Jean Weid
05/07/2022

Assegurar soberania alimentar exige conversão à agroecologia. O pós-bolsonarismo precisa superar o agronegócio. Isso requer uma reforma agrária de novo tipo: mudar a estrutura fundiária, a base jurídica e o financiamento do campo.

Foto:  Maria Virgínia Yunes

Por Jean Marc von der Weid | Outras Palavras

A construção da segurança e da soberania alimentar no Brasil não se limita ao que discutimos no artigo anterior, no qual foram propostas apenas algumas soluções emergenciais. Resolver a questão estrutural é outra coisa e envolve muito mais do que a produção nacional de alimentos e seu acesso à população como um todo, um direito humano assegurado em acordos internacionais. Há um complexo cruzamento com questões agrícolas e agrárias, ambientais e populacionais, científicas e culturais, entre outras.

Espero que tenha ficado claro que a produção nacional de alimentos não é o objeto das políticas agrícolas no país. O objetivo do desenvolvimento agrícola é, e sempre foi, a produção de lucros para o agronegócio. Na lógica capitalista, o mercado define quais produtos são mais lucrativos e para estes produtos converge o investimento. Com toda a sua pujança produtiva, o Brasil está atrelado aos mercados internacionais de commodities e, por isso mesmo, seus produtos mais lucrativos e que dominam a pauta do agronegócio nacional são exportados. Com a demanda por commodities em crescimento contínuo há algumas décadas e com a cotação do dólar em alturas recordistas no plano internacional (fatores externos), e a demanda de alimentos no mercado interno deprimida pela pobreza (fator interno), o que cresce no Brasil agrícola é a soja e o milho (base para ração animal), carne de frango e porco (que também consomem rações de soja e milho) e carne de boi, resultado principalmente da criação outdoor, em pastos nativos ou plantados. Outros produtos em alta demanda também são principalmente voltados para a exportação: açúcar, celulose, suco de laranja, café, entre outros de menor peso. Por outro lado, os produtos dirigidos para o mercado interno acabam afetados indiretamente pelos produtos exportados, já que todo produtor de feijão ou arroz vai sempre se perguntar se não é mais negócio abandonar estes produtos por aqueles exportados. A economia agrícola está fortemente indexada nos preços das commodities e na taxa de conversão do dólar.

Pergunta-se se isto não é algo inevitável em uma economia globalizada e dolarizada e a resposta é sim e não. Sim, porque a tendência natural dos mercados seria a livre circulação de produtos e uma uniformização de modos de consumo no mundo. Ou seja, produziríamos (e exportaríamos) o que fosse mais caro e comeríamos o que fosse mais barato (importando, se necessário). O mercado opera pressionando nesta direção, mas ele não opera livremente. De fato, os países mais poderosos do ponto de vista agrícola têm políticas para garantir a segurança alimentar de seus povos e a soberania de suas nações, bem como as vantagens de suas exportações. Tanto os EUA como os países do bloco Europeu, sem falar de Rússia ou China, Japão ou Índia, asseguram a produção nacional de alimentos através de políticas públicas (créditos, impostos, pesquisas, outras) e da proteção dos mercados nacionais. Os subsídios para os agricultores americanos variam de produto a produto, mas, na média, para cada dólar produzido pelo agribusiness americano, o Estado acrescenta um outro dólar em diferentes formas de apoio. Com isso, as importações americanas de alimentos ficam sempre pouco significativas perto da produção nacional. Há produtos que dificilmente poderiam ser plantados no espaço climático americano, por exemplo a castanha de caju ou a do-pará. Estes são importados, mas no conjunto da dieta americana esse produtos (e outras raridades do mesmo gênero) são irrelevantes. O nível dos subsídios na União Europeia é semelhante ou maior, variando no passar dos anos em função das conjunturas. A pressão para derrubar as barreiras tarifárias dos grandes mercados ricos é constante, mas para países que historicamente viveram restrições no acesso aos alimentos (na crise dos anos trinta nos EUA e durante a guerra e no pós-guerra na Europa), garantir o abastecimento interno é uma regra de ouro.

