SSB
26/11/2020

A antropóloga franciscana Moema Miranda faz uma “síntese poética” da mais nova encíclica do papa Francisco, Frattelli Tutti e de como ela pode reverberar na sociedade, em conexão com a Laudato Sì

Karla Maria |6ª Semana Social Brasileira

Moema Miranda é antropóloga, leiga franciscana, secretária da Rede Igrejas e Mineração, assessora da Comissão Episcopal Pastoral Especial para Ecologia Integral e Mineração e da Rede Eclesial da Pan-Amazônia, a Repam-Brasil. Nesta conversa, feita por meio de plataforma digital, Moema faz uma análise cuidadosa da encíclica Fratelli Tutti, a terceira do pontificado do papa Francisco.

Contemporânea, a mensagem do papa extrapola fronteiras e toca em temas inerentes a todos nós, como as crises ambientais, política e econômica, os impactos da pandemia de Covid-19 e outra mais estrutural, que atravessa a humanidade e se espreita nas fraquezas humanas torturando homens e mulheres pretas. “O racismo é um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita”, escreve o papa no parágrafo 97.

Moema Miranda foi uma das 19 brasileiras que participaram do Sínodo para a Amazônia, como perita auxiliou contribuiu com reflexões e discussões | Foto Site Franciscanos.org.br


Confira a entrevista e deixe-se orientar pela lente também franciscana de Moema Miranda.

Qual o valor, o peso da Fratelli Tutti para os que lutam por uma sociedade justa e sustentável? Ela aponta um caminho socioambiental adotado pelo papa Francisco?
Nós que viemos do campo socioambiental, essa construção recente da Igreja, aguardamos a encíclica Laudato Sí como se fosse um oásis. A Laudato Sí foi e é um documento revolucionário, no sentido de que a revolução é aquela coisa que mexe, abre e remexe um determinado processo, um caminho milenar. Certamente, da modernidade para cá, a Laudato Sí mostrou-se como uma ruptura com o que era a visão de sistema do mundo, uma visão que a modernidade consolidou em certo diálogo com uma leitura bíblica particular do mundo pensado como um mundo mecânico, sendo a natureza uma coisa distinta de nós.

A Encíclica Laudato Sí é revolucionária justamente porque revolve essa concepção e retoma a ideia sistêmica de que nós somos terra, natureza, e mais, a ideia de que a casa é uma casa viva, que não existe um mecanismo, a ideia que vem desde lá de (Isaac) Newton (cientista inglês [1643-1727]) de que a natureza é um mecanismo que o grande arquiteto construiu e que depois elavai funcionando.

A gente pode fazer uma leitura com leis matemáticas de como a natureza funciona. Esse momento que nós estamos vivendo em que o aprofundamento do nosso modo de vida interfere no funcionamento das estruturas do planeta revela também isso que os povos sempre souberam. É isso que o papa Francisco, em diálogo com o que tem de ciência de ponta, assume como um discurso da mais alta instância da Igreja Católica. Claro que na América Latina a gente já tinha um caminho percorrido, mas que o papa Francisco diga isso e assuma como Doutrina Social da Igreja a Laudato Sí é de fato uma demarcação de caminho.

Neste caminho chega aFratelli Tutti...
Ela vem nesse grande caminho, nesse processo de encontro. A Laudato Sí tinha sido escrita em 2015, na véspera da COP 21 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2015, realizada em Paris), o último encontro que tentou fazer um acordo internacional em relação às questões climáticas e o aquecimento global, e depois disso foi eleito o presidente Donald Trump, que saiu do acordo de Paris, então toda a expectativa gerada ali sofreu uma tremenda frustração. A pandemia acontece em 2020 e, embora tenha pego todos de surpresa, ela não é um acidente de percurso, e isso é muito importante que a gente compreenda. Ela é o resultado cumulativo daquelas escolhas que já em 2015 estavam evidentes, que iam levar ao mundo para um colapso ambiental.

O papa Francisco cita a pandemia de Covid-19 em sua encíclica e fala que ela mostrou “nossas falsas seguranças” e a incapacidade de os países agirem em conjunto”...
A pandemia provoca não só uma crise como uma coisa que é facilmente superada, mas de fato uma mutação do planeta Terra, que é esse organismo vivo que começa a entrar em esgotamento, em possibilidade efetiva de degradação das condições de vida, que é o mais provável, uma degradação em que o planeta vai ficar cada vez mais quente, poluído e devastado, numa degradação das condições de vida, incluindo a possibilidade real de extinção, de extermínio.

