Ação coordenada pelo MTST serviu mais de 600 refeições em 4 dias, mas está ameaçada por reintegração de posse
Desde o último domingo (26), já foram servidas gratuitamente mais de 600 marmitas. São porções como a desta quarta-feira (29), com arroz, feijão, farofa, frango com molho e temperos. O público-alvo são pessoas que moram no bairro da Azenha, com teto ou sem, ou estão de passagem por um dos bairros mais movimentados da região central da cidade. A Cozinha Solidária da Azenha não seleciona as pessoas por origem, mas os organizadores destacam que, nos quatro dias de operação, o tamanho da demanda por um prato de comida no bairro surpreendeu.
“Aqui ficou claro que a fome não tem cara. No movimento de luta por moradia, a gente sabia que o sem-teto não tem cara, que tem gente com trabalho formal, que está pagando aluguel e acha que é classe média, mas é sem-teto também. Mas aqui ficou muito claro que a fome não tem cara, não tem rosto, não tem cor da pele, não tem jeito de falar e não tem jeito de se vestir. Ela não escolhe. Claro que a população negra e as mulheres sofrem mais com isso, a periferia mais ainda”, diz Eduardo Osório, membro da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), entidade que organizou a Cozinha Solidária.
A iniciativa nasceu no último domingo, como uma ocupação. Ela está localizada em um terreno de 976 m² que está abandonado em meio a diversas lojas de grandes redes de varejo no coração da Azenha. Uma área de cerca de 20 m de frente, que se estende por um grande espaço até o fim do terreno. Na fachada, há um muro parcialmente demolido e uma casa com visíveis sinais de deterioração, tendo o teto desabado parcialmente. Por trás do que restou do muro, é possível ver que o teto da casa ruiu parcialmente e que o terreno, em sua maior parte, é um grande matagal.
Uma das primeiras ações do MTST e de voluntários, no domingo, foi limpar o mato da entrada do terreno, pintar o muro, estender faixas da entidade e de movimentos apoiadores e instalar a cozinha, ao ar livre, sob uma tenda que antigamente pertenceu a um hospital da cidade.
Advogada da Cozinha Solidária da Azenha, Cláudia Ávila explica que o imóvel pertence à União, que recebeu a posse dele em maio de 2020, mas já tinha a titularidade há décadas, fruto de uma herança jacente, isto é, quando o proprietário não deixa testamento, cônjuge ou familiares sobreviventes para receberem o patrimônio. Apesar de já pertencer à União, ele esteve ocupado, mesmo já sem condições adequadas de habitação, até cerca de três anos anos, quando faleceu a moradora anterior.
Cláudia destaca que área já havia sido gravada como de interesse social para fins de moradia popular e que, inclusive, já havia um projeto pronto de habitação realizado pelo governo federal. Contudo, o atual governo decidiu colocá-la para leilão, cuja data está marcada para o próximo dia 13. “A Cozinha Solidária da Azenha ocupa esse imóvel justamente para dar destaque para esse absurdo, é um patrimônio nosso, da população, que está sendo dilapidado, inclusive com todo o custo de investimento neste projeto de habitação popular”, diz a advogada, acrescentando que a defesa do movimento é que o projeto habitacional seja retomado.
Nesta quarta-feira, a reportagem do Sul21 esteve no local no horário do almoço, quando a Cozinha também era visitada pelo secretário municipal de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, pela presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Cátia Lara Martins, por vereadores da Bancada Negra de Porto Alegre e por representantes de outros movimentos sociais.
Enquanto a visita ocorria, Elizabete Matias dos Santos, 42 anos, almoçava. Moradora da Vila Jardim Renascença, ela está desempregada e, em suas palavras, fazendo bico para ter o que comer. Nesta quarta, dia em que conheceu a Cozinha, estava de passagem pela região porque tinha ido ao Shopping João Pessoa buscar informações sobre a aplicação da terceira dose da vacina contra a covid-19 para a sua mãe, que tem Alzheimer. “As pessoas estão correndo, estão lutando, e uma oportunidade dessa eu achei muito legal”, diz.
