Flavio Aguiar
05/07/2022

Em 1930, levante conduziu Vargas ao poder. Anos mais tarde, ele próprio fecha o Congresso e lança o “Estado Novo”, sob alegação de “ameaça comunista”. Mas seria deposto ao fim da II Guerra, pelas elites antitrabalhistas e pelos generais

Desfile em celebração do dia 1º de maio no Estádio de São Januário, 1942. | Foto: Acervo FGV-CPDOC

Por Flavio Aguiar | Outras Palavras

Este é o segundo artigo de uma série de seis, leia o primeiro aqui

Durante a Primeira República ou República Velha a questão social foi um caso de polícia, sabemos disto. Levantar o número de sedições, levantes, revoltas, fraudes eleitorais, bandidagens políticas, etc., não caberia nesta página.

Vou lembrar apenas uma história familiar, como ilustração do que estou dizendo. Na primeira vez em que meu pai foi votar, ele dirigiu-se ao local da votação, que ficava num asilo de velhos perto de onde ele morava. Depois do portal de entrada, havia uma escadaria. No alto, no último degrau, estava de pé um gauchão todo paramentado, de bigodão, chapéu de aba larga e um poncho enorme que lhe descia abaixo do joelho. Ao lado dele, um livrão aberto. Meu pai subiu, se dirigiu a ele e disse que viera votar. Com muita cordialidade e uma unha suja, o emponchado apontou-lhe uma linha no livrão e disse: “pois não, o senhor assine aqui”. Assinado o livrão, meu pai perguntou ao bigodão: “e agora, onde eu voto?” “Muito obrigado”, veio a resposta, “o senhor já votou; pode ir”. Sem mais aquela, o meu pai deu a meia-volta e se foi escada abaixo. Sabe-se lá o que o tipo tinha debaixo do poncho.

Bom, isto aconteceu em 1933, já depois da Revolução de 30 e da promulgação do Código Eleitoral pelo governo de Vargas, em 1932. A prática do voto secreto acabara de ser adotada. Tanto que meu pai jamais soube em quem votara. A herança dos tempos da República Velha ou Primeira, continuava valendo. As coisas, parece, só começaram de fato a melhorar a partir de 1934. Foi quando minha mãe tirou seu primeiro título de eleitor, relíquia que ainda tenho guardada.

Por falar em Revolução de 30, esta começou com um levante armado de grande popularidade e acabou – talvez como não pudesse deixar de ser – num golpe militar. O levante começou em 3 de outubro de 1930, em vários estados do país. O principal teatro de operações foi Porto Alegre, onde, às 17h30, os revoltosos investiram contra o Quartel General do Exército na rua dos Andradas, mais conhecida até hoje como rua da Praia, tomando-o na sequência. Durante a noite outras guarnições foram atacadas e tomadas; na manhã seguinte os revoltosos dominavam a cidade. Minha mãe me contou que ela, seus seis irmãos e os pais, que moravam perto de um dos quartéis, dormiram embaixo das camas naquela noite, tal a fuzilaria que ouviam.

Nos dias que se seguiram o movimento foi bem-sucedido no Norte (hoje Nordeste) do país e em Minas Gerais, recebendo a adesão de forças militares federais ou estaduais em outros estados, e também, de um modo geral, da população civil.

Uma coluna militar, sob o comando do general Góis Monteiro, saiu de Porto Alegre em direção ao Rio de Janeiro, assumindo logo o controle dos governos de Santa Catarina e do Paraná. Ameaçados pela possibilidade de verem em frangalhos e derrotadas as Forças Armadas, chefes militares do Rio de Janeiro assumiram o comando da cidade e depuseram o presidente Washington Luís em 24 de outubro, 24 dias antes do término de seu mandato. Formaram uma Junta Militar que se autodenominou “Pacificadora”: eram dois generais – o maranhense Augusto Tasso Fragoso, que era Chefe do Estado Maior do Exército, o gaúcho João de Deus Menna Barreto, que fora eleito presidente do Clube Militar em 1926 – e o almirante carioca José Isaías de Noronha.

A Junta Militar entregou o poder a Getúlio Vargas em 3 de novembro.

Depois de preso no Forte de Copacabana, Washington Luís seguiu para o exílio, primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa, de onde só retornou ao Brasil em 1947. Consta na minha história familiar que quem pilotou o avião que o levou para os Estados Unidos foi um tio político de meu pai, casado com uma irmã de minha avó paterna. Acompanhando o ex-presidente nos Estados Unidos encantou-se com o país e o cinema norte-americano, a tal ponto que, retornando ao Brasil e casando-se, deu a seu único filho o nome de Warner, em homenagem à Warner Bros. Não comprovei se de fato ele foi o piloto do avião, mas que acompanhou Washington Luís, acompanhou; a prova era o “primo Warner”, que cheguei a conhecer na primeira vez que estive em São Paulo, em 1965, voltando de bolsa de estudos nos Estados Unidos.