O que acontece no Brasil é que o nosso mercado interno não é atraente para o agronegócio devido à generalizada pobreza e miséria. Apenas a classe A pode representar um mercado interessante e, para este segmento, bastante minoritário, existem produtores nacionais e/ou poder de compra para acessar importados. A pobreza não tem interesse para os negócios. Esta lógica terá que ser revertida, se quisermos garantir o direito humano à alimentação no Brasil.

Como em outros países, o agronegócio brasileiro recebe benesses do Estado, embora isto não esteja dirigido à produção nacional de alimentos. O modelo produtivo adotado pelo agronegócio brasileiro é, como no resto do mundo, dependente do uso de insumos químicos, maquinário e combustíveis fósseis. Adubos à base de fósforo, potássio e nitrogênio (produzido a partir do petróleo e do gás) e agrotóxicos são essenciais para fazer produtivas as grandes monoculturas cultivadas por supertratores, colheitadeiras e aviões. Ocorre que estes produtos estão em processo de exaustão em todo o mundo. Não existem mais as jazidas destes minérios com as escalas que os faziam baratos. A produção do agronegócio tem custos de insumos em processo de permanente aumento, independentemente de quaisquer outros fatores de mercado. Ou seja, commodities ou alimentos, produzidos no modelo agroquímico e motomecanizado estão sempre com preços historicamente em tendência de alta, com flutuações episódicas e curtas para baixo.

O agronegócio se gaba de produzir mais barato do que qualquer alternativa tecnológica na agricultura, mas este preço “mais barato” tem a ver com os subsídios governamentais e com outra coisa importante, a eliminação do custo das chamadas externalidades. O que são estas externalidades? A contaminação de solo, água e ar pelos agrotóxicos ou adubos químicos, a erosão dos solos carreando sedimentos para rios e lagos, a destruição da biodiversidade, são alguns destes fatores cujos custos não recaem sobre o produto ou o produtor, mas têm consequências (custos e outras) para a sociedade como um todo. A maior das externalidades é o impacto do sistema produtivo do agronegócio em termos de liberação de gases de efeito estufa e, portanto, na aceleração do aquecimento global. A agropecuária é o setor econômico no mundo de maior impacto ambiental e maior impacto no aquecimento global. Mesmo se considerarmos apenas o efeito provocado pelas culturas já estabelecidas e ignorarmos o enorme impacto de novos desmatamentos e queimadas o peso do agronegócio na produção de gases de efeito estufa ainda seria muito alto. Ou seja, não vai bastar decretar um desmatamento zero. Vai ser uma grande ajuda (analisaremos isto mais adiante) para a sobrevivência dos nossos filhos e netos, mas não vai ser suficiente. Ou seja, o agronegócio está condenado a médio e longo prazo (algumas décadas), quer pelos custos crescentes provocados pela oferta minguante e mais cara dos insumos químicos e dos combustíveis, quer pelo seu papel negativo em termos de impactos ambientais e mudanças climáticas.

Bem, se o agronegócio (que é “tech”, é “pop” e é “tudo”) está condenado, como o mundo vai poder se alimentar? Há um modelo produtivo já identificado e testado que pode perfeitamente substituir o sistema do agronegócio com múltiplas vantagens: chama-se agroecologia. Em sistemas agroecológicos, sobretudo os mais avançados tecnicamente, não há emissão de gases de efeito estufa e, ao contrário, há absorção de CO2, ou seja, redução de um dos mais importantes gases já existentes na atmosfera. São sistemas nos quais, em princípio, não teremos perdas de solo e de biodiversidade. Digo em princípio porque em todo sistema há os que operam com maior ou menor correção e as práticas agroecológicas podem ser aplicadas em escalas variadas, sendo que as maiores sempre são as de menor excelência e isto se explicará adiante.

