As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) transformaram o papel da Igreja em vários países e pelo Brasil afora, alcançando os movimentos sociais e estendendo-se aos movimentos urbanos na realidade de hoje.
São presença garantida no Grito dos Excluídos e Excluídas, nas atividades da 6ª Semana Social Brasileira, na Jornada Nacional dos Pobres. Estão presentes nas ruas, nos bairros, nos morros, nas vielas, nas ações solidárias, na defesa da terra, dos povos originários...
Uma das características do jeito CEBs de ser Igreja é caminhar juntos de mãos dadas, um encorajando e animando o outro, nas lutas necessárias em defesa da vida.
Para ajudar no discernimento sobre a dimensão sociopolítica das CEBs, escolhi três dimensões constitutivas delas, que hoje me parecem particularmente atuais e inspiradoras.
Território
“Onde pisam os pés, a cabeça pensa e o coração ama; ama o coração, pensa a cabeça e os nossos pés pisam neste chão” (Maria Soave)
“O território é uma construção social; as pessoas o ordenam na inter-relação, o renovam com processos comunitários, com as práticas quotidianas e suas normas e com a metamorfose do tempo em mudança contínua.
O território é o tecido cotidiano no qual as comunidades vivem, trabalham, sofrem, mudam, amam, acreditam e vivem comumente sua existência. É o lugar vital para o trabalho de uma Igreja que se renova diante dos processos de mudança, aberta à escuta e ao diálogo com as diversas realidades vivas e dinâmicas. É ali que Deus se encarna, se revela, caminha com o seu povo”[1].
Uma das características chave das CEBs é o vínculo com o território. Pela explicação de Antônio Bispo, os quilombolas não dizem “aquele território é meu”, mas “eu sou daquele território”. Da mesma forma, dizemos “eu sou daquela CEBs”. Ela não me pertence, sou eu que pertenço a ela, porque ela me moldou, me ensinou a ser cristão, cristã, enraizado/a na história das pessoas do território onde vivo!
Porém, aos territórios hoje é imposta uma relação de saque. Saque dos bens comuns, dos conhecimentos ancestrais, das identidades populares. No campo, na cidade e na floresta os mais pobres vêm sendo expulsos das regiões mais ricas de “recursos” (é o nome usado pelo capitalismo), ou das áreas mais prometedoras em termos de especulação. Nas grandes periferias, as relações são despersonalizadas e as pessoas transformadas em atores homogêneos do ciclo de consumo. Neste contexto, uma pequena comunidade de fé, onde se cultivam as relações e se protegem as identidades, é um âmbito preciosíssimo de resistência e humanização. É pela força das espiritualidades que as comunidades conseguem permanecer nos territórios e defendê-los: reconhecem neles suas raízes e seus vínculos ancestrais; sonham, neles, o futuro de seus filhos e netos, e por isso se esforçam, a cada dia, de melhorá-los e torná-los “à imagem da gente”!
A Pastoral da Moradia e Favelas, que está se consolidando neste ano em nível nacional e se inspira e fortalece muito graças às CEBs, tem como lema exatamente isto: “O lar é onde as famílias repõem as energias, convivem dignamente e cultivam as relações, onde podem recostar a cabeça”.
Quero deixar como ícone bíblico deste primeiro passo em nosso discernimento a pequena “CEB” que Jesus costumava visitar antes de entrar nas contradições da grande cidade de Jerusalém: Betânia, casa do pobre, casa dos amigos Marta, Maria e Lázaro. Território de relações, com o perfume do nardo e muitas lembranças, que com certeza ajudaram Jesus a se manter fiel e firme em sua missão.
Política
“Comungar é tornar-se um perigo, viemos pra incomodar. Com a fé e a união nossos passos um dia vão chegar” (Cecília Vaz Castilho)
As CEBs foram e continuam sendo um importante ator político, nos bairros e nas cidades, nos conselhos paritários, na formação e na consciência cidadã (veja-se o forte compromisso assumido, recentemente, no mutirão “Encantar a política”).
Aliás, os espaços abandonados por elas, frequentemente são ocupados por outras expressões cristãs (incluso católicas) politicamente vinculadas a valores fundamentalistas e interesses mesquinhos.