Neste momento a pandemia revela essa dinâmica que já estava dada e o grande investimento no negacionismo dos setores que não querem mudança. As fake news fizeram com que a pandemia viesse ao que parece de uma forma surpreendente, mas que já estava dada. [...] E neste momento, em que essa dinâmica é empurrada pela dinâmica da economia globalizada, economia de mercado, a tecnociência, o papa Francisco se coloca como o grande pontífice, que faz a ponte, as vinculações, que faz a possibilidade de ligação como uma alternativa a esse roteiro ecocida, genocida e suicida.

A ideia de que os muito ricos têm de que eles podem fechar o mundinho deles e deixar o resto do mundo sem mundo é suicida, e a gente já viveu outras experiências de Estados suicidários, como na Alemanha. Não é que estejamos reproduzindo aquilo, mas é para sabermos que a loucura humana pode chegar a esse ponto, como disse outro dia (o filósofo chileno Vladimir) Safatle em um artigo em que falava de um telegrama de Hitler: “se perdermos a guerra, que pereça a nação”. É muito sério o que estamos vivendo hoje.

A Fratelli Tutti, assinada por Francisco no Dia de São Francisco,soa como um chamado ao diálogo com a ciência, com a prática da fraternidade universal. Fala de amizade social, e isso em um cenário de negação do diálogo, de individualismo e tanta injustiça social. Estamos falando de utopias?
A Laudato Sí já tinha ido às causas, às origens, às raízes dessa situação, de novo abrindo o diálogo tão importante entre ciência e fé.Vamos lembrar que esse diálogo desde Galileu Galilei (físico italiano [1564-1642]) estava suspenso. Trata-se do tempo de Giordano Bruno (teólogo, filósofo e frade dominicano italiano executado na fogueira por heresia em 1600, em Roma), e o papaFrancisco na Fratelli Tutti abre essa conexão: tudo está interligado, nós estamos vivendo uma crise socioambiental. Ele chama à reflexão sobre a Fraternidade Universal, que significa nós como seres humanos abrindo nosso espectro de referência, então não só a fraternidade intra-humana, não só o antropocentrismo, a centralidade do humano, mas ao contrário, nós irmãos das estrelas, da água, dos rios. Nós que temos que nos salvar junto com as abelhas, os cães e gatos. Não tem mundo para a gente se não tiver também mundo para as florestas.

Exige da civilização uma nova visão, não?
Exige de nós uma nova visão cósmica, uma nova visão política. Uma nova cosmopolítica. Na Fratelli Tutti ele (papa) pergunta: como é que estamos nós entre os humanos? Uma das questões fundamentais deste processo, e o que papa Francisco vai chamar atenção na Fratelli Tutti, é justamente que a gente perdeu o horizonte de uma história comum, de um mundo compartilhado.

O livro Onde Aterrar? de Bruno Latur (antropólogo francês), mostra como a eleição do Trump revela e torna evidente essa percepção das elites quando elas se dão conta de que não tem mundo para todo mundo dentro da ideia do mercado, e eles simplesmente decidem fechar o muro e fazer o breque – como dizem os paulistas – no processo de globalização e voltar para trás. Só que voltar para onde? Porque já não tem mais uma economia nacionalizada como tinha antes da 2ª Guerra Mundial, em que você podia fechar suas fronteiras e viver sozinho, não tem mais esse Estado Nacional Soberano autônomo, dono de si mesmo, com todo o processo de globalização que tinha sido feito, com todo processo de desregulamentação dos mercados, de quebra e desmantelamento dos Estados Nacionais [..] Então, Bruno Latur diz que nós estamos como em uma nave parada no ar, sem saber se a gente pode ir para o projeto de globalização neoliberal, porque não cabe todo mundo e não adianta tentar voltar, já que não tem onde aterrissar. Estamosparados no ar literalmente. E aí o Bruno Latur diz que essa falta de mundo comum está desnorteando a gente, porque antes, com tudo que a gente soube que era mentira, os EUA tinham pelo menos uma retórica universal: queremos democracia no Irã, tudo bem, o que eles queriam era petróleo, mas tinha um discurso, agora não tem mais essa retórica de mundo comum.

Aí o papa Francisco na Fratelli Tutti parte desse lugar, de dizer que de fato se a gente não tiver um horizonte histórico, não tiver a concepção de que nós somos um destino comum no planeta e que não dá para pensar que vão se salvar só os muito ricos, sem esse horizonte a gente entra em uma rota de colisão com a gente mesmo, que é o que está acontecendo.

