Entre os dias 19 e 23 de fevereiro, a Comissão Nacional de Enfrentamento a Violência no Campo (CNEVC) realizou sua primeira atividade de campo, uma missão nos territórios de comunidades tradicionais e quilombolas do Maranhão, que vivem sob ameaças constantes de fazendeiros, grileiros e milicianos.
A Comissão, que é composta por vários órgãos do Governo Federal e Conselhos, foi instalada em 09/11/2024, sob decreto do Presidente Lula, nº 11.638, de 16 de agosto de 2023. Confira a composição da Comissão aqui. É coordenada pela Drª Claudia Dadico, diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Escuta dos territórios e comunidades
Durante a missão, foram escutadas 51 comunidades, em cinco municípios, na região dos Cocais, leste maranhense. No município de São João do Soter, território quilombola de Jacarezinho, foram ouvidas as comunidades Jacarezinho, Brejinho, Boa Fé, Bom Descanso, Curicas, Bacuri, Cocalino, Guerreiro, Mimoso, Gostoso, São Joaquim 2, território Tanque da Rodagem e comunidade São João. No território Jacarezinho, foi assassinada a Liderança quilombola Edvaldo Pereira, em 2022.
Nas escutas, as comunidades apresentaram suas demandas, que envolvem desde o direito à titulação de suas terras até a proteção das pessoas e da natureza. Também, denunciaram fortemente a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), do governo do Maranhão, que concede licença ambiental irregularmente para grileiros desmatarem. No mesmo ato da missão, aconteceu uma diligência da Polícia Federal em um dos territórios, que culminou na prisão em flagrante do filho de um dos fazendeiros que desmataram a área. Ele estava armado, por isso foi conduzido até a delegacia.
No município de Timbiras, território de Campestre, comunidades tradicionais denunciaram as violências nas Comunidades de Alegria, Sarafim, Campestre, Manoel dos Santos, Cercado, Abundância, Outeiro, Parazim, Chapada Alegria, Socó, Morada Nova, Marmorana, Axixá, Francalho, Capoeira, Coruja, Centro dos Vilários, Macaquinho, Santa Vitória, Lagoa do Canto, Canafístula e Jabuti.
Essas comunidades lutam contra invasores que se dizem “donos”, mas que não passam de milicianos, invadindo os territórios, desmatando e pressionando as comunidades para sair do espaço em que vivem há muitas décadas. Não se trata apenas do espaço físico, mas um território onde se vive e se cultiva o pertencimento, a ancestralidade e o modo de vida e cuidado com a terra.
As lideranças sofrem ameaças de morte, são criminalizadas na justiça por fazerem defesa de seus territórios, de seus modos de vida e por reafirmar suas identidades. As comunidades denunciam que venenos são lançados sobre os territórios. “Será que vão esperar matar um de nós para poder reagir? Então, a gente está pedindo socorro”, lamenta uma liderança da comunidade que já está ameaçada e inserida no Programa Estadual de Proteção a Defensores/as de Direitos Humanos.
No município de Codó, território Quilombola São Benedito dos Colocados, com a presença das comunidades Boqueirão de Salazar, Santa Maria, Puraquê, Santo Expedito, Mata Virgem, São Benedito dos Colocados, Cipoal, Matões dos Moreiras, Monte Cristo, Livramento, Eira 2, Queimadas e Santa Joana.
Essas comunidades reivindicam a titulação do território para viver em paz. “Quando eu venho, não falo para ninguém, se botar nas redes sociais, eu não volto mais. (...) A nossa comunidade pede socorro”, esse é o grito da liderança de uma das comunidades. O Quilombo São Benedito sofreu ordem de despejo em novembro de 2023 e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) concedeu autorização para a empresa Agropecuária desmatar o território.
Todas as comunidades relataram, ainda, a negligência do Estado em relação à violência. Seja do Incra, do Ibama ou da Sema. Inclusive, houve fortes relatos de que a Sema concede licenças ambientais temporárias, de modo ilegal, com autorização para os fazendeiros desmatarem o território das comunidades.
No município de Alto Alegre, nas comunidades e territórios quilombolas de Boa Hora III e o PA Boa Hora, as lideranças das comunidades reivindicam a titulação do território, o cumprimento da reintegração de posse em favor da comunidade e a recriação do Assentamento, após a decisão judicial de extinção do PA.
No município de São Mateus, visitou-se a comunidade Boi Baiano, onde foi reivindicada a regularização fundiária de forma coletiva do Território Quilombola. Estas comunidades vivem com muita luta e sofrimentos, diante de conflitos históricos pela terra, que violentam lideranças e a natureza.
Um clamor de justiça
O estado do Maranhão coleciona os maiores índices de violência no Campo e se classifica como o estado que mais mata lideranças de Territórios Quilombolas. Em 19 de dezembro de 2023, a Assembleia legislativa do Estado aprovou um Projeto de Lei do Governo, sob nº 614/2023, que estimula os conflitos agrários no Estado. Em nota, os movimentos populares dizem que “o PL impacta vários setores da sociedade, com profundas mudanças da atual lei de terras do estado, privatizando terras públicas a preços irrisórios em favor do agronegócio e da grilagem do campo, inclusive com uso da força contra comunidades tradicionais, povos originários e trabalhadoras e trabalhadores rurais”. A Nota do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do MDA - Governo Federal diz que o PL “não estabelece nenhuma condicionante no que tange a terras obtidas mediante fraude documental, o que igualmente fomenta e premia práticas de grilagem”,
O Programa Estadual de Proteção de Defensores/as de Direitos Humanos no Maranhão registra 132 pessoas ameaçadas de morte. Somente no quilombo Bom Descanso, há dez pessoas incluídas no Programa de Proteção.