Luís Bittencourt, 49 anos, que também almoçou no local nesta quarta, é outro que está “se virando”, pegando o que aparece. “A situação de emprego ficou bem difícil com a pandemia”, diz.
Para ele, a Cozinha Solidária é uma iniciativa necessária diante de um cenário em que parte da população enfrenta grandes dificuldades para ter o que comer, ele incluso. “É importante essa iniciativa que o MTST teve. Infelizmente, os governos municipal, estadual e federal não têm cuidado com mais atenção das pessoas em situação de rua, em situação de moradia precária e em situação financeira bem difícil. Muitos se encontram numa situação bem complicada mesmo e precisam de iniciativas como essa até para garantir a sobrevivência, manter a família e se manter”, diz.
Conhecido pelo papel na luta por moradia popular, o MTST construiu ao longo dos anos um trabalho de apoio à alimentação de pessoas em situação de vulnerabilidade. Na última semana, integrantes do movimento em São Paulo ocuparam a Bolsa de Valores para denunciar que a fome é resultado da política econômica pró-mercado adotada pelo governo federal.
Em todo o Brasil, já são 20 cozinhas solidárias, com a 21ª prevista para ser implementada em Curitiba nos próximos dias. Em geral, contudo, elas são feitas em bairros periféricos. Na Capital, há outras duas localizadas nos loteamentos Irmãos Marista, no bairro Rubem Berta, e Nosso Senhor do Bonfim, no Sarandi.
Durante o encontro com o secretário Voigt, Eduardo Osório destacou que o movimento foi surpreendido pelo tamanho da demanda por refeições na Azenha e pelo fato de muitas pessoas com trabalho formal estarem tomando parte nas filas que se formaram no horário do meio-dia — os almoços são servidos até às 13h, mas quem chegou depois do horário nesta quarta encontrou uma marmita pronta.
“O MTST, de onde surgem as cozinhas solidárias, é um movimento que atua na periferia. A gente está acostumado a lidar com a pobreza como ela é, sem saneamento, sem transporte público, sem asfalto, sem nada. Quando tu vem para a cidade formal, ainda mais uma região central, como a Azenha, tem luz, tem coleta de lixo, tem as pessoas circulando, parece que tudo está funcionando certinho. Mas, na verdade, quando tu para aqui e escuta as histórias e oferece uma refeição, começa a ouvir que a situação não está tão resolvida assim. Começa a vir a população em situação de rua, começam a vir os trabalhadores de aplicativo, motoristas de Uber e motoboys que estão circulando e ninguém vê, os trabalhadores aqui do comércio que também estão com dificuldade, vão no mercado e o vale-alimentação não dá conta, têm que escolher um item, comem carne uma vez na semana. Vêm também os ambulantes, que, com a pandemia, vendem menos. Com o drama que a gente está vivendo, até quem tem trabalho não tá comendo. Quem comia pouco, não está comendo. Quem comia mais ou menos, tá comendo pior. Então, esse problema está escancarado no Centro da cidade”, diz Osório.
Por outro lado, o movimento também foi surpreendido pela onda de solidariedade que se formou, seja para a doação de alimentos, seja para ajudar a limpar o terreno, que estava repleto de lixo e tomado pelo mato, pintar o muro da fachada, melhorar as condições estruturais da área, ajudar a plantar uma horta comunitária que começou a ser cultivada no local e até mesmo para ajudar na preparação dos alimentos.
Nesta quarta, ao menos 10 pessoas participaram da produção do almoço, nem todas elas integrantes do movimento e algumas que foram ao local em busca de uma refeição. “Tem gente que chegou para pegar marmita, almoçou e, enquanto esperava, foi lá para dentro ajudar. As pessoas não estão vindo pedir num ato de ‘eu quero que tu me dê algo’. Não, é ‘eu preciso, e também quero contribuir’. Então, é uma via de mão de dupla”, relata Osório, acrescentando que moradores e mesmo trabalhadores do bairro estão indo ao local no horário do almoço para ajudar.