Estudos efetuados por universidades americanas e europeias e pela FAO mostram que os sistemas agroecológicos podem garantir alimentos para todo o mundo em quantidade e qualidade suficientes para uma nutrição correta. Também mostram que estes sistemas são capazes de ter rendimentos equivalentes ou melhores do que os das culturas convencionais agroquímicas. Também em termos de custos os produtos agroecológicos são competitivos com os sistemas de monoculturas agroquímicas em grande escala (apesar de não receberem os subsídios destes últimos).

Muitos reagirão perguntando: “como é que é? Os produtos orgânicos vendidos nos supermercados custam muito mais do que os convencionais!”. É verdade, mas isto não significa que eles tenham custos de produção maiores. Duas coisas fazem os orgânicos serem mais caros: os custos de comercialização e o fato de a demanda superar a oferta. E a mão grande dos supermercados também, é claro. O custo de comercialização é maior pelo fator da baixa densidade e pela escala da oferta. Os produtores orgânicos são ainda poucos e dispersos no mundo rural. Por outro lado, a própria natureza da proposta agroecológica exclui a monocultura e favorece policulturas – quanto mais diversificadas, melhor. Isto significa que a coleta dos produtos para a venda se faz em quantidades relativamente pequenas de cada espécie em cada propriedade. Juntar tudo isto em volumes que sejam compatíveis com o custo do transporte até os mercados pode ser um problema, como todo produtor orgânico pode testemunhar. Mas este é um problema que é superável na medida em que vai se ampliando a adesão a este sistema produtivo e se adensando a oferta de produtos em zonas rurais definidas.

Qual o limitante dos sistemas agroecológicos? Por muito tempo se considerou que o uso intensivo de mão de obra era um limitante decisivo, já que em sistemas diversificados a mecanização de muitas operações não é possível. Com o tempo foi ficando evidente que é possível manter um grau de diversificação no espaço agrícola um pouco menor do que o idealmente desejável, de modo a possibilitar a mecanização de algumas operações. É um “trade off”, certamente, porque estas soluções diminuem o grau de diversificação do microambiente e, portanto, o grau de eficiência do sistema.

O que limita o tamanho dos sistemas agroecológicos no mundo real, mais do que a demanda de mão de obra superior à dos sistemas agroquímicos e motomecanizados é a exigência de qualidade desta mão de obra e a capacidade de gestão do produtor ao lidar com sistemas de alta complexidade. É por isso que se considera que a agroecologia é um sistema que funciona, essencialmente, em pequenas escalas e pela participação direta do produtor. Em outras palavras, a agroecologia é um sistema produtivo mais adaptado para agricultores familiares, diretamente participantes da produção, do que para empreendimentos patronais, dependentes de mão de obra assalariada e operações em larga escala. Isso dito, são muitos os exemplos de agronegócios mais ou menos agroecológicos que estão operando com sucesso no Brasil e no mundo. Em todos os casos que conheço estes não são os sistemas mais performáticos, mas comparando com a agricultura convencional eles são um avanço.

Este longo preâmbulo é para chegar à seguinte conclusão: vai ser preciso substituir o sistema agroquímico e motomecanizado do agronegócio por sistemas agroecológicos e dentre estes sistemas agroecológicos os de melhores resultados são aqueles em pequena escala e dirigidos por agricultores familiares.

A pergunta não é se isto deve ser feito, mas sim como deve ser feito. Para começar, precisamos corrigir tanto as políticas de apoio à agricultura familiar como a política de reforma agrária. E corrigir as políticas dirigidas ao agronegócio. Comecemos por estas últimas.