A missão da CNEVC encontrou muitas dessas pessoas nas comunidades, que relataram seus medos e preocupações em relação à violência. As comunidades relatam, também, adoecimentos, em todos os níveis, por causa das perseguições que sofrem.
Uma lista de violências contra os povos e crimes ambientais
- Licenças ambientais de modo ilegal (governo do Estado);
- Desmatamento em áreas das comunidades com licença da Sema (crime ambiental);
- Extração ilegal de madeiras, com denuncias que ja ocasionou em prisão em flagrante e ameaças a lideranças da comunidade;
- Invasão de grileiros com tratores derrubando casas, cercas, roças das comunidades;
- Propostas de acordo com menos direitos para comunidades;
- Liminar da justiça, sob pena de multa, para comunidades não entrarem no território;
- Famílias ameaçadas de expulsão do território;
- Ameaças e intimidação com tiros, matando animais da comunidade e pressionando a comunidade a deixar o território;
- Processos jurídicos contra lideranças das Comunidades;
- Limitações para titulação dos territórios coletivos (não individual) das comunidades quilombolas;
- Ameaças de despejo;
- Uso de agrotóxicos sobre as plantações da comunidades;
- Ameaças com drones sobre os territórios, vigiando as comunidades;
- A impunidade em relação aos assassinatos e violências contra as comunidades;
- A presença de policiais (milícias) na escolta dos agressores durante os atos violentos.
A Campanha Contra a Violência no Campo (CCVC) avalia a escuta das comunidades como algo fundamental, dentre as outras responsabilidades da Comissão do Governo. Mas, é preciso ações efetivas de proteção e promoção dessas comunidades, por meio da garantia de titulação de seus territórios, da proteção e promoção de seus modos de vida, que são de responsabilidade do Estado Brasileiro. Portanto, o Coletivo da Campanha no Maranhão seguirá acompanhando os encaminhamentos feitos pela Comissão e exigindo uma resposta do Estado.
Agendas Institucionais
A CNEVC também cumpriu agendas institucionais com a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais, a Secretaria de Segurança Pública, a Vara Agrária de São Luís, a Secretaria de Agricultura Familiar e com a presidência da Assembleia Legislativa Estadual.
Presentes na missão
Na missão do Maranhão, estiveram presentes:
- Claudia Maria Dadico – Coordenadora da Comissão e Diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do MDA.
- Daniel Josef Lerner – Coordenador Substituto da Comissão e Coordenador-Geral no Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do MDA.
- Fábio Tomaz - Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas – SNDSAPP/SG-PR
- Carmen Helena Ferreira Foro - Secretaria Nacional de Articulação Institucional, Ações Temáticas e Participação Política do Ministério das Mulheres
- Angela A. Roma Stoianoff – Coordenadora-Geral de Povos e Comunidades Tradicionais do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas
- Luiz Gustavo Magnata - Ministério da Igualdade Racial
- Andressa Lewandowski – Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais do MDA
- Monica Moraes Borges – Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ)/INCRA - Cândida - PPDDH/MDHC
- Sandra Maria da Silva Andrade – Conselho Nacional de Direitos Humanos
- Helson da Silva Alves – Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
Convidados do Estado do Maranhão:
- Vicente Carlos de Mesquita - Ouvidor do MDA no Estado do Maranhão
- Daniel Formiga – Coordenador da Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV/MA) - Secretaria de Agricultura Familiar do Estado do Maranhão.
A missão foi acompanhada por Organizações da Sociedade Civil que atuam nos territórios e integram o Coletivo da Campanha Contra a Violência no Campo, no Maranhão, e pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos.
A Campanha contra a Violência no Campo acompanhou todas as escutas nos territórios, pelo Coletivo da Campanha no Maranhão, composto pela Cáritas Regional, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Federação dos Trabalhadores Rurais e Agricultores/as Estado do Maranhão (Fetaema, filiada à Contag), o Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e pela integrante da Coordenação Nacional da Campanha, na pessoa de Raimunda Nonata, representante do Moquibom e residente em um destes territórios, e o secretário executivo da CCVC, Jardel Lopes.
Integram, também, o Coletivo da Campanha Contra Violência no Campo, no Maranhão, as organizações Agência Tambor, Associação Agroecológica Tijupá, Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Pe Marcos Pe. Marcos Passerini, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Nordeste 5, Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Fóruns e Redes de Defesa dos Direitos e da Cidadania do Maranhão, Justiça nos Trilhos e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Resistência e utopia
Mesmo com tanta violência, as comunidades não se intimidaram com a presença de representantes do Estado, com a imprensa, com a polícia e com pessoas que não ainda conheciam. Acolheram todas e todos com alegria e fartura, com almoço, café e mística, que são símbolos da resistência e da esperança que não deixam morrer a utopia e a luta!
O que saiu na imprensa sobre a missão:
JMTV 1ª Edição | Comissão visita comunidades tradicionais em conflitos agrários no MA | Globoplay
JMTV 2ª Edição | Comissão Nacional visita áreas em conflitos agrários no MA | Globoplay
Texto: Campanha contra a Violência no Campo