SSB
17/04/2021

Hoje, no dia da Luta Camponesa e marco de 25 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás, a Articulação das Pastorais do Campo e a 6ª Semana Social Brasileira denunciam o aumento da violência no campo, que atinge territórios indígenas, tradicionais e camponeses

Andressa Zumpano | Articulação das Pastorais do Campo

Nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro, houve um aumento significativo dos conflitos no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, o ano de 2019 ficou marcado pelo aumento de conflitos pela água, violência contra povos indígenas e o maior número de violência no campo em 14 anos. Ainda assim, a resistência dos povos não arrefeceu e neste mesmo ano, as manifestações em denúncia às violências cometidas pelo atual governo aumentaram cerca de 142% em relação aos anos anteriores. 

O ano de 2020 tem como marco o aumento das invasões de territórios indígenas e tradicionais. Dado preocupante, devido à pandemia de COVID 19, com 1039 indígenas mortos e a média de morte de um quilombola por dia. Com as crescentes invasões, apoiadas pelo atual governo, o avanço da pandemia no campo tem se constituído como um verdadeiro genocídio. Como agravo: garimpo, desmatamento e queimadas contribuem também para a morte dos biomas. 

Por isso, destacamos três conflitos emblemáticos, que atingiram comunidades e territórios acompanhados pela Articulação das Pastorais do Campo, de modo a aumentar a visibilidade e trazer as vozes silenciadas e violentadas diariamente pelo Estado, judiciário e grandes empresas. São eles : Rio Abacaxis, no Amazonas; Pau D'Arco, no Pará, e comunidade quilombola Boca do Rio, na Bahia. 

“5 dias de terror”, o conflito em Rio Abacaxis

Próximo a capital do Amazonas, em um área de importante preservação e vasta beleza que atrai os olhos dos que ali residem e dos que desejam conhecer a magnitude da floresta amazônica, um conflito sangrento vem atingido comunidades ribeirinhas e territórios indígenas. Na região conhecida como Rio Abacaxis, entre os municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, o conflito resultou na morte de um indígena Munduruku, três ribeirinhos e o desaparecimento de mais um indígena Munduruku.

As comunidades que residem em Rio Abacaxis denunciaram que no dia 24 de julho de 2020, praticantes da pesca esportiva dentre eles o secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, estavam atirando em direção às áreas de moradia. Segundo depoimentos dos moradores, esse mesmo barco retornou a região praticando esses atos. Após uma série de denúncias feitas principalmente pelos indígenas do povo Maraguá e comunidades ribeirinhas, que reivindicam a ausência de licenciamento ambiental para a prática da pesca artesanal e contra a violência cometida,  iniciaram as retaliações. 

Segundo Manifesto organizado pela sociedade civil, organizações e movimentos sociais em denúncia ao conflito em Rio Abacaxis “Este território encontra-se reivindicado como território tradicional do Povo Maraguá, e para que a pesca esportiva e o turismo sejam permitidos, é necessário que os órgãos competentes emitam uma licença ambiental. Esta questão encontra-se em etapa de conciliação com os sujeitos envolvidos, acompanhada pelo Ministério Público Federal”.

Após essas denúncias, em agosto de 2020, a Polícia Militar do estado do Amazonas iniciou uma operação considerada sangrenta pelas comunidades e populações indígenas da região. Segundo relatos, em primeira visita a SSP-AM enviou policiais do Comando de Operações Especiais e do Batalhão Ambiental da Polícia Militar, para uma atividade com intuito de coibir o tráfico de drogas da região, na ocasião, dois policiais militares foram mortos em suposta emboscada organizada por traficantes de drogas. 

Em seguida, uma grande operação com cerca de 50 policiais foi organizada para investigar o referido assassinato. No entanto, as comunidades denunciam que a ação resultou em um verdadeiro terror para todos que residem em Rio Abacaxis, na ocasião, relatos de abordagens violentas, tortura, invasão de residências e assassinato de três ribeirinhos e dois indígenas Munduruku no Rio Marimari, todas as vítimas não tinham envolvimento com o crime anterior. 