As políticas de apoio ao agronegócio são muitas, mas vamos tratar apenas das mais relevantes. O crédito facilitado e subsidiado, além das muitas operações de renegociação (inclusive perdões) de dívidas do agronegócio, envolveu centenas de bilhões de reais nos últimos 30 anos. Em segundo lugar, as isenções de impostos nos insumos (adubos, agrotóxicos, outros) representam uma impressionante renúncia fiscal que está na casa dos R$ 6 bilhões por ano. Seguem-se reduções de impostos em produtos ou no ITR. Além disso, o agronegócio se beneficia da não cobrança das punições por crimes ambientais ou pelo uso de mão de obra escrava que, é certo, não é generalizado, mas é mais importante do que se admite. Tudo isto terá que ser anulado em uma política de conversão da agricultura brasileira no caminho da sustentabilidade.

Será necessário rever toda a política de liberação de agrotóxicos que fez do Brasil o paraíso dos produtos proibidos em todo o mundo. Diminuir o uso de agrotóxicos é algo fundamental a curto prazo pelo impacto ambiental e na saúde de trabalhadores, consumidores e comunidades rurais em razão do emprego destes produtos, em particular na forma de fumigações aéreas. Vejam só, isto não é mais do que uma racionalização defendida pela FAO e não tem nada de radical, a não ser para o nosso atrasadíssimo agronegócio. Acelerar a substituição de agrotóxicos por controles biológicos também é uma recomendação da ciência mais avançada, inclusive da Embrapa. Entretanto, é bom notar que sistemas baseados em grandes monoculturas são, intrinsecamente, vulneráveis aos ataques de pragas, doenças, fungos, ácaros, etc.

Todas as medidas propostas até agora só reduzem os estragos, mas não resolvem o problema. Somente a diversificação dos agroecossistemas permitirá a redução dos ataques de pragas e de doenças e quanto maior esta diversificação maior a eficiência dos controles não químicos. De toda forma, é bom lembrar que a agricultura é uma atividade que altera um meio ambiente natural e que, portanto, ela sempre vai provocar alguma reação da flora e da fauna afetada. Os sistemas agroecológicos mais avançados, inclusive os de tipo agrossilvopastoril, são aqueles que menos alteram os sistemas naturais e, portanto, são os que cobram menos uso de produtos de controle, que deveriam ser todos biológicos. Já os sistemas do agronegócio se caracterizam por arrasar os sistemas naturais onde eles se instalam, provocando uma imensa perturbação no habitat e a multiplicação de pragas e invasoras atacando a homogeneidade ambiental das monoculturas em larga escala.

Ainda tratando das políticas voltadas para o agronegócio, defendo a necessária revisão científica da liberação do uso de variedades transgênicas. Como elas foram liberadas ignorando o debate científico e adotando uma política de aprovação sistemática de cada espécie/variedade solicitada pelas empresas de biotecnologia, vai ser preciso alterar a composição e o funcionamento da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Não será preciso mudar a lei de biossegurança, embora isto seja desejável, mas definir normas infralegais (ou seja, definidas ao nível administrativo) sobre a composição, indicação e regras de conflito de interesses, e a obrigatoriedade da explicitação das razões dos votos dos cientistas participantes. No que concerne a composição, vai ser preciso respeitar a letra da lei que diz que os indicados a participar da comissão sejam especialistas em biossegurança. Hoje em dia os cientistas que participam da CTNBio são especialistas em biotecnologia, mas não têm expertise em biossegurança. A lei de biossegurança define que as decisões sobre liberação de transgênicos se façam por maioria simples de todos os membros titulares presentes. Originalmente a regulamentação da lei cobrava 2/3 dos votos e isto pode ser restabelecido. Mas o elemento mais importante a ser instituído é o modo de votar. A CTNBio tem quatro grupos de cientistas na sua estrutura: especialistas em riscos para a saúde animal, para a saúde vegetal, para a saúde humana e para o meio ambiente. Cada grupo analisa os riscos da sua área de especialidade, mas na hora de votar uma liberação todos se misturam. Ou seja, é possível que todos ou a maioria dos cientistas de uma das comissões, especializada em um risco concreto de biossegurança, fiquem em minoria em uma plenária onde os outros cientistas de outras comissões não vejam problemas nas suas áreas. Se isto acontecer, o transgênico em questão pode ser aprovado, o que é um absurdo total. O transgênico proposto e em análise teria que ser aprovado em cada uma das comissões temáticas e não por voto majoritário do conjunto. É o mesmo de uma junta médica avaliar um doente e o voto dos especialistas em cardiologia, urologia e pneumologia afirmarem que o doente está muito bem nas suas áreas e o voto dos especialistas em gastroenterologia afirmar que ele está à beira da morte com câncer de estômago e no balanço final o enfermo ganhar alta porque a maioria não viu problemas.

