Acabar com um sistema econômico que trata a pessoa como mercadoria. Artigo de Luis Miguel Modino
"Estamos diante de mais uma oportunidade para tomar consciência como Igreja e ajudar a sociedade a sentir a necessidade de enfrentar um crime que está muito mais próximo da gente do que a gente pensa. Muitas vezes colocamos a economia acima da vida e justificamos atitudes pessoais e sociais que provocam situações de tráfico humano. Nunca esqueçamos que se trata de pessoas e que nossa falta de compromisso produz exploração e morte", escreve Luis Miguel Modino, padre espanhol e missionário Fidei Donum. Artigo publicado no Ihu On_line
Eis o artigo
Numa sociedade onde o lucro determina as relações entre as pessoas, somos chamados a refletir como humanidade, a construir um mundo marcado por relações de fraternidade, que nos leve ver o outro como um irmão, como uma irmã. O Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas, que todos os anos acontece no dia 8 de fevereiro, nos leva a refletir em 2021, na sua 7ª edição, sobre o tema “Economia sem tráfico de pessoas”.
O Papa Francisco, no Discurso proferido no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, no dia 9 de julho de 2015, ele dizia: “Digamos não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui”. Estamos diante de um sistema econômico, em palavras do Santo Padre que castiga “a terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem”, que deixa sentir “o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro”.
Somos chamados a refletir sobre o modelo econômico dominante, uma das principais causas do tráfico de pessoas. Não podemos esquecer que os lucros anuais decorrentes do tráfico no mundo são 150,2 bilhões de dólares, dois terços dos quais são provenientes da exploração sexual. Estamos diante de um modelo cujos limites e contradições têm sido agravados pela pandemia da Covid-19. Uma parte importante desse modelo econômico, dado os altos lucros que gera, é o tráfico de pessoas, vistas como mercadorias, submetidas pela especulação financeira e pela concorrência.
O sistema econômico global que domina o mundo só será superado na medida em que seja assumida uma visão “estrutural e global” do tráfico de pessoas, que ajude a desequilibrar todos aqueles mecanismos perversos que alimentam a oferta e a procura de “pessoas para explorar”. A reflexão sobre esse sistema econômico nos leva a entender que é o coração de toda a economia que está doente. Trata-se de uma economia onde tudo é dominado pelo preço dos produtos, onde as empresas se tornaram vítimas de uma lógica em que cada vez mais, a empresa é valorizada pelo preço das suas ações no mercado financeiro e não pelo valor acrescentado gerado pelo seu capital humano.
Fratelli tutti nos diz que “o direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres” (FT 122). Não podemos esquecer que são os pobres as maiores vítimas do tráfico de pessoas, muitas vezes em consequência de falta de oportunidades no âmbito local, o que é aproveitado pelas máfias, que com falsas promessas conseguem aliciar as vítimas. Diante dessa realidade, a mesma encíclica nos diz que “a superação da desigualdade requer que se desenvolva a economia, fazendo frutificar as potencialidades de cada região e assegurando assim uma equidade sustentável” (FT 161).
Diante das “graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais” (FT 179), são precisas mudanças profundas e transformações importantes, procurando uma economia que vise o bem comum. Essa, que pode ser considerada uma crítica do Papa ao neoliberalismo, que a pandemia do coronavírus tem escancarado suas mazelas. Nesse sentido, podemos dizer que o tráfico de pessoas é a ponta do iceberg, é o espelho de aumento de um mal-estar de um neoliberalismo vigente baseado em uma (falsa) ideia de liberdade econômica em que toda instância ética, social e política é estranha e um obstáculo.
Nesse sentido, o Papa Francisco, em Fratelli tutti, nos diz que “hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concessão da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim” (FT 24). Essa escravatura moderna, o tráfico de pessoas, é um “problema mundial que precisa de ser tomado a sério pela humanidade no seu conjunto” (FT 24). Podemos dizer que o Papa Francisco é hoje um dos principais impulsores dessa luta contra o tráfico humano. Ele quer que toda a Igreja se envolva nessa dinâmica, algo que na Igreja latino-americana é coordenado pela Rede CLAMOR, que engloba diferentes redes nacionais e regionais.
A ligação entre o tráfico de pessoas e o tráfico de droga e armas é forte, nos lembra o Papa Francisco na sua última encíclica, uma realidade que está muito presente na vida dos imigrantes, submetidos a muitas situações de fragilidade, tanto antes como durante o percurso das suas viagens, inclusive depois de ter chegado no local de destino, onde as condições de vida são muitas vezes precárias. Fratelli tutti nos faz um chamado a “cuidar da fragilidade” para evitar chegar na “cultura do descarte”.
Neste ano, o Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas nos leva a refletir sobre a necessidade de uma economia sem tráfico, que é uma economia que valoriza e zela pelo ser humano e pela natureza, que incluem e não explora os mais vulneráveis. Desde o Comitê Internacional do Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o tráfico de pessoas, a proposta é entender e assumir como modelo econômico a "Economia de Francisco", o grande movimento de jovens economistas, empresários e agentes de transformação de todo o mundo convocados pelo Papa Francisco para compartilhar ideias e projetar iniciativas para a promoção do desenvolvimento humano integral e sustentável, no espírito de Francisco.
Como Igreja é importante conhecer as “Orientações Pastorais sobre Tráfico de Pessoas Vaticano”, onde é mostrado que o Tráfico de Pessoas “assume o controle das suas vítimas e conduze-las a locais e situações em que são tratadas como mercadorias, para serem compradas e vendidas e exploradas como trabalhadoras ou mesmo como ‘matérias-primas’ de formas múltiplas e inimagináveis”. Uma das causas de tudo isso, segundo as orientações, está no “aumento do individualismo e do egocentrismo, atitudes que tendem a considerar os outros numa perspectiva meramente utilitarista, atribuindo-lhes valor de acordo com critérios de conveniência e benefício pessoal”.
A Igreja, como é colocado nas orientações, “está empenhada em todo o mundo na denúncia da mercantilização e da exploração das pessoas, em resultado da ‘cultura do descarte’ que é repetidamente condenada pelo Santo Padre e por ele ligada ao ‘deus dinheiro’”. Nesse sentido, somos chamados a refletir sobre o aspecto da procura e do pouco conhecimento acerca da natureza e da difusão do tráfico de pessoas, fazendo “todos os esforços para aumentar a sensibilização e a formação dos jovens de forma a prevenir e combater com eficácia o tráfico de pessoas”. Além disso se faz necessário denunciar as situações de tráfico de pessoas, assim como entender as conexões entre o tráfico e o mundo dos negócios e como o tráfico de pessoas faz parte das cadeias de abastecimento.
Estamos diante de mais uma oportunidade para tomar consciência como Igreja e ajudar a sociedade a sentir a necessidade de enfrentar um crime que está muito mais próximo da gente do que a gente pensa. Muitas vezes colocamos a economia acima da vida e justificamos atitudes pessoais e sociais que provocam situações de tráfico humano. Nunca esqueçamos que se trata de pessoas e que nossa falta de compromisso produz exploração e morte.