Segundo a cacique Alessandra Munduruku, da Terra indígena Kwatá/Laranjal, policiais militares entraram em território Munduruku, na área do Rio Marimari , sem licença da FUNAI, no dia 05 de agosto de 2020, assassinando dois indígenas, Josimar e Josivan, um deles catraieiro da lancha que fazia transporte de crianças para escola. “ Essa ação durou mais ou menos uns 5 dias, eles foram matando pessoas inocentes aqui e no Abacaxis, foram fazendo essas coisas e matando quem não deveria. Pra eles (Polícia Militar) acalmarem um pouco de estar matando pessoas, foi preciso chamar a Polícia Federal, a Força Nacional, devido a morte dos dois indígenas e ao que eles estavam fazendo. Porque a gente não aceita eles terem vindo matando pessoas inocentes...até hoje a gente não sabe o porque e queremos que a justiça seja feita”, relata a cacique Alessandra. 

As comunidades ribeirinhas e territórios indígenas Maraguá e Munduruku que residem nas áreas de Rio Abacaxis e Rio Marimari, organizações da sociedade civil e movimentos sociais exigem urgente apuração dos fatos, fim das operações policiais na região e garantia de segurança para as populações vitimadas. Segundo a Cacique Alessandra Munduruku, o sentimento de medo é constante “Eu nasci e me criei aqui dentro da nossa terra indígena e nunca tivemos esse problema. Já conversei com meus bisavós, também falaram que nunca aconteceu isso...a gente se sente amedrontado, qualquer movimento de lancha, já ficamos amedrontados. Eu e outras pessoas daqui entramos em depressão depois disso.”

“Não há testemunha, não há julgamento”, 4 anos de conflito em Pau D’Arco

Era noite de 21 de janeiro de 2021 quando a principal testemunha sobrevivente do Massacre de Pau D’Arco foi assassinada com um tiro na nuca, Fernando Santos Araújo. Fernando foi morto em seu lote na Fazenda Santa Lúcia, área palco do sangrento massacre ocorrido em 24 de maio de 2017, quando dez trabalhadores rurais, 9 homens e uma mulher, foram executados pela Polícia Militar e Civil do Estado do Pará.

Três anos antes, Fernando testemunhava a morte de seu companheiro e de mais 9 trabalhadores rurais que ocupavam a área da Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no estado do Pará, que junto de 150 famílias reivindicavam ocupação de uma terra supostamente grilada. O conflito ocorreu durante operação policial organizada pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA) com apoio de contingente policial de Redenção, Conceição do Araguaia e Xinguara, com a finalidade de cumprir mandado de prisão contra ocupantes da Fazenda. 

O processo que tramita na justiça desde o ano de 2013, revela a situação conflitiva que o estado enfrenta, sendo um dos mais explosivos em termos de violẽncia e mortes no campo brasileiro. Trabalhadores rurais assassinados e criminalizados, não são ouvidos pelos tribunais, enquanto grandes proprietários de terras gozam do direito de enriquecimento a partir de terras griladas, em sua grande maioria de propriedade da União. 

Segundo entrevista dada a Agência Pública por Andréia Silvério, atualmente coordenadora nacional da Comissão Pastoral da Terra, “Os executores foram presos em 2017 e ficaram presos até finalizar a instrução do processo. Depois que foi finalizada a instrução, eles foram colocados em liberdade...eles estão soltos porque o entendimento da Justiça é que o que justificava a prisão deles era que a fase de instrução ocorresse corretamente. Como não houve nenhum fato por parte deles no sentido de colocar em risco a vida dos sobreviventes do massacre ou de atrapalhar as investigações, eles permaneceram soltos”. 