Para terminar com a revisão das políticas dirigidas ao agronegócio, é preciso acabar com a total impunidade deste setor no que se refere aos crimes ambientais, em particular os desmatamentos e queimadas. A cobrança dos crimes passados e que vai sendo rolada com a complacência das autoridades tem que acabar e a conta tem que ser quitada. O cerco aos desmatadores e incendiários tem que ser apertado daqui para a frente de modo a chegarmos o mais rapidamente ao desmatamento zero. Muitos destes senhores do agronegócio devem à lei a obrigatoriedade da recomposição das áreas de reserva legal e esta obrigação terá que ser respeitada.

Mas o que fazer para aumentar a produção de alimentos, que certamente não vai interessar ao mundo do agronegócio? Como aumentar a oferta de arroz em 50% e a de feijão em 200%, por exemplo? E o que fazer para ampliar a oferta de frutas e de hortaliças? A produção de carnes e ovos tem volume suficiente para bancar o mercado interno com sobras, a questão é de preço. Mas o Brasil precisa de exportar e a sua área rural disponível é uma benção, se for bem utilizada. A conversão para a agroecologia na área da produção de carne bovina, por exemplo, é algo tecnicamente já bem dominado e permite um uso mais racional do solo com uma produção de carne por hectare muito maior do que nos sistemas de pastoreio convencional e muito maior sustentabilidade que nos sistemas de criação intensiva estabulada. Seria possível, inclusive incorporando outras abordagens do tipo sistemas silvopastoris, trazer toda a nossa produção de carne bovina para o mercado interno e com fortes excedentes exportáveis, até com sobrepreços por ser produto orgânico e ambientalmente correto.

Todo o problema para a conversão agroecológica da nossa agricultura está na nossa estrutura fundiária e na perda de espaço da agricultura familiar. Como já disse antes, apesar de receber apoio de políticas públicas pela primeira vez na nossa história desde meados do governo FHC, a agricultura familiar retrocedeu na sua dimensão, perdendo entre 2006 e 2017 cerca de 10% dos seus componentes (pouco mais de 400 mil famílias agricultoras). Por outro lado, apesar dos apoios públicos, os índices de pobreza entre os agricultores familiares, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste (onde se encontra 60% desta categoria) continuam elevados e eles são a base maior dos programas sociais como o Bolsa Família. Esta situação tem uma explicação vinculada ao histórico processo de concentração de terras no país. O latifúndio e o agronegócio se apropriaram das melhores terras nos ecossistemas mais adequados à produção agropecuária. Sobraram para a agricultura familiar, salvo exceções pontuais localizadas na região sul, as piores terras nos ecossistemas mais frágeis e vulneráveis, mais sujeitos a secas e alagamentos. Estas condições de acesso aos recursos naturais, combinadas à falta de recursos financeiros para investir na produção e de acesso a mercados remuneradores explicam, em boa parte, a pauperização da agricultura familiar. O outro fator é tipo tecnológico. Os sistemas tradicionais da agricultura tradicional são de baixa produtividade e dependem de uma razoável disponibilidade de terras para não esgotar a fertilidade natural dos solos. Com a fragmentação das propriedades esta disponibilidade foi desaparecendo e os sistemas tradicionais entrando em paulatino colapso. Mas mesmo quando as políticas públicas facilitaram o crédito, como nos governos de FHC, Lula e Dilma, a orientação do uso dos recursos favoreceu a aplicação das técnicas convencionais empregadas pelo agronegócio e a operação não deu certo, salvo nos casos em que as condições ambientais e de recursos naturais diminuíram as margens de risco dos investimentos. Mesmo com programas de seguro agrícola instituídos por esses governos, o custo destas operações ficou muito alto pela inadequação da proposta técnica.

