SSB
12/05/2021

19 milhões de pessoas no Brasil não têm o que comer. Entrevista especial com Juliano Ferreira de Sá. Além desse número estarrecedor, mais da metade da população, ou 116,8 milhões, vive com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional

MST é um dos movimentos e coletivos que se destacam pelas ações de solidariedade com a classe trabalhadora | Foto: Breno Thomé Ortega

Por: João Vitor Santos | IHU

Os dados sobre o aumento da fome no país são estarrecedores. “Segundo o ‘Inquérito da Insegurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Pandemia da Covid-19’, que é o estudo mais atual no país e que já foi detalhado recentemente nessa página, em dois anos a fome praticamente dobrou, tendo, em dezembro de 2020, mais de 19 milhões de brasileiras e brasileiros (9% da população) que não têm o que comer, e mais da metade da população, ou 116,8 milhões, vive com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional”, observa Juliano Ferreira de Sá, presidente do Conselho de Segurança Alimentar do Rio Grande do Sul, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

É evidente que a situação da pandemia fez esse quadro piorar, mas Juliano alerta sobre a importância de reconhecer que esse quadro vem piorando muito antes de o novo coronavírus fazer a primeira vítima na China. Aliás, lembra que a fome sempre foi uma realidade no Brasil. “Mas somente na década de 1940, com a contribuição dos estudos e pesquisas de Josué de Castro, ela passa a ser tratada como um problema social”, completa. Com avanços nos anos 1990 e a efetivação de políticas públicas a partir dos anos 2000, um cenário de desmontes vem ocorrendo. “O país entre 2016 e 2018 retrocede a um patamar de 14 anos atrás. O IBGE, em 2018, antes da pandemia já mensurava mais de 10 milhões de pessoas passando fome no Brasil”, frisa.

Para Juliano, o desmonte e a falta de políticas públicas são as principais causas da fome. Mas quem se aproxima daqueles que não têm o que pôr na mesa, descobre muito mais. “Nas diversas ações que acompanhamos, nos mais diferentes lugares, a principal mensagem que os rostos das pessoas em situação de vulnerabilidade social passam é a de que ninguém gosta de ganhar cestas básicas”, relata. E acrescenta: “a impossibilidade de colocar alimentos na mesa de suas famílias acaba lhes tirando a dignidade, por isso é fundamental para quem doa e para quem está engajado nas ações de solidariedade ter a consciência de que cestas básicas doadas pela sociedade civil não são assistencialismo e nem política pública, são ações emergenciais em defesa da vida humana”.

Em paralelo, Juliano diz que é preciso lutar pelo restabelecimento dessas políticas. Como quem tem fome não pode esperar, destaca ações solidárias que quase sempre têm a agricultura familiar como principal parceira. “Majoritariamente os alimentos doados pelo Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome vieram de agricultores familiares, camponeses, pequenos agricultores e assentados da reforma agrária”, destaca. E provoca: “não vi nenhuma ação de distribuição de alimentos por parte de fazendeiros ou de entidades ligadas ao agronegócio. Mais uma vez, num momento de tamanha necessidade, temos visto safras recordes de grãos e aumento dos lucros da indústria agroalimentar”.

Juliano Ferreira de Sá é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul - Consea-RS. Possui mestrado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, graduação em Gestão Ambiental pela Universidade do Norte do Paraná - Unopar. Ainda é assessor parlamentar e secretário executivo da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Alimentação Saudável da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, coordenador da Feira Orgânica da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.

Juliano de Sá | Foto: Aqruivo pessoal

Confira a entrevista

O fantasma da fome voltou a assombrar o Brasil em tempos pandêmicos. Quais os fatores que nos levam a esse cenário? Em que medida isso é uma consequência apenas da pandemia?

Juliano Ferreira de Sá – A fome no Brasil não é novidade, mas somente na década de 1940, com a contribuição dos estudos e pesquisas de Josué de Castro, ela passa a ser tratada como um problema social. A luta de Betinho [sociólogo Herbert de Souza] na década de 1990 iniciava uma grande cruzada contra a fome no país, o que mobilizou a sociedade civil, resultando na criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Consea em 1993, que dois anos depois foi desativado e somente reativado em 2003, no lançamento do Programa Fome Zero.

