Biblista e ecofeminista, a religiosa Tea Frigero, compartilha suas impressões sobre o papel da espiritualidade em nosso dia a dia
Por Karla Maria | 6ª Semana Social Brasileira
Tea Frigero nasceu na província de Milano na Itália. Filha de Giulio e Rodolfa, é a quarta filha do casal. Atualmente, vive em Belém (PA). De lá, via Zoom, Tea com seus 52 anos de vida religiosa e 46 anos de presença missionária na Amazônia na Congregação das Missionárias de Maria – Xaverianas conversou com nossa reportagem sobre o “papel” da espiritualidade no dia a dia, na transformação social, e na transformação de nós mesmos, com um olhar preocupado e generoso à natureza, à nossa casa comum.
Téologa, ecofeminista e biblista do Centro de Estudos Bíblicos (Cebi), Tea nos convida à reflexões pouco feitas dentro do corre-corre da vida com ou sem pandemia, e convida a nós mulheres, para um reencontro com a força da natureza que nos habita.
Tea, o que é espiritualidade?
É respiração. É o Espírito, Ruah, que é vida, vento. Ser espiritual é ser viva, repleta de Ruah. Quando eu respiro fundo, eu sou espiritual. É permanecer em relação com o vento, com o ar. A vida circula no inspirar e expirar, isso é a espiritualidade. Inspiro-me muito nos índios americanos, os Criks, para eles espiritualidade éinspiração, quando eu inspiro eu me nutro das energias universais. Faço entrar o ar e as energias dentro de mim. Quando eu expiro, é a minha dedicação ao Ser do mundo. Sintetizando, espiritualidade é vida, é conexão com o ar. Sem respirar morremos. Espiritualidade é o ar que sustenta, que formata uma pessoa. Pelo olhar cristão, vemos a comunidade de Lucas no Evangelho que nos apresenta Jesus que nasce pelo Espírito, gerado, consagrado, conduzido pelo Espírito.
Pode um praticante de determinada religião não ter espiritualidade? Estar engessado a rituais, comportamentos repetitivos sem essência?
A espiritualidade antecede a religião seja antropologicamente ou historicamente. Religião é uma estrutura de dogmas, ritos, credos, comportamentos, atitudes... Espiritualidade é Ruah, vento, respiração, processual, dinâmica. Posso ter uma religião, mas não ter uma espiritualidade. Elas têm uma conexão, uma relação, mas a espiritualidade vive além e antes da religião. Uma pessoa que se diz ateia pode ter uma profunda espiritualidade.
A espiritualidade é um elemento que fortalece a humanidade?
Sim, mas não é só isso. Como sou biblista darei um exemplo a partir da Bíblia. Jesus falou a Nicodemos "sentes o vento de onde vem, mas não sabes onde vai...” Nicodemos naquela noite não soube renascer de novo, ele teve medo de deixar a estrutura religiosa em que era preso, apesar de ser justo. Renasceu aos pés da cruz junto com José de Arimatéia, quando aceitou algo que subvertia seu credo, sua doutrina, sua hierarquia, sua ritualidade. Quando a religião por seus dogmas, estruturas, credos e ritos se formatizam em estrutura, como você diz engessando, se torna obstáculo a um caminho processual conduzido pelos Espírito. Então sim, posso pertencer a uma religião e não ter espiritualidade. A frase muito conhecida do Dalai Lama “a melhor religião é aquela que torna mais humana” sintetiza isso, pois religião é ‘religare’. Não são os dogmas, os sacramentos, as práticas religiosas que humanizam, mas o espírito que tem dentro disso, que é um processo, que é dinâmico e que humaniza.
Qual o papel da espiritualidade na resistência do povo mais pobre e sofrido?
O mandacaru resiste à seca como? Os açaizeiros resistem às marés como? Fincando as raízes na terra, buscando água, seiva na terra. O povo sofrido, pobre é que nem mandacaru, açaizeiro, finca suas raízes na terra e dela busca sua força, sua espiritualidade. Terra que é seu chão, que é sua vida. Esta terra, chão, é também o chão da fé. Fé que se enraíza numa profunda comunhão com a natureza e a religiosidade popular que vive e sobrevive à ritualidade dogmática da religião, neste caso o cristianismo. Mas quando [o povo mais pobre e sofrido] encontra a Palavra de Deus, Jesus de Nazaré, Maria ele se identifica, se espelha e afirma: que nem eu. Não deveríamos nos perguntar qual é o papel da espiritualidade, mas nos colocar ao lado, caminhar juntos para experimentar e fortalecer com ele este ar, este vento que é perfumado de maravilha, confiança, solidariedade, sonhos, esperanças.