Isto nos leva à discussão da promoção da agroecologia como política de Estado. No longo prazo, a adoção da agroecologia vai exigir uma base de produtores muito maior do que a existente atualmente. Ela deverá, no longo prazo, substituir o latifúndio residual e o agronegócio que hoje ocupam perto de 200 milhões de hectares. E recuperar para a produção perto de 40 milhões de hectares de terras degradadas. Hoje são 3,9 milhões os agricultores familiares e eles dispõe, em média, de menos de 6 hectares cada um. Ou seja, perto de 23 milhões de hectares. Mas sabidamente, estas áreas são muito pequenas para as possibilidades e para as necessidades produtivas de uma família camponesa.

Qual o tamanho ideal para uma propriedade de um agricultor familiar agroecológico? Este estudo nunca foi feito, de forma que os dados que se seguem são especulações com base na experiência do autor. Considerando que em todos os sistemas de produção agroecológicos haverá uma área de vegetação nativa variando entre 20 e 50% da área da propriedade, segundo o bioma onde estiver inserida, e que outros 10 a 20% serão ocupados por uma vegetação nativa manejada de forma a colaborar com a produção, as áreas cultivadas e/ou de pastagem e/ou florestais ocuparão entre 30 e 70% da área da propriedade. A meu ver, dado o grau variável de diversidade dos ecossistemas naturais onde estas propriedades estarão inseridas e que definirão o grau de complexidade dos sistemas agroecológicos adotados, a área manejável pela família deverá ficar entre 5 e 10 hectares. Isto nos leva, arredondando, a propriedades com dimensões entre 15 e 35 hectares, dependendo do ecossistema onde estiverem inseridas. Muito grosseiramente, a área média de uma propriedade da agricultura familiar seria de 25 hectares a nível nacional. Para concluir esta especulação, basta dividir a área total disponível para a produção, estimada em 337 milhões de hectares, pelo tamanho desta área média estimada e teremos a necessidade de 13,4 milhões de agricultores, mais de 3 vezes os que hoje existem. Só para informação: cálculos feitos por uma universidade americana chegaram a um número muito mais impactante. Seriam necessários 40 milhões de agricultores familiares para substituir o agronegócio estadunidense e manter a produção agropecuária daquele país nos níveis de hoje, mas empregando as técnicas da agricultura orgânica. Há diferenças no método empregado no cálculo. Os americanos não previram áreas de reserva ambiental nem de vegetação nativa integrada ao manejo da propriedade. Por outro lado, os sistemas de produção orgânica que serviram de base para os índices de produtividade utilizados no estudo eram menos performáticos do que os que eu utilizei para o caso brasileiro. Finalmente, a área produtiva nos Estados Unidos é bem maior do que a nossa.

