José Pepe Mujica está inquieto. “O prognóstico da ONU é catastrófico. Isso me assusta muito”, diz esta referência política, de 87 anos, sobre a crise climática do planeta. Mujica, que não é homem de se intimidar facilmente, destaca que esta pode ser a última globalização da humanidade, caso a política não recupere o espaço perdido frente aos interesses mercantis.
Nesta entrevista, realizada em sua chácara, em Montevidéu, o ex-presidente uruguaio (2010-2015) defende um entendimento global baseado no instinto de cooperação que caracterizou o progresso humano. “Não há nada mais importante do que os jovens discutirem este mundo”, ressalta com voz imperativa e visão assertiva, sentado em frente à sua casa, entre nespereiras, mudas e sabiás.
A entrevista é de Gabriel Díaz Campanella, publicada por El País, 24-11-2022. A tradução é do Cepat e publicado no IHU.
Eis a entrevista.
Com o fim da pandemia mais próximo, como interpreta o que aconteceu?
Penso que a pandemia serviu para desnudar algumas das fragilidades que, como humanidade, temos hoje. E uma delas é que a propriedade do conhecimento teve muito mais valor do que a necessidade humana de contribuir para poder coletivizar o conhecimento. Os sistemas de vacinas poderiam ter sido ampliados de forma muito mais rápida e isso acabou custando milhões de vidas.
O que falhou?
A ciência não falhou, o que falhou foi a política, que não teve a capacidade de coagir o sistema econômico para poder fazer o que deveria ser feito rapidamente.
Somado a isso, a fome no mundo aumentou em 150 milhões de pessoas. Hoje, mais de 800 milhões vivem com fome.
Isso teria que ser confrontado com um número que não gerenciamos, sobre quanto vale o que poderíamos chamar de economia de luxo ou economia do esbanjamento, para demonstrar a nós mesmos que, na verdade, recursos existem, mas não os utilizamos como deveríamos. Por um lado, há fome, mas também há cálculos de que 25 ou 30% dos alimentos são jogados fora.
Como corrigir isto?
A responsabilidade é política, porque sabemos o que acontece. E temos uma ideia do que deveria ser feito, mas não podemos agir porque a política não pode mexer com o conjunto de interesses que estão concatenados por trás disto. A humanidade criou uma civilização notável, alcançou a ciência, multiplicou a produtividade e a variedade das coisas, mas não podemos pará-la, não podemos reconduzi-la.
Talvez, esta seja a última globalização do homem, se não a corrigir. Houve várias, porque Roma foi uma globalização, a história do império chinês também. Mas todas tiveram direção política. Esta é uma globalização que está sendo realizada pelos interesses do mercado, onde a política é um pálido espectador que vai atrás.
Como a política poderia recuperar esse lugar?
Precisamos de um governo mundial e entrarmos em acordo para respeitá-lo. Teria que ser eminentemente técnico-científico em muitos aspectos. Mas nenhum país vai ceder por causa do conjunto de interesses que há por trás e por causa de sua soberania.
Os interesses nacionais acima dos ideais comuns.
Sim, claro! Existem contradições com o mundo das empresas transnacionais. Algumas são mais fortes que um Estado, do ponto de vista da economia. Sobretudo, em Estados como o meu, o Uruguai. Estamos em um mundo sem direção política.
O que acontece com a Organização das Nações Unidas?
Precisamos de um acordo mundial. Se olharmos para a história das Nações Unidas, está sendo arrasada por nós. Estamos longe de ter o que precisamos, uma espécie de conselho científico que tome algumas medidas capitais que assumamos. Tive uma conversa recente com [o historiador Yuval] Harari. Sabe qual é a angústia dele?
O que lhe disse?
O mais penoso é isto: a humanidade não ter tempo, tempo humano, para reparar os desastres que causou ao planeta e que estejamos caminhando para um holocausto ecológico.
A vontade é pensar que isto pode ser corrigido.
Sempre acreditamos que existe uma resposta científica, que é possível. Ao longo da história, os seres humanos cometeram muitas barbaridades, mas não sabiam.
Agora, sabem.
A tragédia é que agora sabemos. Há mais de 20 anos, a ciência nos apontou, em Kyoto, que os fenômenos adversos seriam cada vez mais frequentes e intensos. A ciência nos disse o que deveria ser feito, e as décadas passam, surgem os eventos e não fazemos o que temos que fazer. O que está falhando é a política. A grande questão é se o gênero humano como tal está chegando aos limites de sua capacidade de se autodirigir.
