No contexto de crise econômica e política, a barbárie do tráfico de pessoas se insere como uma das mais perversas formas de desumanização e exploração da pessoa e da dignidade humana.

Por Eurides Alves | Portal das CEBs

Estamos vivendo um tempo de incertezas, dor e sofrimento frente à pandemia da Covid-19 e à decadência social, econômica e política de nosso Estado-nação.  Uma crise global e sistêmica, regida por uma economia que mata, exclui, objetifica e mercantiliza a vida, os corpos, em função do lucro para poucos. 

As precárias condições de vida, as múltiplas vulnerabilidades sociais, o crescimento da pobreza, do desemprego, da fome e da miséria, a degradação socioambiental, as múltiplas e exacerbadas formas de violência e violações de direitos humanos e sociais, denunciam uma barbárie hedionda. Estamos imersos numa profunda degradação da nossa humanidade. 

O ódio, a intolerância, o racismo estrutural, a xenofobia, e tantas outras práticas desumanas, denunciam a banalização e a destruição da vida em larga escala. O dia a dia marcado pelos gritos de dor, do sangue derramado e dos corpos tombados de tantos irmãos e irmãs nos campos e cidades desta “pátria fuzil” nos causam indignação e revolta. Agudiza a necessidade do CUIDADO com a VIDA, como um modo de ser, amar, servir e transformar as relações e as estruturas mentais, culturais, e sobretudo econômicas de nosso tecido humano e social.  

Neste contexto, a barbárie do tráfico de pessoas se insere como uma das mais perversas formas de desumanização e exploração da pessoa e da dignidade humana. Segue sendo uma ferida que precisa de cuidado e cura. Com a pandemia da Covid-19, a violência doméstica, a insegurança alimentar e o índice elevado de desemprego têm contribuído para o aumento do número de feminicídios e de tráfico humano em suas diversas expressões: para fins de trabalho escravo, exploração sexual, mendicância, servidão doméstica e outras. Práticas nas quais as pessoas, sobretudo as mulheres e meninas, a população negra, migrante e refugiada são despidas de sua humanidade e de seus direitos, deslocadas, mercantilizadas e utilizadas conforme o desejo dos traficantes e das regras do mercado.

Para o enfrentamento destas realidades, o Papa Francisco tem com insistência nos convocado à superação da indiferença e à prática do cuidado como caminho e horizonte de uma economia sem tráfico de pessoas, sem qualquer tipo de exploração. Uma economia cujo centro seja a vida das pessoas e do planeta. Uma economia que não exclui e nem mata, que faz viver, inclui, humaniza, cuida e se empenha na superação das abissais desigualdades socais tendo a caridade como expressão de solidariedade e justiça social. 

No último dia 08 de fevereiro, celebramos o dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas e da memória litúrgica de Santa Bakhita – símbolo do compromisso da Igreja contra a escravidão. A Rede Internacional da Vida Consagrada de enfrentamento ao Tráfico de pessoas ‘TALITHA KUM’ organizou uma Jornada Mundial pela erradicação do Tráfico Humano que teve como tema “A força do cuidado: Mulheres, economia, tráfico de pessoas”. Nesta ocasião, o Pontífice relançou o apelo a uma outra economia: “…ampliem os esforços para transformar a economia do tráfico em uma economia de cuidados. O desejo é que esta economia de cuidados empodere a todos, especialmente as mulheres, para fomentar comunidades prósperas e seguras. Cuidar para transformar. Cuidar para combater o tráfico humano. Visibilizar, nos diversos espaços, as escravidões atuais e a exploração de meninas e mulheres. Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos”.

A força do cuidado está no coração da proposta da “Economia de Francisco e Clara” protagonizada pelo Papa Francisco e acolhida por vários grupos e organizações em todo o mundo. Uma economia com alma, humana, solidária, ecológica, soroterna, não sexista, não racista, com mística e profecia. Uma economia capaz de imprimir uma cultura de comunhão, baseada na fraternidade, na partilha e na equidade. “… As vossas organizações são canteiros de esperança para construir outras modalidades de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do descarte, para dar voz a quantos não a têm, para propor novos estilos de vida. Enquanto o nosso sistema econômico-social ainda produzir uma só vítima, e enquanto houver uma só pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal”. (Papa Francisco)

Onde nossas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), grupos, pastorais e organizações, se encontram frente a esta proposta de fazer do cuidado uma prática de amor que transforma, que se solidariza com a dor dos outros, das outras e da criação? Somos canteiros de uma economia do cuidado?  Temos inserido em nossas reflexões a proposta de uma economia que não usa as pessoas com fins de mercadoria? Temos dado visibilidade aos dramas da exploração de pessoas nas redes do tráfico humano ou em outras armadilhas deste iníquo sistema neoliberal que escraviza e explora as pessoas, sobretudo os pobres e vulneráveis, ou apenas temos lamentado a realidade, e pouco a pouco naturalizado a barbárie cotidiana? 

O paradigma do cuidado é para nós cristãs e cristãos um mandamento, uma mística e nele não há lugar para a indiferença. Cuidar é uma atitude e postura afetiva e ativa de compaixão e amorosidade para com os que sofrem. É colocar o coração nas mãos para partilhar, acolher, se unir e lutar para que não haja necessitados/as entre nós (cf. At 4,34), para que ninguém fique caído à beira do caminho (cf. Lc 10, 25-37); para que as mulheres não permaneçam encurvadas (Cf. Lc 13, 10-13); os trabalhadores/as não sejam descartados e explorados (cf. Mt 20,1-16); as crianças não sejam negligenciadas nem violadas, mas acolhidas, protegidas e abençoadas (cf. Mt 20, 1-16). 

E neste esperançoso tempo de retomada de nossa identidade sinodal, a mística e a prática do cuidado devem ser assumidas como um caminho de sinodalidade e profecia. Um chamado a resgatarmos a nossa humanidade, a sermos irmãs e irmãs que cuidam, respeitam, e assumem a missão de caminhar juntos e juntas com fé ativa e compromisso sociopolítico transformador, sendo capazes de fermentar a massa a partir de um rosto comunitário que anuncia que o Reino de Deus está entre nós (Cf. Lc 17,20-21) e demonstra pela força do testemunho que, na dinâmica do Reino de Deus, não cabe a riqueza acumulada (“…não podeis servir a Deus e à riqueza” – Mt 6, 24).