Passar de 3,8 para 13,4 milhões de famílias camponesas vai ser uma tarefa hercúlea e cobrará uma reforma agrária com uma abordagem muito mais avançada do que os modelos limitados e cautelosos utilizados até agora no Brasil. No início do governo Dilma, o presidente do INCRA, Celso Lacerda, promoveu um estudo diagnosticando a reforma agrária que estava em curso desde o governo Itamar. A conclusão (nunca publicada) foi que a RA era um fiasco. As terras distribuídas se localizavam, na maior parte dos casos, nos ecossistemas mais delicados, nas piores terras, frequentemente em áreas degradadas por latifúndios. O tamanho dos lotes era insuficiente para as necessidades das famílias. A assessoria técnica era rara e dirigida quase sempre para o uso de adubos químicos, sementes melhoradas por empresas e agrotóxicos, tecnologias caras e arriscadas nas condições destes agricultores. O crédito era escasso e de difícil acesso. O resultado era uma forte evasão, entrada de novas famílias de modo irregular ou a compra dos lotes pelos vizinhos, iniciando um processo de reconcentração de terras.

Uma nova reforma agrária dependerá não só de um movimento de desapropriação de terras muito mais ativo do que no passado, atingindo desde logo todos os grandes proprietários inadimplentes com o Estado ou devedores de multas ambientais. As propriedades onde foi ou for detectado o trabalho escravo deverão ser desapropriadas sumariamente. E os índices de produtividade que indicam, segundo a legislação, o uso correto da terra, deverão ser atualizados pois são os mesmos desde os anos 80 e inteiramente defasados. Com esta atualização, será possível fazer desapropriações com base na lei, hoje travadas por índices muito baixos de produtividade. Atualmente, por exemplo, não é possível desapropriar um latifúndio com uma cabeça de gado por quilômetro quadrado (100 ha), quando até métodos convencionais de pastejo permitem uma cabeça por hectare e métodos agroecológicos, como o Voisin, permitem criar três cabeças por hectare.

O problema maior (além do custo) para decretar o ritmo de desapropriações e de assentamentos vai ser a capacidade do Estado de promover sistemas de produção agroecológica em uma grande variedade de agroecossistemas. A agroecologia não funciona como uma receita de bolo onde técnicas padronizadas e uniformes são aplicadas em grande número de situações. A assessoria técnica para a formulação de sistemas agroecológicos tem que ser feita caso a caso e cobra uma formação qualificada dos assessores. A formação em técnicas da agroecologia e, mais ainda, em métodos de promoção do desenvolvimento agroecológico, não faz parte do currículo tanto de universidades agrárias como de escolas técnicas. Existem alguns cursos de especialização em várias universidades, mas eles são ainda limitados tanto no seu conteúdo técnico como na parte que trata das abordagens participativas de promoção do desenvolvimento, até agora quase estritamente domínio das organizações não governamentais de agroecologia operando na rede conhecida como ANA – Articulação Nacional de Agroecologia.

Para preparar o processo de reforma agrária e de promoção do desenvolvimento agroecológico vai ser preciso criar espaços de formação e pesquisa tanto de nível técnico médio como de nível universitário. Já existe uma base em muitas escolas técnicas e universidades que pode ser apoiada e dinamizada ao mesmo tempo que se discutem currículos e a pedagogia a serem adotados em cursos de ciências agrárias integralmente voltados para a agroecologia. Tudo isto leva tempo e torna o processo de conversão agroecológica da agricultura brasileira lento nos seus primeiros anos.

O primeiro passo para apoiar este movimento deve ser o de fortalecer e expandir os núcleos de agricultores agroecológicos já existentes em todo o país, criando programas de crédito adaptados aos processos de transição agroecológica, financiando as entidades de assistência técnica já em atividade e retomando os programas de compras de alimentos com financiamento do poder público (PAA), com prioridade para a produção agroecológica. Estamos falando de consolidar perto de 50 mil agricultores familiares e promover a expansão dos grupos que estes integram, levando os números para 200 mil em quatro anos, tal como foi proposto no PLANAPO, aprovado pela presidente Dilma. Estes núcleos serão a base sobre a qual os processos de desenvolvimento agroecológico vão se multiplicar no futuro, levando a um crescimento exponencial dos implicados na produção sustentável agroecológica. A sistematização e avaliação das experiências deste grupo pioneiro serão a base técnica e metodológica de uma nova escola de desenvolvimento rural.