Segundo ele, a média de refeições servidas nos quatro primeiros dias foi de 150. Além disso, até terça-feira (28), a Cozinha já havia recebido cerca de 300 kg de alimento. “As pessoas passam fazem uma vaquinha no condomínio, no trabalho, e trazem aqui. Perguntam o que precisa às 11h para complementar o almoçar. Tá muito bonito ver isso”, diz.
Nesta quarta, a reportagem presenciou, ao longo de cerca de duras horas que permaneceu no local, a chegada de diversas pessoas que foram à Cozinha manifestar apoio. Uma funcionária de uma financeira que trabalha com idosos de baixa renda se emocionou ao ver um cliente na fila. Um proprietário de um pequeno comércio foi ao local agradecer pela ocupação do terreno, há anos abandonado, porque acreditava que a presença da Cozinha no local ajudaria na segurança do bairro. Um funcionário de um banco chegou ao local com diversas sacolas de alimentos para serem usados nos próximos dias.
União já reivindicou o terreno
No domingo, agentes da Brigada Militar, informados por uma denúncia anônima a respeito da ocupação, estiveram no local logo após o início dos trabalhos e solicitaram que o movimento desocupasse a área. Com a negativa, a União ajuizou uma ação pedindo a reintegração de posse na madrugada de segunda-feira (27), que foi negada pelo plantão, mas acatada pela juíza Ana Maria Wicket Theisen, da 10ª Vara Federal de Porto Alegre, ainda no mesmo dia. Em sua decisão, a juíza concedeu o prazo de três dias, a contar da notificação, para que o terreno seja desocupado. Um Oficial de Justiça esteve no local nesta quarta.
O movimento recorreu e espera conseguir reverter a ordem de reintegração antes do fim do prazo. O objetivo é abrir um canal de negociação para que o serviço possa continuar a ser prestado, uma vez que, segundo avaliam, a Cozinha Solidária já explicitou a falta de equipamentos públicos para lidar com a demanda da insegurança alimentar no bairro.
“Juridicamente temos uma batalha, mas, ao mesmo tempo, a primeira batalha que é a da sociedade, do engajamento, das pessoas quererem que isso aqui genuinamente aconteça, a batalha está ganha. Agora, a questão é se o governo federal vai ignorar essa vontade popular”, diz Eduardo Osório.
Segundo o MTST, a União, por meio da Superintendência do Patrimônio, se disponibilizou a conversar sobre o trabalho desenvolvido no local nos últimos quatro dias, mas adota a posição de só abrir o diálogo após concretizada a desocupação. “É inadmissível pensar em parar de servir os alimentos que estão sendo servidos agora. Nós já colocamos para a Superintendência que retirar essa iniciativa, um trabalho que está acontecendo e demonstrou que tem condições de seguir, para se pensar numa negociação futura de cedência de um espaço é uma coisa inviável, é a diferença entre se conversar com as pessoas passando fome ou com as pessoas alimentadas”, diz a advogada Cláudia Ávila.
Para Osório, impor a interrupção do serviço como condição para a busca de uma alternativa pode ser considerado um ato de violência. “A Cozinha Solidária da Azenha junta todo esse apoio porque está atacando um problema concreto. Quando tu orienta o diálogo com a remoção, que diálogo é esse? Nós estamos dispostos a dialogar, mas seguindo atendendo a demanda que foi criada”, diz.
Secretário municipal manifesta apoio
Em conversa com a coordenação da cozinha por volta do meio-dia desta quarta, o secretário municipal do Desenvolvimento Social, Léo Voigt, manifestou apoio à iniciativa, destacando que há interesse da Prefeitura em que o projeto tenha continuidade. Voigt classificou o projeto como uma “ação de extrema boa vontade” que atende a uma demanda da região. “Ele está numa região que não tem sobreposição de serviços, eventualmente tu tem falta. Eles estão numa região que, para ao poder público, é importante”, disse, em conversa com o Sul21.
