimentos de hoje, pois está situada numa época determinada, com uma realidade específica. Por isso, deve ser estudada com conhecimento da situação de então e com a concepção teológica e eclesial característica do final do século XIX e do período posterior ao concílio Vaticano I”[40]. Se é verdade que grande parte dos temas e princípios abordados e desenvolvidos nas encíclicas posteriores já se encontram na RN e, neste sentido, pode-se falar de uma continuidade na doutrina ou no ensino social da Igreja; também é verdade que nestas abordagens e nestes desenvolvimentos houve mudanças, deslocamentos e retificações significativos e, neste sentido, pode-se também falar de ruptura na doutrina ou no ensino social da Igreja[41]. Basta lembrar, aqui, a posição com relação à propriedade privada e com relação ao socialismo, dois temas centrais na RN e que sofreram em encíclicas posteriores deslocamentos e retificações significativos. Por isso, é bom ser mais cauteloso e prudente ao se falar da doutrina ou do ensino social da Igreja sobre determinado tema e não identificar, apressada e/ou interessadamente, a posição do magistério da Igreja com a posição que aparece em um determinado documento, sem considerar o contexto desse documento e o desenvolvimento do tema em encíclicas posteriores.

IV – BIBLIOGRAFIA

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[1] Publicado em REB 313 (2019) 468-489. - Aquino Júnior, F. de. (2019). Rerum Novarum: Um guia de leitura. Revista Eclesiástica Brasileira, 79(313).

[2] Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; doutor em teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster – Alemanha; professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e do PPG-TEO da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

[3] Por ocasião da celebração dos cem anos da Rerum Novarum, a revista Concilum publicou um número monográfico intitulado “Rerum Novarum: cem anos de doutrina social católica”, no qual situa a Encíclica no contexto mais amplo dos movimentos sociais católicos e trata de sua recepção e de seus desdobramentos em diferentes países, bem como na teologia feminista e na teologia da libertação (Cf. Concílium 237 [1991/5] 1-154).

[4] CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 33.

[5] BURNS – LERNER – MEACHAM, História da Civilização Ocidental, p. 478.

[6] Cf. CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 31-74; MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 105-134; MATOS, Caminhando pela história da Igreja, p. 114-129; GOMES, “Rerum novarum”, 395-397; TERRA, “A Rerum Novarum dentro de seu contexto sociocultural”, p. 347-366.

[7] Cf. BURNS – LERNER – MEACHAM, História da Civilização Ocidental, p. 498-596, 603-622; HOBSBAWM, A era das revoluções; IGLESIAS, A revolução industrial; DECCA, O nascimento das fábricas.

[8] MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 107.

[9] Cf. BURNS – LERNER – MEACHAM, História da Civilização Ocidental, p. 529-541; MARTINA, História da Igreja, p. 25-28.

[10] Cf. MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 109-111; MATOS, Caminhando pela história da Igreja, p. 114-117.

[11] Cf. THOMPSON, A formação da classe operária inglesa.

[12] MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 112s; cf.

[13] Cf. REALE – ANTISERI, História da Filosofia III, p. 312s.

[14] Cf. REALE – ANTISERI, História da Filosofia III, p. 174-183.

[15] Cf. REALE – ANTISERI, História da Filosofia III, p. 184-206.

[16] Cf. MARTINA, História da Igreja, p. 31-35.

[17] Cf. AUBERT, A Igreja e na sociedade liberal e no mundo moderno, p. 141-160; AUBERT, “A Enciclica Rerum Novarum, ponto final de um lento amadurecimento”, p. 7-28; MARTINA, História da Igreja, p. 35-52; GOMES, “Catolicismo social (século XIX)”, p. 76-77; MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 113-121.

[18] AUBERT, A Igreja e na sociedade liberal e no mundo moderno, p. 141.

[19] AUBERT, A Igreja e na sociedade liberal e no mundo moderno, p. 142.

[20] Cf. MARTINA, História da Igreja, p. 52-56.

[21] AUBERT, A Igreja e na sociedade liberal e no mundo moderno, p. 15.

