Apartheid das vacinas e condições opressivas impostas pelos países ricos para “ajuda” mostram que é preciso outra luta: desencadear ações comuns para manter planeta habitável; e cobrar de cada nação segundo suas possibilidades
Por François Polet, em La Libre | Tradução: Vitor Costa | Outras Palavras
Longe de ser um sinal de solidariedade internacional, a recente promessa dos países do G7 de entregar um bilhão de doses de vacina contra o coronavírus aos países mais pobres até o final de o ano de 2022 ilustra as falhas na cooperação intergovernamental no campo da saúde pública global. É muito pouco e é muito tarde. Lembremos que a iniciativa COVAX, lançada em abril de 2020 pela OMS e destinada a ser a resposta da comunidade internacional aos reflexos do “nacionalismo vacinal”, inicialmente destinava 1,3 bilhão de doses a países de baixa renda e renda intermediária em 2021. No início de junho, 54 milhões haviam sido entregues. No final desse mesmo mês, o atraso era de 190 milhões de doses em relação ao cronograma inicial, segundo o Le Monde.
Mas o mais problemático do anúncio do G7 na Cornualha, em termos de governança internacional, é que ele deixa evidente que a resolução da crise global depende da boa vontade e da generosidade do clube dos países mais ricos. Uma mensagem seriamente contraproducente em vista dos imensos desafios de coordenação internacional necessários para resolver os problemas planetários de agora e do futuro, sobretudo a questão das mudanças climáticas.
Os erros da “diplomacia das vacinas” são o último exemplo da falta de cooperação internacional, em particular (mas não apenas) porque ela permanece dentro da lógica da “ajuda”, que não está adaptada aos desafios do século XXI. Uma revolução se impôs: em um mundo interdependente, onde o que acontece em um canto do planeta tem consequências para em todos os países do mundo, devemos passar da ideia de “ajuda” ao conceito de “investimento público global”. Este salto qualitativo é defendido por Jonathan Glennie, em livro que acaba de ser publicado pela editora Routlegde. Ativista da solidariedade internacional, autor de uma obra crítica sobre a solidariedade, Glennie parte de uma importante observação: por um lado, a cooperação na gestão dos bens públicos global (luta contra o aquecimento global, prevenção de pandemias, pesquisa, etc.) requer um aumento radical dos gastos públicos internacionais; por outro, o orçamento destinado ao fomento ao desenvolvimento público é cada vez mais questionado pelos países ricos.
As fontes da crise de legitimidade da ajuda ao desenvolvimento são múltiplas. A primeira encontra-se nas consequências mais duradouras da crise de 2008-2011: a expansão da insegurança econômica enfraquece a aceitação pública de gastos para um “outro distante”. Ao mesmo tempo, o crescimento econômico desigual dos grandes países emergentes aconteceu de tal maneira que a maioria das pessoas pobres no mundo agora vive em países classificados como de “renda média” (China, Índia, Indonésia, etc.), que supostamente deveriam financiar, eles próprios, seus programas de redução da pobreza. Há, portanto, pressão dentro dos Estados ocidentais para interromper o apoio a esses países e reduzir o orçamento global de ajuda. Além disso, uma série de fluxos financeiros Norte-Sul têm crescido muito desde a virada do milênio (remessas por imigrantes, investimentos estrangeiros, filantropia privada, cooperação Sul-Sul) e isso reduziu o peso da ajuda pública para o financiamento do desenvolvimento. O ambiente ideológico neoliberal acentua essa tendência: a ajuda “pública” é considerada muito menos eficiente do que o investimento privado.
Esse esgotamento também se manifesta no campo dos setores progressistas da solidariedade internacional. Eles constataram que grande parte do auxílio público continua sendo impulsionado por interesses políticos e outras posturas neocoloniais, que reduzem sua eficácia. Ou mesmo contribuem para políticas inaceitáveis (em termos de migração, por exemplo) ou para a manutenção de regimes autoritários e corruptos. Estas são as razões pelas quais as ONGs têm enfatizado, nos últimos dez anos, o debate sobre a “coerência das políticas a favor do desenvolvimento”, ou sobre a reforma dessas políticas (acordos comerciais, tributação internacional, venda de armas, etc.) que não se enquadram como ajuda internacional, mas têm impacto considerável no desenvolvimento dos países mais pobres.