Essa inclinação humana à destruição aparece também nas guerras, na Europa do Leste, Oriente Médio, Ásia, África.
Considero que o homem não saiu da pré-história. Enquanto tivermos que utilizar a guerra como uma expressão do fracasso da política, não teremos saído da pré-história. É muito provável que a humanidade esteja utilizando nada menos do que 2,5 milhões de dólares por minuto em gastos militares. É uma das estupidezes mais colossais que pode existir.
Segundo a Anistia Internacional, 70% das vendas de armas estão nas mãos dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Como é possível almejar a paz?
A fabricação de armas se transforma em uma ferramenta diplomática, de influência, e se torna uma força econômica que opera nos governos, porque há um lobby da força armamentista. As galinhas estão programadas para botar ovos e os exércitos para a guerra. Se permitirmos que influenciem nas decisões políticas, estamos fritos.
Por isso, se as novas gerações não assumirem as cartas sobre o assunto, no tema ecológico, no da guerra... Não há nada mais importante do que os jovens discutirem este mundo! Temos que mudar a cultura.
Isto aparece frequentemente em seus discursos. Para você, o que é a cultura?
A cultura é o repertório que nos faz apreender as chaves fundamentais daquilo que nos cerca, de nossa existência, que fazem a vida. E respeitá-las, estarmos integrados a esse mundo, não nos sentirmos alheios. A cultura é também uma necessidade que está latente, é um bem imaterial que nos ajuda a viver. É o amor à vida.
Como essa mudança cultural deveria ser conduzida?
Eu pertenço a outro tempo. Éramos filhos do racionalismo, da ruptura com o mundo escolástico e da entronização do deus Razão. O avanço da ciência do comportamento humano nos mostra que somos criaturas mais complicadas, mais emocionais. Muitas vezes, as decisões são tomadas pelo nosso inconsciente, subjetivamente, e nosso consciente encontra uma bateria de argumentos para justificá-las. Ou seja, primeiro sentimos, depois explicamos.
Para onde isso nos leva?
Na solidão, fiz esta pergunta para mim mesmo: Nós, sapiens, o que somos? Qual é o disco rígido que a natureza nos deu e quais são os fatores adquiridos por meio da civilização, da cultura, do tempo que nos cabe viver?
Que respostas encontrou?
O sapiens é um animal gregário, não pode viver na solidão. Viveu milhares de anos em grupo. A tal ponto que em todas as formas de direito antigo, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso do grupo. Esses grupos existiam por causa de uma lei fundamental do homem: o instinto de cooperação. O sapiens era fisicamente inferior ao neandertal, mas o neandertal não tinha esse senso de cooperação e sucumbiu.
Em parte, esse senso de cooperação explica o que somos.
Permitiu criarmos sociedade. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo é indivíduo e há contradições. Para todas as coisas vivas, a natureza insere uma parcela de egoísmo. E isso também está no homem, há uma certa margem de conflito. Por isso, somos animais que precisam da política, porque a função da política, apesar dos conflitos, é manter a comunidade. A civilização é filha da cooperação.
Há muitos desajustes. A América Latina, por exemplo, é a região com as maiores desigualdades sociais e econômicas do mundo.
A América Latina é descendente de dois países feudais: Portugal e Espanha. Distribuiu a terra como recurso primigênio, com um critério feudal. E com isso começou a originar uma polarização, desde o início da nossa história, com uma classe dona de quase tudo, no meio nada e embaixo uma imensidão pobre.
E no século XXI, a cooperação pode contribuir para remediar a desigualdade?
É preciso aceitar o desafio da sociedade de mercado e convencer as grandes maiorias a construir outro sistema de organização humana. É preciso apoiar muito a autogestão, a cogestão, outro sistema de funcionamento empresarial, baseado na cooperação.
Onde há uma grande empresa é porque a cooperação humana funciona, impõe-se, mas não é um projeto individual. O melhor do capitalismo deve ser mantido. Em definitivo, a luta é para que o cidadão se aproprie responsavelmente do que está em jogo em sua vida, usufrua dos benefícios e sofra também as consequências de sua parcimônia.
Nos tempos atuais, o que implica ser rebelde?
Não seguir as chaves da cultura contemporânea. Sou filosoficamente destoante, uma espécie de neoestoico com definições terminantes. Pobre é aquele que precisa de muito. Se você precisa de muito, está frito, pois não vai conseguir nada. Ou, como dizem os aimaras: pobre é aquele que não tem comunidade. Eu sou rico, tenho muitos companheiros e para viver tenho de sobra.