“Por que temos que denunciar pela terceira vez as atrocidades contra os indígenas Chiquitano?”, questiona o Cimi em sessão da CDH da ONU
Devido a gravidade dos conflitos envolvendo o povo na fronteira entre Brasil e Bolívia, a denúncia foi feita por Paulo Lugon, representante do Cimi na Europa, na segunda (15)
Por Assessoria de Comunicação CIMI
Foi preciso subir o tom das denúncias realizadas na 46ª sessão ordinária da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Na segunda-feira (15), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) se dirigiu aos representantes da ONU, mais uma vez, para denunciar as atrocidades contra os indígenas Chiquitano na fronteira entre Brasil e Bolívia.
O Cimi questiona o porquê de nada ter sido feito para evitar os assassinatos. Dada a gravidade do conflito na região, Paulo Lugon, representante do Cimi na Europa, deu voz às denúncias.
Esta foi a terceira vez que os conflitos envolvendo o povo Chiquitano foram levados ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Em setembro de 2019, lideranças do povo Chiquitano foram à ONU e denunciaram as ameaças que vinham enfrentando, “hoje somos ameaçados abertamente pelo presidente da República”.
A denúncia foi feita durante a 42ª sessão ordinária da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, por Saturnina Urupe Chue. Na ocasião, a jovem indígena também registrou ser tempos difíceis para o acesso aos direitos e aos territórios tradicionais, e cobrou que o governo brasileiro deveria ser responsabilizado por toda violência praticada contra os povos indígenas no Brasil.
Quase um ano depois, em agosto de 2020, quatro indígenas Chiquitano foram brutalmente assassinados na fronteira entre Brasil e Bolívia, próximo à comunidade San José de la Frontera. Em território brasileiro, os indígenas foram surpreendidos por agentes do Grupo Especial de Fronteira (Gefron) – núcleo da polícia do Mato Grosso que faz a segurança da região – e sofreram um massacre.
Após denúncias, o Cimi e outras organizações de defesa dos direitos humanos enviaram um grupo de trabalho para investigar os fatos in loco. “Como de praxe, a hipótese do governo é o auto de resistência, contrastando com as provas contundentes de execução sumária”, lembra Paulo Lugon.
Além das denúncias já feitas, em primeiro de outubro do ano passado, o Cimi voltou ao Conselho da ONU e denunciou o massacre, pois não apenas as investigações não foram céleres, imparciais e independentes, mas agora a própria Polícia Militar intimida a comunidade Chiquitano para que pare de denunciar o massacre e pedir justiça. “A mesma força policial envolvida no massacre entra no território da comunidade criando um clima de terror, angústia e impunidade”, denuncia o representante do Cimi.
O isolamento geográfico e a fronteira política entre os dois países têm sido usado como argumento para a não investigação e as constantes violações dos direitos originários deste povo fronteiriço. “Fazem de tudo para não deixar demarcar nosso território”, denunciam as lideranças do povo, que frequentemente são tachados de “não índios” ou “bolivianos”.
Como se não fosse o bastante, os Chiquitano têm sido submetidos a interesses econômicos e políticos dos invasores de seus territórios tradicionais. O Estado, por sua vez, não os reconhece como indígenas e, por diversas vezes, lhes nega toda e qualquer assistência. Tamanha é a censura que o “clima militarizado criado pelo governo federal repercute nas polícias estaduais, já violentas, criando um padrão generalizado de violência, agravado pela pandemia”, alerta Paulo.
Ao finalizar seu discurso, o representante do Cimi questiona mais uma vez o Conselho de Direitos Humanos da ONU e se dirige à sua presidente, Nazhat Shameem Khan. Em sua fala, Paulo Lugon inquiriu: “quando o governo brasileiro tomará alguma providência para solucionar este caso?”.
Chacina do povo Chiquitano
Em 11 de agosto de 2020, quatro indígenas do povo Chiquitano foram assassinados na fronteira entre Brasil e Bolívia, próximo à San José da La Frontera, só que em território brasileiro. Paulo Pedraza Chore, Ezequiel Pedraza Tosube, Yonas Pedraza Tosube e Arcindo Sumbre García foram surpreendidos por agentes do Gefron enquanto caçavam.
“No dia seguinte, nós soubemos que os corpos estavam no hospital. Meu marido foi quebrado no queixo, levou tiro, parte do corpo dele estava em carne viva. Nestes tempos de pandemia, estamos com pouco trabalho. Eles aproveitaram um dia de folga para sair, pois dependemos da caça para colocar comida na mesa”, relata a viúva de uma das vítimas. A análise dos corpos mostrou sinais de tortura, como pernas e braços quebrados e uma das vítimas também teve a orelha cortada.