Então ele começa a fazer esse estudo em profundidade, de quais são as dinâmicas que levam a essa degenerescência de uma história comum, de um mundo compartilhando, do sentido de pertencimento a algo que é maior que a somatória das partes, uma ideia de humanidade que com a Carta dos Direitos Humanos ficou consolidada. Essa ideia foi se perdendo.

Especialmente nos países colonizados...
Nos países colonizados, e no Brasil em particular, e o que a gente está vendo no Brasil hoje é dramático. Há essa ideia colonialista de que existem duas espécies: gente que é gente, e gente que é coisa. Gente que está aí para servir, gente que é menos gente, que pode ser batida no supermercado, matada, e que não tem nada, porque é a defesa da ordem. Isso é impressionante, dramático e resiliente.

Nesse momento em que toda a ideia da inclusão pelo mercado cai por terra, há a disputa entre os recém-incluídos e ela é dramática, porque impede o que o papa Francisco chama na Fratelli Tutti desse vínculo intrínseco que parte da dignidade inalienável de toda a pessoa humana. Uma dignidade que não está mediada pelo mercado, não está definida por valor de nada, ela é porque é.

Para além da disputa dos recém-incluídos, há os que nunca foram incluídos e são guardiões da natureza, como os povos indígenas que em suas terras são vistos como obstáculos para o mercado. Ao tratar em sua encíclica das consequências desse modelo neoliberal, qual é ou deveria ser o impacto prático da encíclica do papa nesse mercado?
Eu sou franciscana da ordem secular, e isso significa que eu vejo o mundo e falo o mundo a partir de um lugar. São Francisco disse: a gente vai ser pobre, não é que agente vai fazer caridade ou tirar os pobres da pobreza. Vamos ser pobres, porque nesse mundo a forma de ser é a forma da abundância que vem da dádiva de Deus, que são os povos indígenas, os povos da abundância, e justamente por isso eles não são os povos nem da pobreza e nem da riqueza, eles são os povos da não acumulação.

O jesuíta(espanhol) Santo Inácio (de Loyola [1491-1556]) tem uma perspectiva muito interessante. Ele é um santo da modernidade, de 1400, da descoberta de um mundo novo, já no começo da Reforma, e a Companhia de Jesus nasce nessa ambiência.Santo Inácio acha que é muito importante educar as elites, que as elites tendo consciência e fazendo um processo de compreensão têm um papel essencial em conduzir um mundo para uma forma melhor. Não à toa os jesuítas têm muitas escolas de excelência, por esse empenho na educação das elites. Eu não vou dizer que não acredito que as elites educadas possam ser bem intencionadas, mas nenhum processo de justiça no mundo foi construído porque as elites se convenceram de que os pobres tinham direitos. Foi sempre resultado da organização, da mobilização. Claro que em 1400 era diferente do que foi depois, com a Revolução Francesa, mas é sempre resultado de um ganho de consciência de direitos que vem desses povos oprimidos e marginalizados.

No capitalismo não é diferente. Pode ter impacto no mercado? Pode, a partir do ganho de consciência, da leitura de mundo e compreensão e pelas novas alianças que a gente vai começar a fazer. Alianças que antes eram mais inéditas, por exemplo, entre cientistas, artistas e indígenas.Isso há 50 anos era muito raro, porque os indígenas eram algo que deveria ser integrado ao mercado. Hoje você já tem toda uma gama importante dos cientistas que entendem que os indígenas são a memória do futuro e não uma conexão atávica com um passado que foi superado.

A Igreja, com o papa Francisco vem afirmar isso, afirma que os indígenas são protagonistas, têm memória de futuro. Eles são um caminho.

A Fratelli Tutti vem ajudar essas pessoas, esses grupos.A Igreja pode ampliar seus espectros de compreensão, a necessidade de novas alianças e a perspectiva de vínculos inéditos e criativos. O papa Francisco diz que a nossa realidade é sombria.

O que aconteceu com George Floyd nos EUA foi uma coisa impressionante, porque aparentemente era mais um negro sendo morto por mais um policial branco, mas de repente você tem um click e os jovens negros começam a dizer: espera aí, isso é sistêmico, existe uma supremacia branca, não é um policial mal treinado. O que está acontecendo no Carrefournão é só aquele policial, é aquele policial também. Eu sou super a favor do boicote ao Carrefour. Resolve o capitalismo? Não, mas ganha consciência.