[22] Cf. CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 53-58; CAMACHO, “La Chiesa di fronte al liberalismo e al socialismo: Per una interpretazione pià completa della ‘Rerum Novarum’”, p. 219-233.

[23] Por questão de praticidade, usaremos a tradução do documento feita pelas paulinas e seguiremos a numeração ai proposta (LEÃO XIII, Carta Encíclica Rerum Novarum). A partir de agora, os números entre parêntesis, sem outra indicação, remetem à numeração desta obra.

[24] Cf. PONTIFICIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, Da Rerum Novarum à Centésimus Annus, p. 73-110; GOMES, “Rerum Novarum”, p. 396; MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 124-131; FOYACA, As encíclicas sociais, p. 13-32.

[25] Cf. CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 51s.

[26] AUBERT, “A Enciclica Rerum Novarum, ponto final de um lento amadurecimento”, p. 7.

[27] CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 75-94; AUBERT, A Igreja e na sociedade liberal e no mundo moderno, p. 11-18.

[28] AUBERT, “A Enciclica Rerum Novarum, ponto final de um lento amadurecimento”, p. 22.

[29] Cf. SCHÄFERS, “‘Rerum Novarum’: Uma conquista dos movimentos sociais cristãos ‘de base’”, p. 12-27.

[30] AUBERT, “A Enciclica Rerum Novarum, ponto final de um lento amadurecimento”, p. 7s.

[31] MATOS, “Leão XIII e a questão social”, p. 124-131.

[32]  Diuturnum illud [29 de junho de 1881], sobre a origem do poder; Humanum genus [20 de abril de 1884], sobre a franco-maçonaria; Immortale Dei [1 de novembro de 1885], sobre a constituição cristã do Estado; Libertas praestantissimum [20 de junho de 1888], sobre a liberdade humana e o liberalismo; Sapientiae christianae [10 de janeiro de 1890], sobre os deveres do cidadão cristão (Cf. CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 75-87).

[33] AUBERT, A Igreja e na sociedade liberal e no mundo moderno, p. 15. “Reconhecendo, finalmente, com realismo que a era dos príncipes católicos estava, na maioria dos países, definitivamente encerrada, Leão XIII procurou recristianizar os governos a partir de baixo, a fim de encontrar neles apoio para a Igreja” (Ibidem, p. 16).

[34] AUBERT, “A Enciclica Rerum Novarum, ponto final de um lento amadurecimento”, p. 27.

[35] CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 59.

[36] SCHOOYANS, “Centesimus annus e a ‘seiva generosa’ da Renum novarum”, p. 42.

[37] CAMACHO, Doutrina social da Igreja, p. 63.

[38] AUBERT, “A Enciclica Rerum Novarum, ponto final de um lento amadurecimento”, p. 26s.

[39] Ibidem, p. 27s.

[40] HACKMANN, “Aspectos teológicos da Rerum Novarum”, p. 119.

[41] Em sua introdução à publicação conjunta da RN e da CN pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, Schooyans destacou a “fecundidade duradoura” da RN, “mostrando que esta encíclica isolou e identificou alguns dos principais temas que alimentam o pensamento social da Igreja até nossos dias” (Cf. SCHOOYANS, “Centesimus annus e a ‘seiva generosa’ da Rerum novarum”, p. 29-72). Em sua recensão a esta obra, Libânio destaca a importância do trabalho de Schooyans “para uma consulta rápida a qualquer uma dessas questões [abordadas]”, embora, concretamente no que diz respeito à crítica ao socialismo e ao capitalismo, “não parece fazer jus às oscilações do magistério”, querendo “traçar uma evolução linear no ensinamento social da Igreja [...] como se ele não tivesse sofrido verdadeiras retificações”. E, neste ponto, “falta talvez um pouco mais de criticidade à introdução. Reflete antes uma leitura a partir do poder (M. Foucault) que nunca se retrata ou corrige, mas sempre quer mostrar perfeita continuidade nos seus ensinamentos. Tal interpretação é pouco sensível às rupturas, minimiza-as, enquanto intenta enfatizar a linearidade evolutiva” (LIBANIO, “Recensão”, p. 277s).