Consea passou a ter um papel de protagonismo na elaboração e no controle social das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional articuladas, como programas de transferência de renda, valorização do salário mínimo, compras institucionais de alimentos da agricultura familiar e outros, que fizeram com que no ano de 2014 o Brasil saísse do Mapa da Fome do Mundo da Organização das Nações Unidas - ONU, quando 98,3% da população brasileira vivia em situação de segurança alimentar e nutricional – o que significa que tecnicamente o país havia extinguido a fome.

Sete anos depois, não é difícil de entender como retrocedemos a uma situação de calamidade no que se refere à volta da fome e da miséria. A crise econômica mundial do período seguinte exigiu políticas de austeridade justamente quando os países deveriam estar garantindo políticas públicas de proteção, principalmente para as pessoas em situação de maior vulnerabilidade social.

A fome no Brasil não é novidade, mas somente na década de 1940, com a contribuição dos estudos e pesquisas de Josué de Castro, ela passa a ser tratada como um problema social

Retrocessos

No ano de 2016, o Brasil passa por um período de turbulência político-institucional que resultou numa drástica mudança de modelo de gestão com o fim de ministérios estratégicos para a segurança alimentar e nutricional, como, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Social - MDS e o Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, bem como o início do desmonte de políticas fundamentais como o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e diversos programas sociais.

Sobretudo, a aprovação da PEC 95/2016 do Teto dos Gastos Públicos, conhecida como a PEC da Morte, no qual congela os investimentos em políticas públicas e sociais pelo período de 20 anos, o que em pouco tempo revelou um resultado desastroso, fazendo com que o país entre 2016 e 2018 retrocedesse a um patamar de 14 anos atrás. O IBGE, em 2018, antes da pandemia já mensurava mais de 10 milhões de pessoas passando fome no Brasil.

Pandemia

pandemia da Covid-19 agrava este cenário já em curso, que, combinado com uma política negacionista e ausência de políticas públicas, fez os números piorarem ainda mais. Segundo o “Inquérito da Insegurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Pandemia da Covid-19”, que é o estudo mais atual no país e que já foi detalhado recentemente nessa revista, em dois anos a fome praticamente dobrou, tendo, em dezembro de 2020, mais de 19 milhões de brasileiras e brasileiros (9% da população) que não têm o que comer, e mais da metade da população, ou 116,8 milhões, vive com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional. Esse cenário piora ainda mais em lares chefiados por mulheres, negros, pardos e por pessoas com baixa escolaridade.

A fome e a miséria não são problemas exclusivos das populações urbanas, pois segundo o último censo agrícola, antes ainda da pandemia, já tínhamos 20% de agricultores e agricultoras familiares vivendo em situação de extrema pobreza no RS

Como a fome vem incidindo na realidade gaúcha? Quem são os maiores atingidos pela insegurança alimentar nestes tempos?

Juliano Ferreira de Sá – Mesmo que a Região Sul do país, segundo o Inquérito da Insegurança Alimentar, seja a menos atingida, pode-se perceber que a fome e a miséria chegaram ao Rio Grande do Sul também. Visualmente há um aumento significativo de pessoas em situação de rua, em especial nas cidades maiores, bem como exploração de trabalho infantil e a presença de crianças em semáforos, vendendo doces ou pedindo dinheiro.

Nas periferias urbanas, que geralmente passam na invisibilidade, a situação é ainda pior, principalmente pelo desemprego e pela falta de renda. Também chama a atenção a ausência de políticas públicas para os povos indígenas, quilombolas, migrantes, ciganos, povos tradicionais de matriz africana e pescadores profissionais artesanais, que, além do atual contexto, sofrem historicamente com o preconceito.

fome e a miséria não são problemas exclusivos das populações urbanas, pois segundo o último censo agrícola, antes ainda da pandemia, já tínhamos 20% de agricultores e agricultoras familiares vivendo em situação de extrema pobreza no RS. Não há números oficiais ainda, porém estima-se que, após estiagens recentes, pandemia e a diminuição de mercados institucionais, a situação tenha piorado ainda mais.

Especialistas estimam a necessidade de investimento imediato de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos - PAA, que, além de proteger agricultores familiares, é um programa de formação de estoques

O que é preciso para afastar a fome hoje, de imediato? E no médio e longo prazo, que diretrizes devem ser adotadas?