Antes de seu falecimento, Fernando Araújo deu entrevista exclusiva para a agência Repórter Brasil, que seria divulgada “caso o pior acontecesse”. Segundo relato de Fernando, alguns alertas foram dados por conhecidos, “Os policiais estão pensando em vir aqui dar um jeito de não haver mais testemunha antes do julgamento. Não há testemunha, não há julgamento”.

Como resultado das retaliações entre os vitimados pelo conflito na Fazenda Santa Lúcia, José Vargas Junior, advogado defensor dos sem terra, foi preso em 31 de dezembro de 2020. Sob acusações baseadas em piadas publicadas no whatsapp, tendo seu celular e computador apreendidos. Vargas foi solto um dia antes do assassinato de Fernando, “eu não tenho dúvidas da relação entre a minha prisão e o massacre de Pau D’Arco e que a morte do Fernando foi queima de arquivo”, revela o advogado. 

Antes do Porto chegar, já existíamos!”, conflito na comunidade quilombola Boca do Rio

“Somos a Comunidade Remanescente de Quilombo Boca do Rio, nosso território está localizado na Baia de Aratu, município de Candeias, estado da Bahia. Somos devidamente reconhecidos como quilombolas pelo Estado Brasileiro, certificados pela Fundação Cultural Palmares e com processo de regularização em tramitação no INCRA. Nossa comunidade tem origem ancestral em negros fugidos de engenhos de açúcar, remanescentes indígenas e por negros que permaneceram no local após a abolição da escravidão. Temos relação territorial específica, trajetória histórica comum e reconhecemos nossa identidade no longo processo de resistência à opressão sofrida por nossos ancestrais que dura até os tempos atuais.”

Reivindicando o seu direito ancestral de existir, a comunidade quilombola Boca do Rio, no município de Candeias, Bahia, denuncia em manifesto , as diversas violências cometidas em seu território por grandes empreendimentos como porto de Aratu, Volpak, Braskem, GDK, Mendes Jr, Ford e Dow Química, entre outras. 

Em setembro de 2020, a comunidade foi surpreendida pela construção de terminal portuário privado da Empresa Bahia Terminais S/A, que trouxe severos impactos ambientais para o território, além de atuar sem qualquer diálogo ou consulta prévia com a comunidade. A consulta livre, prévia e informada é um direito dos povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais, assegurado pela Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que vale como lei no Brasil desde 2004.

Segundo relato de Ricardo do Carmo Celestino, “são ameaças que tiram nosso direito de posse, como comunidade quilombola reconhecida pelo próprio INCRA. Somos um povo que antes do Porto chegar aqui já existíamos, igualmente nossos ancestrais… o empresário que vem chegando aqui junto com o porto é um homem truculento, já nos ameaçou e tá querendo tomar todo nosso território.”

O terreno onde está sendo construído o porto foi cedido pelo Governo do Estado da Bahia, no entanto, em processo levantado pelo Ministério Público do Estado da Bahia e decisão liminar da 3ª Vara Federal Cível, publicada no Diário de Justiça Eletrônico, no dia 11 de março, responde à uma Ação Civil Pública impetrada pelos Ministérios Públicos Estadual e Federal e suspende integralmente o licenciamento que a Empresa Bahia Terminais havia recebido do INEMA (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia) para a construção de um porto na região. 
Em março deste ano, a empresa descumpriu tal decisão, retomando as atividades e construção do terminal portuário. Caso se consolide, os impactos socio ambientais serão irreversíveis, “Nosso povo sempre sobreviveu da pesca nos manguezais e coroas da Baía de Aratu - onde coletamos peixes, crustáceos, mariscos - e da floresta atlântica - onde coletamos frutos e itens essenciais para nossa sobrevivência como lenha, material para artesanato, guaiamuns, ervas medicinais, entre outros. Praticamos a pequena agricultura e a criação de pequenos animais. Nosso povo é detentor de tradições e conhecimentos ancestrais passados de geração para geração”.