Bom, retornando ao fio de nossa meada ou labirinto, as promessas democráticas de 1930 começaram a se apagar com a repressão ao levante comunista de 1935 e se esfumaram de vez em novembro de 1937, quando Vargas e os comandantes militares fecharam o Congresso em novo golpe, instituindo o Estado Novo, que durou até outubro de 1945. Vargas outorgou ao país nova Constituição, conhecida como “Polaca”. A Carta Magna teve três votos a seu favor: de Francisco Campos, ministro da Justiça, que a redigiu; de Vargas e de Eurico Gaspar Dutra, que era o ministro da Guerra, como se denominava então o chefe do Exército: 3 x 0, uma goleada.

Um dos motivos do golpe foi um documento forjado, o plano Cohen, que detalhava uma suposta nova tentativa dos comunistas de tomarem o poder. Participaram da fraude os generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra. Góis atribuiu a autoria do documento, detalhando supostas atividades patrocinadas pela Internacional Comunista (Komintern), como greves e agitações de rua, ao na época capitão Olímpio Mourão Filho, secretário do serviço de informações da Ação Integralista Brasileira. O nome “Cohen” se deve a um erro de datilografia. A primeira autoria do documento fraudulento fora atribuída ao comunista húngaro Bela Kun, que alguns anticomunistas brasileiros diziam “Cohen”. Provavelmente o datilógrafo do plano era um deles. Kun tinha ascendência judaica: a fraude do “Plano Cohen” reuniu o anticomunismo e o vigente antissemitismo.

Houve algum esboço de resistência logo depois do golpe, rapidamente debelada. A maior resistência viria da extrema direita, através dos dois levantes da Ação Integralista Brasileira, em março e maio de 1938. Ambas falharam pela baixa adesão de militares. Na mais séria, a de maio, chegou a haver luta armada em torno do Palácio Guanabara, onde se encontravam Getúlio e familiares. Houve mortos de ambos os lados do confronto, constando que algum dos chefes integralistas foram fuzilados depois de detidos.

Seu líder máximo, Plínio Salgado, que apoiara o golpe de novembro de 1937, terminou preso e exilado em Portugal, de onde só retornou depois da queda de Vargas. O fracasso das tentativas se deve à falta de adesão por parte de forças do Exército, com que os integralistas contavam. A AIB passara a se opor ao governo porque este proibira todos os partidos e movimentos políticos.

Getúlio Vargas só caiu em 1945 através de um novo golpe de Estado também hoje controverso. A oposição civil ao Estado Novo, liberal e de esquerda conjugadas, crescera bastante; mas para depor Vargas foi necessário que novamente os tanques desfilassem pelas ruas do Rio de Janeiro. Digo que o golpe foi “controverso” porque, se de um lado, ele é saudado como “restaurador da democracia”, de outro, fica a nítida marca que Vargas foi deposto mais pela direita do que por qualquer sombra de esquerda ou libertária. Seus “movimentos trabalhistas”, que desaguaram na CLT, de 1943, desagradavam o empresariado, os liberais e também as esquerdas, que sentiam que Vargas lhes “usurpava as massas”.

O fato é que, deposto, Vargas retirou-se para sua estância em São Borja, de onde, de certo modo, continuou a comandar a política nacional, ajudando, por exemplo, a derrotar o brigadeiro Eduardo Gomes na eleição presidencial, pelo apoio dado ao general Eurico Gaspar Dutra – um dos que o depuseram em 45…

A campanha de 45, feita às pressas, foi das mais curiosas e cafonas da história. Um dos lemas da campanha de Eduardo Gomes era: “vote no Brigadeiro, que é bonito e é solteiro”. Para financiar sua campanha, mocinhas casadoiras fabricavam o famoso docinho de chocolate que ficou com seu nome de campanha – “brigadeiro” – em todo o país, exceto no Rio Grande do Sul, onde até hoje é conhecido como “negrinho”. Ele era o favorito e tinha o apoio da imprensa conservadora.

Entretanto ao final da campanha, convencido pelo empresário paulista Hugo Borghi, que liderara um movimento pela permanência de Getúlio no poder (o “Queremismo”, do lema “Queremos Getúlio”), Getúlio Vargas deu seu apoio público ao general Eurico Gaspar Dutra, que liderara, com o general Góis Monteiro, o golpe que o derrubara… Os ventos viraram e Eurico Dutra venceu a eleição por uma diferença de mais de um milhão de votos, o que na época, era enorme. Os trabalhadores urbanos votaram maciçamente nele.

E Vargas voltaria ao poder na eleição de 1950, desta vez como um líder popular da nova classe trabalhadora que passava a liderar. Derrotou mais uma vez o brigadeiro Eduardo Gomes, desta vez diretamente.

Vargas tomou posse, já sob a ameaça de novo golpe de Estado, consubstanciada na célebre frase de Carlos Lacerda: “o senhor Getúlio não deve se candidatar a presidente; se for candidato não deve ser eleito; se for eleito, não deve tomar posse; se tomar posse não pode governar”. A UDN e seu líder declaravam uma guerra sem quartel contra Vargas.