Juliano Ferreira de Sá – Somente através de políticas públicas articuladas e integradas é que conseguiremos enfrentar a fome, desde renda básica decente, em nível nacional e estadual, concomitantemente, até políticas de fortalecimento da rede de assistência social através de compras governamentais da agricultura familiar. Os especialistas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO recomendam a valorização do comércio e dos agricultores locais como estratégia para minimizar os impactos da pandemia.

O governo federal deveria urgentemente aumentar o valor e o público beneficiado com o Auxílio Emergencial, bem como a inclusão imediata das mais de 2 milhões de pessoas que aguardam na fila de espera do Programa Bolsa Família. Especialistas estimam a necessidade de investimento imediato de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos - PAA, que, além de proteger agricultores familiares, é um programa de formação de estoques – o que implica diretamente na regulação dos preços dos alimentos, além de oferecer alimentos saudáveis e de qualidade à rede de assistência social.

Também é preciso que o governo federal atualize os valores de repasses aos estados e municípios através do Programa Nacional da Alimentação Escolar - Pnae, que é reconhecido mundialmente como nossa maior política de segurança alimentar e nutricional em longevidade. A alimentação escolar para muitas crianças e jovens brasileiros é a principal refeição do dia e no mínimo 30% dos alimentos devem ser adquiridos da agricultura familiar.

Durante a pandemia o programa foi autorizado a garantir a distribuição dos alimentos no formato de kits de alimentação para a família dos estudantes, porém muitos estados e municípios optaram por não executar a política ou não cumpriram a legislação que obriga o percentual mínimo de compras da agricultura familiar. Assim, é necessário atualizar e aumentar o valor dos repasses aos estados e municípios, bem como campanhas de estímulo às compras da agricultura familiar.

Políticas estaduais

Aqui no estado, o Consea vem, desde o início da pandemia, recomendando ao governador e secretários ações emergenciais de políticas públicas como renda básica estadual, criação de um PAA estadual, compras coletivas governamentais da agricultura familiar e economia solidária – o que é autorizado pelo Decreto N.° 50.305/2013, estruturação de equipamentos públicos como restaurantes e cozinhas populares.

Além disso, temos exigido do governo estadual o funcionamento da Câmara Intersecretarias de Segurança Alimentar e Nutricional - Caisan, que é parte importante do Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional - Sisan-RS e que tem o papel de articular as ações integradas entre o conjunto do governo no que se refere à segurança alimentar e nutricional. Lamentavelmente a Caisan deixou de funcionar no dia 1° de janeiro de 2019.

Percebemos uma diminuição em torno de 70% das contribuições às diversas iniciativas da sociedade civil. Isso é mais um indicador de ausência das políticas públicas

O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul - Consea-RS tem realizado uma série de ações para atender de forma imediata quem tem fome. O que essas ações lhe tem revelado?

Juliano Ferreira de Sá – No início da pandemia, com o objetivo de ampliar o número de entidades e atores sociais envolvidos na luta contra a insegurança alimentar e nutricional, o Consea criou o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome. O Comitê vem sendo coordenado pelo Consea, pela Cáritas Regional do Rio Grande do Sul e pela Ação da Cidadania - RS, que, além de ter incentivado a criação de diversos comitês locais em municípios, bairros e vilas, graças à solidariedade da sociedade civil, já arrecadou e distribuiu mais de 500 toneladas de alimentos.

Esse montante beneficiou mais de 40 mil famílias em regiões periféricas, comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, ciganos, migrantes, povos tradicionais de matriz africana e músicos e artistas populares. Porém, as doações tiveram quedas recentemente. No geral, percebemos uma diminuição em torno de 70% das contribuições às diversas iniciativas da sociedade civil. Isso é mais um indicador de que a ausência das políticas públicas de que falávamos anteriormente tem impactado cada vez mais a população. Assim, muita gente que doava já não consegue mais, logo, diminuiu cada vez mais a capacidade de atuação das redes de solidariedade organizadas pela sociedade civil.

Por isso, quem puder doar, faça sua contribuição para que o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome possa levar comida para quem tem fome.

Para doar ao Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome:

PIX - Chave: CNPJ 33654419001007

Ou

Banco do Brasil
AG 1248-3 Conta Corrente 55450-2
CNPJ 33654419001007

Os valores doados serão revertidos em cestas básicas da agricultura familiar do RS.

Para doação de alimentos, contatar pelo WhatsApp +55 51 8318-8241.