Os policiais afirmam que o grupo era suspeito de tráfico de drogas e que a ação repressiva ocorreu em legítima defesa. Porém, nenhuma droga ou algo que remeta à comercialização de ilícitos foi encontrada com os indígenas, apenas carne de animais silvestres e instrumentos de caça.
“Eram meu marido, meu irmão e dois sobrinhos. Eles saíram cedo pro mato e quando deu cinco horas da tarde só os cachorros voltaram da caça. Nossos familiares, não”, lamenta a indígena. Uma série de irregularidades foram identificadas no caso. Não houve a perícia do local do assassinato, mesmo tendo sido solicitada pela delegada responsável.
Os polícias envolvidos seguem trabalhando normalmente, isso porque o pedido de afastamento apresentado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) acabou indeferido pelo secretário Estadual de Segurança Pública do Mato Grosso. Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Cáceres (MT), Daniel Bretas Fernandes, “o caso só não foi escondido desde o início devido ao clamor dos familiares que motivou a atuação de diversas entidades”.
Em entrevista à assessoria de comunicação do Cimi, em 2020, Daniel revelou que, de julho a outubro daquele ano, ocorreram 17 mortes em operações do Gefron, a maioria delas envolvendo os Chiquitano. “Isso é mais que o dobro de mortes de 2019 e de 2018 inteiros”, contabiliza o advogado.
Dada a gravidade estatal revelada por estes números, a Comissão dos Direitos Humanos e organizações sociais indígenas e indigenistas formaram uma Rede de Proteção aos Chiquitano. “O trabalho precisa ser permanente, pois a chacina de agosto não é um caso isolado”, alerta Daniel.
Com um longo histórico de invasão e esbulho de seu território tradicional, aos Chiquitano o caso fica marcado com dor e tristeza. A intenção das denúncias é que o massacre não caia no esquecimento, seja feita justiça e a terra seja garantida. “Eles saíram de casa com destino de caçar, encontraram a morte e voltaram para nós dentro de um caixão”, lamenta uma das moradoras mais antigas da comunidade.
Mobilização não deixa o caso cair no esquecimento
A partir das informações reunidas pelas organizações que foram a campo colher informações, e que apontam atuação criminosa do Gefron, um ofício foi endereçado às autoridades brasileiras exigindo a apuração dos fatos e justiça para o povo Chiquitano. No entanto, até o momento, nada foi feito. O documento enviado às autoridades brasileiras pode ser acessado aqui.
“Nossa batalha é para que haja uma investigação independente e imparcial, que levante todos os elementos desta chacina. A caça é um fator de sobrevivência para os Chiquitano. Trabalharemos para que este crime não fique impune”, afirmou Gilberto Vieira dos Santos, coordenador do Cimi Regional Mato Grosso em reportagem produzida à época pela assessoria de comunicação da entidade.
Em vídeo divulgado logo após o assassinato, lideranças Chiquitano têm cobrado respeito dos governos da Bolívia e Brasil, pois o povo não se divide pela fronteira geográfica entre os dois países em caso muito semelhante aos Guarani do oeste do Paraná na fronteira com o Paraguai. Não se tratam de bolivianos, paraguaios ou brasileiros, mas sim de membros de povos que possuem território entre esses países.
Confira o discurso do Paulo na íntegra
Senhora Presidente,
Por que temos que denunciar pela terceira vez a este Conselho as atrocidades contra os povos indígenas Chiquitano, na fronteira do Brasil com a Bolívia.
Em setembro de 2019, Saturnina Chiquitano veio ao Conselho denunciar as ameaças ao seu povo. O governo brasileiro, mesmo sabendo do grave risco, nada fez para evitar que a atrocidades acontecessem.
Em 11 de agosto de 2020, 4 indígenas Chiquitano foram brutalmente assassinados pela Polícia Militar do Mato Grosso. Como de praxe, a hipótese do governo é o auto de resistência, contrastando com as provas contundentes de execução sumária.
Como não bastasse a denúncia do CIMI, dia 1 de outubro de 2020, a este Conselho sobre o massacre, não apenas as investigações não foram céleres, imparciais e independentes, mas agora a própria polícia militar intimida a comunidade Chiquitano para que pare de denunciar o massacre e pedir justiça. A mesma força policial envolvida no massacre entra no território da comunidade criando um clima de terror, angústia e impunidade.
O clima militarizado criado pelo governo federal repercute nas polícias estaduais, já violentas, criando um padrão generalizado de violência, agravado pela pandemia.
Senhora Presidente: Quando o governo brasileiro tomará alguma providência para solucionar este caso?
Muito obrigado.