Ari Reis
04/08/2020

Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos (Is 65,21).

É necessário no processo da semana social, ir um pouco além. Urge refletir a ideia da casa ampliada, o bairro, a comunidade, lugar da convivência coletiva. Não é possível deixar de denunciar o constante processo de maquiagem das cidades. As cidades capitalistas são modernas, orgulhosas e até vaidosas, segundo o Papa. Contudo, não são para todos.

Por Padre Ari Antonio dos Reis

Em artigo, publicado na semana passada, escrevemos sobre a importância da 6ª Semana Social Brasileira que é um amplo mutirão pela vida, iniciado neste ano com previsão de conclusão em 2022. O tripé reflexivo deste processo é terra, teto e trabalho, garantidores de uma existência digna e, ao mesmo tempo, déficits históricos na nação brasileira. Compreendamos os três pilares do tripé.

          O primeiro pilar faz referência à terra e a compreende muito além de um meio de sobrevivência humana.  A Terra é compreendida como a casa comum de todas as pessoas e dos demais seres vivos. Esta ideia já está expressa de forma inequívoca na Encíclica Laudato Sí. Uma irmã com quem partilhamos a existência ou a boa mãe que nos acolhe nos seus braços (cf.  LS 1).  Demanda desta leitura o apelo à responsabilidade do ser humano pelo cuidado na casa comum.  Do livro do Gênesis busca-se outra referência importante.  Deus criou o ser humano para ser o guardião da sua obra, com a missão de cultivá-la e guardá-la (Gn 2,15). Amplia-se, assim, a perspectiva de relação do ser humano com a terra. A noção da terra como mero objeto de exploração econômica está ultrapassada. Esta perspectiva é também apontada no Documento A Igreja e a Questão Agrária (Doc. 103, CNBB, 2014). Este documento afirma a leitura dos bispos brasileiros sobre a questão agrária. O monopólio da propriedade é visto como raiz do rompimento homem e terra. O fato de tê-la como mercadoria elimina qualquer compromisso do cuidado e o princípio de ser um bem de toda a humanidade. Neste sentido, a democratização do uso da terra, aliada aos critérios deste uso é fundamental. A Semana Social retoma este debate e aqui será de fundamental importância a participação dos pequenos agricultores, comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, ribeirinhos e outros povos que tradicionalmente sustentam outra forma de relação com a terra diferenciada do modelo capitalista. 

O segundo pilar é o teto, a casa que precisamos para morar. Ter um teto para se abrigar é uma dimensão estruturante da vida de qualquer pessoa.  Casa e família caminham juntas. Teto e vida protegida são condições inseparáveis para se viver.  Estes axiomas que apontam para além do mero aspecto material, por si mesmo são importantes. O teto, casa ou moradia, envolve a dimensão afetiva da vida, a mística da estrutura familiar, a segurança necessária para a pessoa lutar pela sua existência.   O Papa Francisco reitera constantemente a necessidade de “uma casa para cada família”. A casa, como direito, garante a proteção das famílias. Contradizendo estes princípios, observamos que o déficit de moradias está próximo ao número de imóveis ociosos ou usados com a finalidade da especulação imobiliária. Em documento sobre o solo urbano intitulado o Solo Urbano e a Urgência da Paz a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sustenta que é urgente a discussão do acesso à moradia como direito, independente da propriedade (Doc. 109, CNBB, 2016).

 É necessário, no processo da semana social, ir um pouco além. Urge refletir a ideia da casa ampliada, o bairro, a comunidade, lugar da convivência coletiva. Não é possível deixar de denunciar o constante processo de maquiagem das cidades. As cidades capitalistas são modernas, orgulhosas e até vaidosas, segundo o Papa. Contudo, não são para todos.  Destinam-se aos que podem comprar a dignidade de morar nelas e usufruir dos aparelhos urbanos construídos com dinheiro público, portanto de todos.  Neste sentido a Semana Social coloca em pauta o direito à cidade e os outros direitos dali demandados como saneamento, transporte público, lazer e cultura. Em um alento a nossa esperança fundada na fé, o Papa Francisco expressa: “Deus mora na cidade, habita nas suas casas, ruas e praças” (EG 71). Ao descobrirmos o irmão que mora na cidade, estaremos descobrindo também Deus. É bom debater o direito à casa para morar e cidade para habitar.  

O terceiro pilar é o trabalho.  O Papa tratou do tema antes do processo de flexibilização da legislação trabalhista iniciado no Governo Temer. A Doutrina Social da Igreja tem uma reflexão consolidada sobre as relações de trabalho. O Papa João Paulo II afirma na Encíclica Laborem Exercens que o trabalho humano é a chave de toda a questão social (LE 3). Cabe frisar que, junto ao direito ao trabalho, está o direito ao trabalho digno. Hoje vemos três ameaças aos trabalhadores.

a) O desemprego, que não arrefece, trazendo graves dificuldades para muitos trabalhadores, sobretudo aqueles que têm uma família para sustentar. Lembremos também os jovens que buscam o primeiro emprego. Em uma realidade de fechamento de oportunidades de trabalho, este sonho fica mais difícil, sobretudo em tempos de Covid 19.

b) O trabalho precarizado, distante da segurança legal e institucional. É caracterizado não só pelos salários baixos, mas também pelo exercício laboral em condições adversas, colocando em risco a integridade física e mental do trabalhador. No Brasil ainda temos situações bem reais de trabalho nestas condições e, em alguns casos, tipificadas como trabalho escravo, segundo os critérios da Organização Internacional do Trabalho – OIT.  

c) O processo acentuado de relativização dos direitos trabalhistas. A reforma trabalhista, votada sob o argumento de facilitar o aumento de vagas de trabalho, não alcançou este intento e ainda contribuiu para que importantes direitos, socialmente conquistados, ficassem em suspensão. Segue, assim, a lógica perversa do capitalismo. Em momentos de crise, os direitos civis, humanos e sociais são os primeiros a serem ameaçados sob o falso argumento de que atravancam a economia.  

          Compreendamos a 6ª Semana Social como um momento de Graça em terras brasileiras. Nos diferentes territórios de vida, como aos diferentes povos e grupos sociais é oportunizado o debate sobre as três condições estruturantes da vida humana: terra, teto e trabalho. É o sopro do Espírito Santo convidando-nos a sua acolhida.  Ao refletirmos sobre terra, teto e trabalho estaremos posicionando o Brasil como o lugar da vida digna para todas as pessoas e não apenas para uma minoria. É uma grande responsabilidade que estamos assumindo. Deus está conosco nesta tarefa.