Pode ser paradoxo, mas essa espiritualidade pode alimentar a indignação, a profecia?
Vou citar Santo Agostinho, ele diz “A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem a mudá-las”. Olha que bonito. E como traduzir isso para nós cristãos? Para nós cristãos há uma luz que brilha à nossa frente: Jesus de Nazaré, Maria sua mãe. Por exemplo, se a gente rememora o cântico de Maria, na Anunciação, ela se declara serva do Senhor, inserindo-se no cordão das ‘servas de Javé’. [...] Maria canta: Javé é misericórdia, faz grandes coisas nos humilhados e humilhadas, e com voz profética denuncia e diz não aos projetos dos poderosos, potentes e diz sim à partilha, ao soerguimento dos pequenos numa sociedade de inclusão, acolhimento, participação e aí volta para Nazaré. Jesus, seu filho, bebe do seu leite, respira seu mesmo ar, sente o mesmo vento e vai sair pelos caminhos da Palestina na trilha da profecia e do Reino.
Na leitura do profeta Jeremias é expresso claramente “quero calar, mas não posso”. Não só me indignar, mas falar apesar das consequências, mas não só falar... são necessárias ações concretas. São Paulo diz que não devemos nos conformar com a lógica deste mundo, mas transformá-lo. Quando nos chamam de comunistas, de subversivos, não temos que nos sentir ofendidos, mas orgulhosas e orgulhosos, porque trilhamos o caminho de Maria de Nazaré, de Jesus Cristo.
Se pensarmos no Cristo Crucificado, que tipo de espiritualidade ele nutria? Suportar a cruz foi uma manifestação de fé, de resiliência?
A cruz foi uma declaração de amor. O Evangelho da liturgia de ontem [Mt 16,21-27] é uma janela que se abre e nos faz entrever à fonte em que Jesus bebeu para alimentar sua espiritualidade: a do servo de Javé. Os poemas do Segundo Isaías são poemas de declaração de amor. O profeta dá voz aos que a história nega, silencia. Os que não têm voz, não têm rosto na história, não contam nos programas econômicos. São descartáveis. A eles, Javé declara “Tu és meu e eu te amo”. E o itinerário do servo de Javé é revelar, demonstrar concretamente este amor. Jesus bebe desta fonte. “Ele é o servo de Javé, o filho daquela que disse ‘eis a serva do Senhor’”. Seu caminhar pelas estradas da Galileia, Samaria, Judeia foi a encarnação desta declaração de amor. “Tu, leproso, cego, surdo, mudo, criança, mendigo, mulher, estrangeiro, impuro, iletrado, eu te amo”. A cruz é a fidelidade a esta declaração de amor, amor que alimenta a esperança e se completa na ressurreição, porque a ressurreição é a confirmação das ressurreições que as pessoas tiveram convivendo com Jesus: o cego que vê, o surdo que ouve, as mulheres que são reintegradas na sociedade, os impuros que são incluídos, então Jesus bebe desta fonte, e acho que é a fonte que nós também temos que beber para alimentar a nossa espiritualidade.
E como alimentar a espiritualidade no dia a dia, em meio ao complexo e difícil cenário que atravessamos no Brasil?
É de fato um desafio, pois nos encontramos numa realidade nova e antiga. Nova porque fomos jogados pela pandemia numa realidade desconhecida, antiga porque a pandemia fez emergir as mazelas da nossa sociedade: desigualdade entre ricos e pobres, homofobia, feminicídio, violência doméstica, corrupção, as notícias das mortes, a perda de pessoas, o isolamento social. Quando a gente diz que a pandemia e o coronavírus nos igualam, é uma mentira. Eu tenho uma reserva econômica que garante a minha subsistência, eu tenho isolamento, e os mais pobres?