Mas é da “política melhor” que queremos falar, aquela que Papa Francisco apresenta na encíclica Fratelli Tutti. Neste documento, o Papa diz que um dos nomes da política é Solidariedade. Num outro livro dele (Vamos sonhar juntos), Francisco comenta que “somos chamados como povo a serviço da solidariedade”.
A solidariedade não é só uma práticade soluções imediatas e emergenciais, mas é uma visão que devemos nos empenhar a servir e alimentar, por ser a principal cultura anticapitalista.
As CEBs são mestras em solidariedade; nas periferias urbanas, ela é o catalizador que agrega as pessoas ao redor de uma comunidade e que lhes faz sentir que ainda têm valor e sentido.
Por que solidariedade é um termo político? Já o dizia o Papa João Paulo II: porque significa “pensar e agir em termos de comunidade”. Não seria isso uma profunda revolução estrutural e um desafio radical para nosso ser cristãos? Fratelli Tutti acrescenta que solidariedade é lutar contra as causas estruturais da desigualdade e enfrentar os efeitos destrutivos do imperio do dinheiro.
Papa Francisco recorre também às etimologias: solidariedade tem a mesma raiz de “sólido”, porque reduzir a desigualdade é o que garante a estabilidade de uma sociedade. Interessante: num mundo que exalta a solidez e a segurança dos muros, que aparentemente nos protegem dividindo quem tem de quem não tem, o Papa afirma que a verdadeira solidez está... nas redes de relações. Algo muito mais flexível e capaz de se adaptar à fluidez das mudanças. Uma rede capaz de pescar, isto é, de salvar, a humanidade arrasada pelos fluxos desordenados das tempestades de hoje.
Ministerialidade
Somos gente nova vivendo a união, somos povo semente de uma nova nação ê, ê. Somos gente nova vivendo o amor, somos comunidade, povo do Senhor, ê, ê... (Zé Vicente)
A valorização da ministerialidade que as CEBs assumiram na prática, bem antes dos recentes apelos sinodais, se fundamenta na dignidade comum dos cristãos/as, habitados pelo mesmo Espírito, graças ao Batismo.
«Há diversidade de carismas, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversidade de atividades, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito para o bem comum» (1Cor 12,4-7).
Além de ser um princípio eclesiológico, um novo modo se viver e pensar a Igreja, a ministerialidade das CEBs nasce como resposta pastoral e criativa aos apelos da realidade. “Não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no coração [da Igreja]”, dizia o Concílio Vaticano II (GS 1); ao mesmo tempo, não é preciso que na Igreja tudo seja referido a seus pastores: este eco de compaixão e compromisso se faz ação subsidiária e articulada nos diversos ministérios que uma comunidade pode instituir.
Há, nas CEBs, um profundo espírito sinodal, se bem nos documentos preparatórios ao Sínodo para uma Igreja sinodal se faça pouca referência a elas (na Síntese da etapa continental fala-se da paróquia como “comunidade de comunidades” e da importância das “pequenas comunidades” (76); citam-se as “comunidades de base” numa breve passagem ao n. 79).
Ao contrário, o Documento de Santarém (42-48) fala abertamente das CEBs, relança o desafio de uma inculturação dos ministérios e exorta ao reconhecimento das mulheres nas instâncias de decisão e no ministério de dirigentes de comunidade.
Se quisermos ser uma Igreja atenta aos gritos da realidade e capaz de respondê-los, precisamos dar espaço à inventividade e à ousadia, na instituição de ministérios e ações pastorais que abram novos caminhos nos âmbitos do cuidado, do diálogo interreligioso, da incidência política, da solidariedade, dos estilos de vida...
As CEBs, livres e criativas, têm um papel essencial nisso, tanto dentro da Igreja, como na sociedade: é impressionante, nos diversos encontros realizados pela 6ª Semana Social Brasileira junto aos movimentos populares, o número esmagador de lideranças que agradecem as CEBs pelo despertar de sua vocação militante.
Que venham muitas outras pessoas, ministérios e organizações sociais comprometidas, à luz do Evangelho, pela vida, a justiça e a paz!
[1] Hna. Mónica Benavides, hdv, palestra proferida no seminário da CLAR sobre Território como lugar teológico.