“A alma e o contágio” é o título da intervenção do psicanalista Massimo Recalcati, ocorrida dia 10 junho de 2020, no evento “Repubblica delle Idee”, na Itália: uma reflexão sobre o que passamos e sobre onde encontraremos os caminhos a seguir.
A entrevista é de Laura Montanari, publicada em La Repubblica, 10-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto para o site IHU.
Voltamos para o lado de fora [na Itália], caminhando pelas ruas, mas com máscara e distâncias. O que a Covid-19 deixou dentro de nós, como herança?
Esperamos diversas coisas. Esperamos não esquecer tudo logo. Isso também aconteceu depois do 11 de setembro. Devemos reencontrar o mais rápido possível o direito de não pensar e de dormir em paz. Em vez disso, seria uma tragédia na tragédia se não tivéssemos aprendido nada, se voltássemos a dormir como se nada tivesse acontecido. Há pelo menos três imensas lições da Covid-19 que nos conviria não esquecer e herdar.
A primeira: não se pode reduzir a natureza a um mero recurso a ser explorado impunemente.
A segunda: não é possível que um país não tenha um sistema de saúde pública espalhado por todo o território e uma escola capaz de garantir educação, pesquisa científica e formação.
A terceira: a liberdade não pode coincidir com uma propriedade do indivíduo, não pode ser reduzida ao capricho de fazer o que se quer. Sem a solidariedade, a liberdade é uma palavra vazia. A salvação ou é coletiva ou não pode existir.
De acordo com o Istat (Instituto Nacional de Estatísticas da Itália), o medo e a incerteza causados pela pandemia levarão a um colapso dos nascimentos até 2021. O que você acha?
Penso que o evento do nascimento envolve uma parte de confiança no futuro, e que, no tempo deste trauma coletivo, o horizonte do futuro inevitavelmente se contraiu. Mas, para reaver o futuro, é necessário agir no presente com decisão. Por exemplo, permanecendo próximo dos últimos e dos mais frágeis economicamente; por exemplo, garantindo o direito ao trabalho. Sem trabalho, não há futuro.
Então, como podemos reagir após as ansiedades e a reclusão?
O risco será o de preferir o fechado, a proteção, a defesa ao aberto, à liberdade, à geração. Era um risco já presente antes da Covid-19 nas formas da pulsão securitária, da defesa das fronteiras, da sua militarização. O símbolo do muro havia voltado a ser de grande atualidade de modo inquietante pelos Estados Unidos de Trump até os arames farpados de Orban. O risco que eu vejo é uma acentuação da cultura do muro e da segregação.
A partir do seu observatório clínico, como estiveram as relações entre os casais no confinamento? Houve mais ou menos separações?
A proximidade, quando forçada, é sempre prejudicial ao desejo. Foi o que muitas vezes ocorreu. Ao mesmo tempo, porém, experimentamos que mesmo as relações a distância podem ser próximas.
E as famílias?
As famílias foram o lugar da resistência civil ao vírus. Supriram a ausência da escola, suportaram a angústia dos filhos, mantiveram aberta a esperança, suportaram materialmente condições de vida muitas vezes difíceis.
O que pode nos ajudar a retomar a normalidade que o vírus nos roubou: imaginar as férias, inscrever-se em um curso de ioga, ler um livro...? Como podemos reencontrar o equilíbrio que perdemos, o abraço com os amigos que nos falta?
Continuar distinguindo o essencial do não essencial. Porque essa foi outra lição do vírus que seria bom não esquecer tão cedo.