Segundo Kelli Mafort, articular a solidariedade pode ser um gesto revolucionário. Nesta entrevista ela aponta os desafios da não garantia do direito de acesso a terra, à moradia, ao trabalho e a segurança alimentar, bem como a importância da coletividade para construir saídas
Por Osnilda Lima* | Comunicação 6ªSSB
“Viver em comunhão, partilhar o pão na vida, nas alegrias, mas também nas angústias e nas tristezas é uma necessidade urgente. As saídas não são individuais, mas coletivas, perante as mazelas que adoecem o corpo, que nos privam o acesso ao alimento e água, mas também as mazelas ligadas a adoecimento espiritual, que está intimamente ligado ao adoecimento mental. É importante que a gente cuide disso, não só de forma individual, mas que busque produzir relações sociais que nos fortaleçam e que nos deixem cada vez mais saudáveis”, essa é a utopia de Kelli Cristine de Oliveira Mafort, assentada da reforma agrária, que tem sua formação de base nas Comunidades Eclesiais de Base, é pedagoga de formação, mestre e doutora em Ciências Sociais pela UNESP, e é da coordenação do Movimento Nacional dos Sem Terra. Confira a entrevista a seguir com Kelli, onde ela coloca os desafios do direito ao acesso a terra, à moradia, ao trabalho e segurança alimentar e importância da coletividade.
Kelli Mafort – Qual sua utopia, sonho, o que mobiliza você na luta sociotransformadora? Há o elemento fé [vivência religiosa], esperançar?
Minha maior utopia é ver a realização de terra, teto e trabalho em plenitude, isso é algo que nos faz caminhar. Durante toda minha formação de vida e militância, eu aprendi a olhar o mundo através da comunidade eclesial de base, na periferia de São Paulo, de lá pra cá eu nunca mais parei de lutar, vejo que tenho muito a aprender no trabalho com o povo, no diálogo, nos desafios do dia a dia. Essa utopia nos faz caminhar, e a gente vai seguindo mesmo com as diversidades, mas imbuída pelo esperançar que nos convoca o tempo todo a renovar o compromisso e ter certeza que a luta mais contribui com a gente do que a gente com a luta. Mesmo com nossas limitações, mas se a gente conseguir dialogar com mais pessoas, a gente pode mudar o nosso pais que é tão bonito, tão rico, diverso, com um povo tão guerreiro e lutador.
Kelli Mafort – O afeto, a relacionalidade, a comunhão, a partilha do pão, da vida, o respeito e a potencialização das representatividades, são elementos importantes de luta nos movimentos populares?
Viver em comunhão, partilhar o pão na vida, nas alegrias, mas também as angústias e nas tristezas é uma necessidade. A gente percebe cada vez mais que as saídas não são individuais, são coletivas, perante as mazelas que adoecem o corpo, que nos privam o acesso ao alimento e água, mas também as mazelas ligadas a adoecimento espiritual, que está intimamente ligado ao adoecimento mental. Nós vivemos numa sociedade que nos adoece de muitas formas, é importante que a gente cuide disso, não só de forma individual, que também é importante, mas que a gente busque produzir relações sociais que nos fortaleçam e que nos deixa cada vez mais saudáveis. Por isso que o machismo, o racismo, a LGBTfobia, o preconceito, o negacionismo precisam ser eliminados do nosso meio. As mazelas que vêm com as Fake News, as mazelas que vêm dessa forma fundamentalista que disputa a nossa fé, nossa espiritualidade, nossas igrejas, ela tem que ser combatida. São aspectos de uma sociedade que quer nos matar, e não será nossa a tarefa de reproduzir isso no nosso meio. Por isso que tentamos dialogar sobre temas tão complexos através do afeto, é o afeto que faz uma família aceitar um filho LGBTQIA+, é o afeto que pode enfrentar situações de violência doméstica que atinge crianças, idosos ou mulheres, é o afeto também que sensibiliza as pessoas a serem mais solidárias umas com as outras. Esses são valores fundamentais cultivados nos movimentos populares e na militância, essa resistência viva na sociedade. Que bom que existe os militantes, já dizia frei Beto, que são portadores da boa nova e da palavra de libertação tão necessária, mas, sobretudo, são portadores de gestos e ações concretas de libertação.
Kelli Mafort – Brasil está de volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas. Mais da metade da população brasileira vive com algum grau de insegurança alimentar. A fome é um projeto político?