O secretário pontuou que o local é insalubre, o que exige que sejam pensadas soluções para a qualificação no terreno ou em outra área do bairro. Contudo, frisou que o envolvimento direto do poder público, inevitavelmente, dependeria de tempo e dos trâmites burocráticos para que eventualmente fosse firmada, por exemplo, uma parceria com a organização da Cozinha Solidária para a prestação do serviço. “Na verdade, eu vejo dois fenômenos. O voluntariado das pessoas é comovente. De outro lado, a precariedade é muito grande, nós temos que ver isso com mais calma”, diz.
Voigt afirma que a secretaria vai monitorar o desenvolvimento do projeto e avaliar se seria possível formalizar uma eventual parceria. “A Prefeitura só pode conveniar com entes juridicamente constituídos. Como isso é uma política pública comunitária que está se criando, há uma expectativa de que a Prefeitura no futuro venha a apoiar, mas precisa ver as possibilidades reais de, no longo prazo, haver algum tipo de apoio, porque algumas iniciativas dessa forma muitas vezes se desmobilizam”, diz.
A advogada Cláudia Ávila destaca que, para além de um apoio ao projeto, o município pode pedir para intervir no processo judicial, manifestando apoio à continuidade do serviço e pedindo prazo para que as negociações prossigam com a cozinha em funcionamento.
Um dos vereadores presentes durante a visita do secretário, Matheus Gomes (PSOL) afirma que a iniciativa já pode ser considerada como necessária para a cidade. “A relação que o MTST está construindo com a comunidade prova que há um interesse de diferentes agentes do território, empresários, associações comunitárias, moradores, para que, a partir daqui, a gente consiga suprir uma demanda que é real. Não só de pessoas em situação de rua, mas de trabalhadores que estão com cada vez mais dificuldade de ter acesso a uma alimentação de qualidade”, diz.
Além disso, ele afirma que a Cozinha Solidária pode ajudar na construção de alternativas para o enfrentamento da fome em Porto Alegre, suprindo uma demanda que a Prefeitura não tem sido capaz. “No domingo, por exemplo, foram servidos 200 almoços pela Prefeitura e 200 almoços pela população. Porto Alegre tem 160 mil pessoas em situação de pobreza. Então, há a possibilidade da gente fazer disso aqui uma situação inovadora. O MTST tem o know-how, já construiu prédios e condomínios pelo País inteiro, então é uma possibilidade de criar uma solução com respaldo social, político e popular”. afirma.
Na mesma linha, a vereadora Daiana Santos (PCdoB) diz que a Cozinha Solidária da Azenha poderia ser tomada pela cidade como um exemplo de restituição de dignidade das parcelas da população mais atingidas pela crise econômica.
“Quando a gente observa essa fila gigantesca de pessoas, que são trabalhadores e alguns que, inclusive, estão procurando emprego, a gente vê que é uma relação direta com esse período duro socioeconômico que a gente está vivendo. Eu olho esse espaço como um espaço de pensar o futuro, de restituição de dignidade, do mínimo de auxílio, que não viria de outra forma que não essa. Esse é um momento crucial, fundamental, para a gente pensar numa cidade que está tendo que se reinventar a duras penas, porque não tem oportunidade de emprego, em que estamos vendo toda uma desorganização, e o município não está dando conta. É importante que venham aqui a presidente da Fasc e o secretário de Desenvolvimento Social, porque o que o MTST está fazendo aqui é prestar um serviço para a comunidade”, diz.
Ela conta ainda que, quando soube da ocupação, foi ao local e pegou uma enxada para ajudar a limpar o mato, abrindo espaço para a cozinha. “É fundamental que um espaço como esse, que estava ocioso, sendo usado para o descarte de materiais e, inclusive, para pequenos furtos, como a comunidade do entorno relata, agora esteja sendo utilizado para alimentar o povo. Isso é restituir dignidade, olhar com muito respeito e dignidade para o povo, por isso que a gente se soma”.