Falando em consciência no e do mercado, em seu parágrafo 77 a encíclica aponta: “persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo econômico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem”. Observamos que o que estarreceu o Carrefour como empresa em si foi o fechamento das lojas e a queda nas vendas naqueles dias...
Sim, e isso é muito efêmero. Nós como rede de Igrejas e mineração, e também pela Comissão Episcopal, acompanhamos o crime da Vale de Brumadinho e em Mariana: é algo impressionante. Morreram 300 pessoas, destruiu o rio, devastou, e a empresa não parou um dia de trabalhar, de minerar. Você olha as propagandas na televisão e quase diz: olha, eu também quero ser a Vale. É impressionante a capacidade de mentira. E aí o papa volta a isso na Fratelli Tutti, ele é muito contemporâneo. Faz uma leitura jesuíta com lente franciscana. Ele é muito preciso, exato nas coisas que fala e nas coisas que exige que a gente olhe. [...] A Fratelli Tutti tem um papel importante para afetar o mercado na medida em que ela fortalece um sentido novo e que ela reforça um elemento que o papa Francisco foi extremamente preciso em diagnosticar, que é a desqualificação da política como esfera de atuação.

[...] O papa Francisco diz que são os vínculos entre nós que nos humanizam, nós somos porque somos na relação. Somos povos com memórias, com histórias, com coisas que não podem ser compradas e nem vendidas, que têm dignidade inalienável.

A ideia da dignidade é muito presente na Fratelli Tutti...
Sim, porque no mundo do capital tudo vira valor, pode ser comprado e vendido, e o papa Francisco diz que há coisas que não entram nessa métrica. O mercado não pode ser a instância organizadora da vida social.

O papa também toca em questões muito práticas do dia a dia, como as relações laborais. No parágrafo 20 ele escreve sobre a “obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca...”. Se confrontarmos essa encíclica com as reformas trabalhistas feitas recentemente no Brasil, ela se apresenta como uma crítica ao modelo que vivemos, não?
Exatamente, e por isso é tão bonito que ele traga o diálogo com os movimentos sociais para dentro da Fratelli Tutti. Terra, teto e trabalho entram na Fratelli Tutti justamente por essa praticidade. Desde a Laudato Sí há mais diálogo com os movimentos sociais. Há um reconhecimento do papel de sujeito dos movimentos sociais em um documento da Igreja, e isso é extremamente importante.

O papa Francisco provoca uma reflexão à prática da fé?
Ele diz tanto na Fratelli Tutti quanto na Laudato Sí que a fé é uma epistemologia, uma forma de conhecer, de ler o mundo, uma forma de compreender a realidade. A fé não é uma dimensão individual, que vou lá e faço a minha oração. A fé me ajuda a ver o mundo com outros olhos.

Essa forma de ver o mundo não é universal dentro da própria Igreja Católica. O que o papa está dizendo especificamente para os seus fiéis, pensando também na imensa distinção desse público?
Essa é uma pergunta muito importante. Como nós não estamos predeterminados a fazer o bem, como as abelhas estão predeterminadas a fazer o mel, seguir Jesus é uma escolha de todo dia, de cada instante, e a forma como a gente acha que segue Jesus também. Ele é o caminho, a verdade e a vida, mas sou eu que leio o caminho, que entendo a verdade e escolho a vida. É um processo de conversão interna e,se conseguirmos na Igreja Católica criar espaços para os diálogos honestos e profundos, já teremos feito um grande favor.

Eu posso não ser da Renovação Carismática, não me identificar, mas eu defendo que a Renovação é uma forma de expressão dessa verdade: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, dita por Jesus. Nós franciscanos seguimos o Evangelho ao modo de São Francisco, mas não é a única forma. Há muitos carismas, e que bom que existam. O que é impossível é a intolerância que gera a esterilidade da diversidade da presença do carisma. A intolerância é correlata ao medo, ao assassinato, ao extermínio, ao impedimento da vida.