O resultado desta contradição entre o aumento das necessidades de financiamento de políticas globais e o desaparecimento programado da ajuda oficial ao desenvolvimento reside, de acordo com Glennie, na mudança do paradigma da ajuda para o paradigma do investimento público global. A ideia de “ajuda” pressupõe que um país rico transfira recursos para um país pobre para compensar sua falta de recursos para financiar “seu” desenvolvimento. A quantidade, duração e condições relacionadas a esta transferência são decididos unilateralmente pelo país doador, que apresenta esta “doação” como fruto de sua generosidade, ao mesmo tempo em que se esforça para obter benefícios diplomáticos ou comerciais. Por outro lado, a ideia de “investimento público geral” baseia-se na responsabilidade de qualquer Estado, pobre ou rico, de contribuir na medida de seus meios para o financiamento de bens públicos globais, cuja preservação é crucial para a sobrevivência de toda a Humanidade. Não se trata, portanto, de um “presente”, mas de uma contribuição para o financiamento do “comum” em um mundo interdependente. Esse processo se encaixa melhor em uma lógica de política pública em escala global.
Basicamente, essa mudança relaciona-se à passagem, na virada do século XX, de uma abordagem da pobreza dependente de filantropia de uma burguesia paternalista para políticas de proteção social baseadas em impostos e contribuições, dirigidos a todos os cidadãos, numa lógica de “direitos”.
Alguns argumentariam que esta forma de olhar para o financiamento multilateral das necessidades globais não é novidade. De fato, a ideia de gestão comum de recursos orienta uma série de programas e agências das Nações Unidas, como a OMS. Uma parte relativamente importante das despesas nacionais de auxílio público dos mais ricos para desenvolvimento dos países pobres já é gerida dentro dessa lógica de mecanismos coletivos. Nos anos 2000-2010 observamos um florescimento de parcerias público-privadas que reuniam fundações, governos, ONGs e empresas (Fundo Global contra AIDS, Alianças de Vacinas, etc.). Um Fundo Verde para o Clima existe desde 2009, e é financiado por países industrializados interessados na luta contra o aquecimento global nos países em desenvolvimento. Essas iniciativas internacionais, no entanto, têm um sério limite em sua escala, e permanecem insignificantes em relação às grandes questões globais. Além disso, sua arquitetura institucional permanece dependente da lógica “doador-beneficiário”.
O conceito de “investimento público global” proposto por Jonathan Glennie pressupõe, por um lado, uma mudança de escala nas quantias em questão: ferramentas financeiras de tipo cooperativo deveriam constituir os mecanismos principais do financiamento público para o desenvolvimento sustentável. Por outro lado, deveria haver a sistematização de um modo de operação universal: todos os países contribuiriam dentro de suas possibilidades; todos os países participariam do processo de tomada de decisão independentemente desses recursos; todos os países se beneficiariam dos investimentos, atendendo às suas necessidades.
Entre as vantagens que Jonathan Glennie atribui ao investimento público, gostaria de citar três, que me parecem as mais importantes:
Ao recorrer ao conceito de “investimento” em um bem público global, abandona-se a ideia de um “fundo perdido”, que pressupõe que o doador nada tem a ganhar além da sua consciência limpa. A ideia de “investimento” pressupõe rentabilidade para quem financia, neste caso na forma de um mundo mais seguro, mais sustentável e mais habitável, tanto no Norte como no Sul. Estamos falando, portanto, do interesse, strictu sensu, daquele que contribui, e assim podemos pensar no aumento do investimento a partir dos benefícios auferidos pelos que colaboram.
Ao adotar uma lógica universal – todos contribuem, decidem, se beneficiam – saímos da lógica pós-colonial que continua a organizar as relações Norte-Sul (apesar da retórica do parceria). O dinamismo econômico dos países emergentes, bem como o surgimento da cooperação Sul-Sul, condenam o domínio político Norte-Sul a obsolescência no médio prazo. O crescimento da crítica decolonial dentro da opinião pública ocidental faz com que essas lógicas eurocêntricas sejam politicamente cada vez menos toleráveis. Com o investimento público geral, os países do Sul não são mais considerados países “assistidos” (pelas antigas metrópoles), mas países que “possuem direito”, assim como todos os membros da comunidade internacional.
Por fim, a ideia de uma contribuição progressiva poderia possibilitar sairmos do padrão de dependência Norte-Sul, sem perder de vista também a manutenção das desigualdades financeiras e econômicas Norte-Sul (o acesso à vacina é o maior exemplo atual). Os países mais ricos contribuem mais e os países pobres beneficiam-se além de suas contribuições. Assim, o investimento público geral poderia constituir um mecanismo poderoso para a redistribuição da riqueza global em benefício do Sul global. Para usar um antigo ditado, seria possível não jogar fora o bebê (solidariedade) com a água banho (da ajuda).