A fome é um projeto político. Infelizmente chegamos a um patamar de crise do sistema capital, na qual, uma parte de nós pode deixar de existir. Para eles, a gente pode morrer de fome, de bala, através do genocídio que atinge, principalmente a população negra, a juventude negra. E podemos morrer de vírus com essas pandemias que não se acabam mais, e elas têm na origem o agronegócio, que está na base das pandemias. A situação da fome no Brasil é muito grave e é uma expressão da desigualdade social. Recentemente, a fome, foi objeto de um relatório importante da Oxfam que revela toda essa desigualdade social fruto de um modelo que produz bilionários, que aumentam a sua renda e sua riqueza, enquanto nós temos um mar de miseráveis que só cresce. Nós temos no Brasil uma população economicamente ativa, composta de 100 milhões de pessoas, 73 milhões estão desempregadas, ou trabalham por conta própria, ou estão em empregos extremamente precarizados, vítimas da reforma trabalhista. Então, a luta por terra, teto e trabalho está cada vez mais urgente e é preciso que os governos, já que estamos no ano eleitoral, olhem para esse tema.
Kelli Mafort – Quem produz o alimento que vai à mesa da população brasileira? E nessa produção, qual a importância da democratização do acesso à terra como garantia da soberania alimentar?
Segundo o censo agropecuário de 2017, quem produz o alimento que vai para a mesa da população brasileira é a agricultura familiar e camponesa. Esse é um grande leque que abarca tanto os pequenos agricultores, assentados de reforma agrária, pessoas que vivem no campo e que produzem comida. O agronegócio não produz comida, produz quatro, cinco produtos que são commodities para exportação. Eles têm a maior quantidade de terras. A menor quantidade fica com a agricultura familiar e camponesa. Eles têm o maior acesso aos créditos, como o plano safra e empregam o menor número de pessoas. O maior número de pessoas é empregado pela agricultura familiar. Mas apesar da comida ser produzida pela agricultura familiar, nós não controlamos o comércio, infelizmente. Tem boas iniciativas, como por exemplo, o caso MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], as feiras da reforma agrária, armazéns do campo etc. Mas não controlamos o comércio de comida em nosso país. Quem controla isso é o capital, o agronegócio, são os grandes conglomerados. Então eles se apropriam de uma comida que eles não produzem, especulam em cima disso. Isso porque temos uma comida que virou mercadoria, e estamos há anos vivendo sob a desvalorização da nossa moeda, por conta de uma supervalorização do dólar. Essa comida que não é produzida pelo agronegócio, passa pela indústria de alimento e é mandada para fora. Os capitalistas preferem receber em dólar, deixam para o povo brasileiro uma inflação galopante no preço dos alimentos, que fechou, no ano passado em torno de 14%, uma média. Se formos pegar alguns alimentos, especificamente, a gente vai ver que essa cifra é muito maior. Nós temos hoje a grande necessidade da reforma agrária, isso não é coisa do passado. Nós temos muitas terras, recursos naturais e infelizmente o campo brasileiro está totalmente dominado pelo agronegócio, pela mineração. E o pouco que a gente conquistou, na terra, na reforma agraria, o territórios indígenas, quilombolas estão sob ameaça, através de politicas do governos e incentivos do governo à invasão do garimpo ilegal, em terras indígenas, ameaças as terras quilombolas, o incentivo para que os assentados vendam suas terras por meio da titulação. Essas politicas são para desmantelar os territórios que já foram conquistados através da luta do povo e avançar ainda mais esse agronegócio e mineração que são tão nefasto para a destruição da natureza.
Kelli Mafort – Frente ao desgoverno, qual o papel da sociedade organizada no enfretamento à fome?
A sociedade quer se mobilizar para praticar a solidariedade e salvar o maior número de pessoas da fome, isso é uma ação urgente. Nós temos que cobrar do governo, do estado, as suas responsabilidades frente a ausência de políticas públicas. Fazer a denúncia sobre o que isso representa: a falta de políticas e programas sociais para atender pessoas, denunciar a questão da economia no país. Segundo a ONU, nós estamos na posição 178, entre os 180 países em relação ao crescimento econômico. É uma vergonha para o Brasil. Temos uma atitude urgente, em duas frentes, e as duas têm de ser feita ao mesmo tempo: por um lado praticar muita solidariedade, salvar vidas, por outro fazer a denúncia, fazer a luta política e usar as eleições de 2022 para mudar a conjuntura que está colocada em nosso país.
Kelli Mafort – A partir de sua luta social, a fome e o não acesso à terra têm recortes de gênero, classe social, cor e escolaridade?