No parágrafo 220, a Fratelli Tutti traz “A intolerância e o desprezo perante as culturas populares indígenas são uma verdadeira forma de violência, própria dos especialistas em ética sem bondade que vivem julgando os outros”. Como você avalia os impactos da encíclica na defesa desses povos?
Não à toa, quando o papa Francisco fez o Sínodo para a Amazônia, ele disse em Puerto Maldonado que nunca os povos indígenas estiveram tão ameaçados quanto estão agora. Acho que o processo do Sínodo para a Amazônia foi muito importante no sentido de aprofundar a compreensão do papa Francisco no diálogo com os indígenas. [...] Toda a valorização da diversidade que a gente vê na Laudato Sí vem muito em sintonia com isso. A valorização de que nós somos diversos, de que os povos e que a diversidade é fundamental, que a homogeneização do mercado é fatal, mortífera. [...] Quanto mais diverso, mais divino, por isso a defesa intransigente que ele faz da diversidade, da valorização profunda da cultura como criação de identidade, da ideia que ele defende de um populismo no sentido de pertença a um povo. Não só o povo brasileiro, mas o povo ianomâmi, o povo caiapó...

E sobre nós mulheres, o que podemos destacar da Fratelli Tutti? Há sempre muita ansiedade sobre o que dizem os documentos do papa Francisco a respeito do papel das mulheres na Igreja...
Amo o papa Francisco e tudo o que ele tem feito. A presença dele é um grande sopro do Espírito, mas eu acho que falta muito para ficar mais ou menos bem em relação ao tema das mulheres. Outro dia eu estava dizendo: como ele está seguindo São Francisco de Assis de um jeito jesuíta, certamente vai encontrar com Clara (santa), e se deixar comover por essa realidade, porque se teve um homem que não teve medo dessa dimensão feminina foi São Francisco de Assis. [...] A Fratelli Tutti fala sobre mulheres no parágrafo 28, e fala que são as que mais sofrem, mas deveríamos aparecer como as que mais sofrem e as que mais lutam, as que estão à frente dos movimentos sociais liderando os movimentos em defesa da vida. Infelizmente isso ainda falta, e falo de uma maneira muito fraterna.

Não adianta a gente ficar fazendo uma hermenêutica de tentar encontrar pingo de letra onde ele falou das mulheres. Ele falou muito menos do que a realidade é. Nós somos e estamos na Igreja e na sociedade, no lugar que a Igreja precisa acolher. Precisa reconhecer e não é favor nenhum, é simplesmente uma questão de justiça, e acho que isso fragiliza o papa Francisco, porque na medida em que ele fala para fora, ele tem que ter uma coerência de fazer para dentro. Mas eu também entendo que a batalha é muito dura, e que ele está com muitas frentes de conflito. Ele tem muitas divergências e muitos inimigos, então eu entendo, mas espero e confio que ele entre em um processo de conversão em relação ao tema das mulheres.

No finalzinho da encíclica, o papa escreve que foi motivado por São Francisco de Assis, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi e muitos outros não-católicos. O que ele está fazendo aqui? Qual a mensagem?
É justamente o reconhecimento do diálogo como caminho para a construção dessa reconstrução dos vínculos humanos. Ele está dizendo que o fundamental é que a gente se reconecte, que é essa a essência, e não de uma afirmação do indivíduo.

Ele está chamando à construção de vínculos sociais e dizendo que isso não pode ser feito somente pra dentro da Igreja, que não pode ser uma questão identitária. Quem tem identidade afirmada não precisa negar a identidade dos outros, ao contrário. Só as pessoas que são inseguras em relação à sua identidade precisam impedir que os outros sejam pra se afirmar.

Na medida em que o papa Francisco, líder da Igreja, diz: a minha espiritualidade, identidade e pertença religiosa está tranquila dentro de mim, então eu dialogo sem medo. Foi um pouco o que São Francisco fez quando foi conversar com o sultão, e por isso esse movimento é lembrado na Fratelli Tutti. O diálogo faz um cristão e um mulçumano melhores. O diálogo é esse espaço que faz com que cada um seja melhor naquilo que é.

Essa é a ideia de que não há disputa entre o todo e a parte, que o pleno desenvolvimento do humano é a alegria de Deus. A lógica da competição de que pra eu brilhar preciso te apagar, é o inverso dessa dinâmica do papa Francisco, que diz: eu tenho a luz do Evangelho na forma de ler e compreender da Igreja Católica e por isso essa luz se aproxima de Martin Luther King, de Desmond Tutu, de São Francisco de Assis, se aproxima também de outros que não têm a identidade cristã, mas que têm em consonância o sentido profundo da vida: a inalienável dignidade da criação e de todas as criaturas.

O que ele nos ensina é que nós somos mais e melhor do que nós mesmos quando somos abertos ao que os outros são. Somos mais e melhor, do que nós mesmos, quando somos abertos ao que os outros são.