Penso que a espiritualidade, mais do que nunca, tem que se tornar cotidiana. Mas não nos grandes lemas, mas na cotidianidade da vida, por exemplo, eu tenho que exercitar os meus olhos a enxergar o sofrimento, mas também às coisas positivas, os gestos de solidariedade, de carinho, de ternura. Tenho que exercitar os meus ouvidos a não somente escutar, ouvir os gritos de dor, mas também os de esperança, as palavras de conforto, consolação. Não podemos nos beijar e abraçar, mas precisamos criar outros gestos, nos tornar pacientes, tolerantes, e por que não orar, meditar... A convivência cotidiana nos apresenta esses desafios, mas é preciso perceber o que há de positivo nela, assim eu também alimento a minha espiritualidade. Leiam a Bíblia, um livro, escutem uma música. É preciso buscar a criatividade para encontrar esse vento [espiritualidade] que nos conduz.
Olhando para os povos tradicionais, com suas fortes conexões com a Natureza, é possível aprender com eles?
A partir destes anos de convivência na Amazônia, penso que eles são os nossos mestres de espiritualidade, com sua conexão, interligação... Tudo está interligado, todos somos irmãos, parentes. Para mim isso vem de longe, da convivência [...] Conhecendo a antropologia e a cosmovisão que o povo tem podemos entender a conexão com a natureza. Moro em Belém e quando a santa do Círio de Nazaré passa tem uma energia poderosa, uma energia que vem do povo, daquele estender a mão, acreditando que o divino está presente na cultura do povo, que não é verbalizada, mas que é vivida. Os próprios indígenas nos ensinam o cuidado. Os rios são as próprias veias e a mineração está abrindo feridas neste corpo.
A espiritualidade está conectada à Natureza?
Se é vento, ar, Ruah... Espiritualidade não é algo suspenso, é vida, conexão. É sentir que há uma comunicação, uma vida fluindo. O vento me fala do espírito, a terra me fala deste Deus que é mãe, que é vida, Pachamama; os rios são esta seiva que corre, como o sangue que nos sustenta. Os passarinhos que de manhã cantam fazem pensar no agradecimento à vida. Os povos indígenas, os povos originários, quilombolas nos ajudam e relembram isso.
Sinto que há uma forte conexão entre o sagrado feminino, a natureza e a espiritualidade. Neste sentido, como a senhora avalia essa conexão, em relação às religiões que limitam ou até criminalizam a manifestação da mulher, de seu corpo e sua espiritualidade?
Vou partir do medo que a religião, o cristianismo tem do corpo, sobretudo do corpo da mulher. Nas guerras, o que o conquistador faz? Pisa na terra e pisa na mulher. Olha a Amazônia, ela é selvagem, incontrolável, assim como o corpo da mulher. Ela perde sangue, mas não morre. A violência que se faz à terra é a mesma que se faz à mulher. Há algo que o homem não tem controle. É este poder de gerar vida, então é preciso controlar, explorar, inibir. É preciso possuir, porque possuir a terra e possuir a mulher é dizer: meu domínio, meu poder, minha superioridade. Isso é o patriarcalismo. Tem sim uma conexão muito forte entre a mulher e a Natureza, porque elas carregam a vida, elas têm a intuição, o cuidado, que não são só delas, também o homem tem, assim como as mulheres têm a racionalidade, mas são manifestadas de maneiras diferentes. O patriarcado nega a diferença, então sente a necessidade de dominar, de destruir, de controlar e possuir. O feminicídio é isso.
Esta é a visão do ecofeminismo...
O ecofeminismo, o feminismo não é só para as mulheres. Não é algo das mulheres, é algo humano que sonha com relações novas, com uma humanidade nova, com uma casa comum que acolhe todas as formas de vida e todas as opções de vida, e em um certo sentido, nós mulheres temos esta responsabilidade, de fazermos fluir isso que é nosso, da mulher.
Ao término da entrevista, Tea compartilhou uma poesia escrita por Madonna Kolbenschlag (1935-2000), religiosa que, assim como ela, foi teóloga feminista, e autora de seis livros sobre a libertação espiritual e psicológica das mulheres, era uma psicoterapeuta ativa e filósofa social.
“A todas as mulheres que descubram no poço do seu ser mais profundo,
Que tirem águas da vida como de uma fonte,
Que se reconciliem com sua sombra,
Que tenha valentia e paixão para a viagem,
Que se encontrem com todas as suas irmãs,
Que sejam mais companheiras e construtoras de um mundo e mulheres sábias,
Que ajudem a parir o futuro, com suas famílias grandes e pequenas benditas.
Que dancem a deusa dentro de vocês.”