Enquanto o movimento de conversão da agricultura para a abordagem agroecológica vai se desenvolvendo, a grande massa dos produtores familiares deve ser orientada pelos programas governamentais de crédito e de compras públicas para a produção de alimentos básicos. Isto implica criar condições favoráveis para que os agricultores se dediquem a estes produtos e não ao duo de commodities soja/milho. Uma política de taxas de exportação e de preços atraentes vai ter que ser formulada. É uma solução temporária pois, como já se viu acima, o que os produtores poderão fazer de imediato é adotar as técnicas do agronegócio. Não haverá, no curto prazo, suficiente acúmulo em experiência e em quadros técnicos para converter esta produção para a agroecologia de imediato. Algumas técnicas de uso universal poderão ser promovidas, tais como o uso de composto orgânico cuja produção poderá ser massificada a partir do tratamento do lodo de esgoto e do lixo orgânico das zonas urbanas. Uma iniciativa envolvendo prefeitos, governadores estaduais e governo federal poderá rapidamente abastecer os agricultores familiares com um adubo de qualidade e sem impactos ambientais negativos. Apesar de a produção alimentar da grande maioria dos agricultores não poder ainda adotar o conjunto das técnicas da agroecologia, é melhor que se voltem para a produção alimentar, mesmo que com métodos convencionais a longo prazo insustentáveis, do que seguir o país dependente de importações de alimentos. A conversão virá no médio prazo.

Neste ponto é importante ressaltar a radical mudança do perfil do desenvolvimento nacional embutida na proposta de substituir o agronegócio em grande escala pela agricultura familiar agroecológica. Ao levar, pelo menos, 10 milhões de famílias a se instalarem em áreas de reforma agrária o efeito no emprego e na distribuição espacial da população vai ser enorme. É preciso ainda lembrar que esta maciça recampesinização do espaço rural será acompanhada pelo deslocamento de outros trabalhadores, já que ela significará um aumento da demanda de serviços variados nas pequenas cidades e vilas que se formarão. Em um país com um problema estrutural de emprego nas áreas urbanas esta proposta não é um problema, mas uma solução. No entanto, temos que aprender com as experiências bastante pouco positivas das reformas agrárias impulsionadas nos últimos 20 anos. Para atrair a mão de obra ociosa para o campo vai ser preciso mais do que o que foi feito até agora. Não basta entregar terra para uma família, mas vai ser necessário acompanhar este passo com a oferta de condições interessantes de vida (habitação, energia, água, saneamento, comunicação, saúde, transporte, educação e lazer) e de trabalho (conhecimento em agroecologia, insumos, equipamentos, silos, infraestrutura hídrica, armazéns e silos, mudas e animais). O apoio ao processo produtivo e de organização social vai ser fundamental, sobretudo para permitir a socialização das famílias que optarem por morar nas propriedades.

Indiretamente, este movimento de relocalização da população e da mão de obra vai beneficiar a população e os trabalhadores das cidades que serão desinchadas por esta migração no sentido inverso da história dos últimos 70 anos. A massa de migrantes recentes, muitos deles deslocados a contragosto devido às péssimas condições de vida no campo, é o primeiro foco de atração para a recampesinização.

Possivelmente, o primeiro movimento de retorno ao campo se dará pelo investimento em um programa de reflorestamento maciço e de prevenção do desmatamento e das queimadas. Trataremos desta proposta, que se articula com a da reforma agrária, no ponto relativo aos problemas ambientais.

Este artigo é o quinto de uma série em que Jean Marc von der Weid se propõe a analisar a crise brasileira em suas diversas dimensões e propor alternativas. Leia os artigos anteriores:
– Um tsunami alimentar no horizonte brasileiro
– Por um programa de salvação nacional
– Uma agenda ambiental para Lula
– Como socorrer o Brasil que tem fome