Hoje no país, 45% dos lares são chefiados por mulheres, isso representa um crescimento significativo. No ano de 1995 era cerca de 25%. E não é que a mulheres estão chefiando suas famílias porque existem homens lá. Existem muitos lares que não têm homens, eles não assumiram suas responsabilidades de pais, e isso tem a ver com a masculinidade, que essa sociedade capitalista incentiva que tem relação com o patriarcado e o machismo, que são muito presentes em nossa sociedade, por isso a gente vê tão forte a violência contra as mulheres, casos de feminicídio, e o maior dos misóginos que está no poder que é o presidente Jair Bolsonaro. Portanto, a fome, ela tem uma cara, uma expressão: que é das mulheres, que não só são as mais atingidas pela fome, mas elas têm que gestar a violência e os conflitos decorrentes da fome, que é bastante grave. A fome atinge os pobres, os trabalhadores e trabalhadoras, os menos escolarizados, os negros e negras. Nós temos uma realidade de gênero, étnico-racial, indígena, e como o modo de vida deles estão sendo afetados. Também estão passando por situações de fome, além do não reconhecimento de seus territórios. O Brasil tem uma expressão, uma cara da fome, e essa cara é negra, feminina, pobre com baixa escolaridade.
Kelli Mafort – A solidariedade é uma receita do MST no enfrentamento à fome, conte-nos sobre a mobilização do Plano Emergencial com as doações de alimentos.
A solidariedade é um princípio fundamental do MST, desde quando foi criado em 1984, nós tivemos muita solidariedade nas primeiras ocupações, nos acampamentos, da sociedade para poder sobreviver. Hoje temos o prazer de devolver isso, porque temos melhores condições, em janeiro deste ano completamos 38 anos de existência. Temos cerca de 450 mil famílias assentadas, 90 mil acampadas, ainda lutando pela terra. Temos cerca de 1.900 associações, uma gama grande de cooperativas, agroindústrias. Estamos disputando no mercado financeiro através no Financiamento Popular (FINAPOP). Também enfrentamos muitas dificuldades, pois a política de reforma agrária está bloqueada em nosso país. Mas mesmo com as dificuldades e situações de despejos, a gente pratica a solidariedade como um ato pra ajudar salvar vidas. É por isso que tivemos desde o início da pandemia essas brigadas entregando alimentos, fazendo comidas nas cozinhas solidárias, e colocamos livros nas cestas, tivemos ações no Natal Solidário sem Fome, na qual conseguimos distribuir 17 mil livros e mil toneladas de alimentos. Desde o início da pandemia, já estamos completando seis mil toneladas de alimentos doados, e inúmeras marmitas solidárias. Fazemos isso não só com os esforços do MST, ele é um articulador, muitas coisas são doadas nos acampamentos e assentamentos, mas também arrecadamos recursos na sociedade, pois muita gente nos apoia e, com isso, conseguimos comprar essa alimentação a preço justo, fazendo essa comida chegar a quem precisa. O MST é um articulador da solidariedade, gesto humano e revolucionário, fundamental, mas também um trabalho de base, pois através da comida a gente encontra a possibilidade de muito diálogo, esse encontro das panelas vazias, que é um trabalho de base, pode dar muita luta, é nisso que estamos apostando.
Kelli Mafort – A crise climática pode empurrar mais pessoas para à fome?
As mudanças climáticas, que podemos chamar de crise climática, elas vão empurrar mais pessoas para a fome, vimos isso nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pará, Maranhão. É água transbordando junto com rejeitos de mineração, isso tudo a longo prazo vai causar muitas doenças. Na Bahia junto com aquelas cheias, vem a chikungunya, logo na sequência, milhares de pessoas perderam as suas casas, tiveram que ir para abrigos provisórios. Temos o gás de cozinha ocupando 10% do valor do salário mínimo, combustível nas alturas, a políticas de preços de um país que tem petróleo é uma política refém da politica internacional. O preço dos alimentos nas alturas, aluguel aumentando, tudo isso somado aos desastres ambientais, que são crimes provocados pelo agronegócio, pelo capital, pela especulação financeira, obviamente a fome vai aumentar. Além disso, as crises climáticas já estão colocando um processo de desertificação em algumas regiões do país, que infelizmente vão transitar entre regiões semiáridas para regiões áridas. Com isso, não será possível ter vida em abundância, e muitas dessas pessoas vão migrar. Há destruição de biomas importantíssimos, como o bioma amazônico, o serrado, a caatinga, tem uma consequência direta na vida das pessoas no acesso a água e a comida. Uma prova que a crise climática impacta na produção de alimentos é que os dados da fome no campo já começam a chamar atenção. Em relação às pessoas que vivem no campo, a proporção da fome é ainda maior para quem vive na cidade. É importante se perguntar por que quem vive no campo está passando fome, isso tem a ver com as mudanças climáticas e tem a ver com a falta de política públicas. As pessoas que vivem no campo, cada vez mais, precisam ser colocadas na ordem do dia.
*Esta entrevista contou com a colaboração de Ilanyr Felipe, na transcrição da gravação. E foi publicada originalmente no site da Agência Signis