No terceiro módulo do curso "Teto: Direito à cidade e segurança alimentar" trabalhamos o tema "Habitação e Políticas Públicas". Confira abaixo o debate.
Por Ilanyr Felipe | 6ªSSBCursos
Habitação e Políticas Públicas foi o tema do 3º módulo do curso Teto: Direito à Cidade e Segurança Alimentar. Ajudaram da reflexão Evaniza Rodrigues, mestre em Arquitetura e Urbanismo e militante da União Nacional por Moradia Popular e Ricardo de Gouvêa Corrêa, Arquiteto Urbanista, com experiência em projetos de Produção Social da Moradia, Regularização Fundiária, Oposição a Despejos e em Políticas Públicas de Habitação de Interesse Social.
Ricardo de Gouvêa Corrêa iniciou à aula falando das três formas de produção social sobre o habitat: produção estatal, produção pelo mercado, produção social do habitat. Para entender melhor essas formas, Ricardo nos levou aos séculos IX-XX, um cenário que não se pode ser deletado da história: o início das senzalas e a “libertação” das pessoas escravizadas x escravização da terra.
Com isso, ocorreu o surgimento dos cortiços, favelas e ocupações informal, por ausência de políticas públicas. Ricardo, citando a professora Ermínia Maricato, afirma “se trocou um tipo de escravidão por outra que foi a escravização da terra”. “O estatuto da terra, vetou o direito a terra”, ressalta Ricardo.
A partir dos parágrafos seguintes, transcrevemos a fala de Ricardo e vamos colocar na íntegra. Assim como ele nos conduziu, no decorrer da aula, no dia 23 de setembro de 2021.
Naquele século [IX-XX] o Brasil era predominantemente rural e a população muito pobre, então essa foi a partida para o surgimento dos cortiços, favelas. Por tantas rotas do Brasil e, sobretudo, a moradia, temos 338 anos de escravidão, 322 anos como colônia Portuguesa, e a Lei da Terra, de 1850, apesar de não ter uma cláusula especifica proibindo a população mais pobre, que os “libertos” tivesse acesso à terra, ela significou uma vedação a terra, seja rural ou urbana, tivéssemos feito naquela época uma reforma agrária, certamente teríamos uma outra realidade, é o que a professora Ermínia chama de “nó da terra”. Esse nó começou ali e continua até hoje. Pois em seguida o Brasil viveu a realidade das reformas urbanas, dos despejos, dos cortiços. Acredita-se historicamente que a primeira favela foi o morro da providência/morro da favela no Rio de Janeiro. A favela da Mangueira – RJ, na sua origem eram comerciantes, muitos deles portugueses, que pegava sua poupança e começava a construir quartinhos, cortiços, pequenas residências e alugar para rentabilizar sua poupança.
A partir do primeiro Governo Vargas há uma reversão, com a intensificação da industrialização, uma migração muito forte, crescimento populacional. Então surge a Lei do inquilinato, que serviu para drenar a poupança dos pequenos ou médios comerciantes através dos aluguéis, que agora passa a financiar a industrialização congelando os aluguéis. Nasce também os Institutos de Previdência IAP’s, na época tinha a centralização da previdência dos trabalhadores, o INSS, que era organizado por categoria profissionais, comerciários, operários da indústria etc. Importante destacar que de 1950 até 2000 o Brasil foi de 36% para 81% da sua população vivendo nas cidades, de 19 milhões para 137 milhões, isso significou 118 milhões de pessoas que em cinquenta anos nasceram ou migraram para a cidade. Isso corresponde uma França ou Alemanha atuais juntas. Esse crescimento vertiginoso com ausência de políticas públicas para a população mais pobre engendrou as ocupações precárias que conhecemos até hoje.
Nesse período houve uma produção pouco expressiva por institutos de previdência e houve a fundação da Casa Popular, ou seja, o início da Produção Estatal, a primeira institucionalização se dá por esta Casa, que teve uma produção muito residual. Intensificam-se as remoções a partir do momento que as cidades foram crescendo e isso para ter valor à produção imobiliária, a população vai sendo removida.
Autoconstrução
Com isso foi muito forte o vetor do mercado imobiliário. Em 1964, na criação do BNH (Instituto de Propriedade), Sandra Cavalcante, a primeira presidente defendeu o trabalhador dizendo “ao fazer do trabalhador um proprietário ele se veria desmotivado a aderir a teses comunistas”. A propriedade desenvolveu um componente muito forte e ideológico no nascimento do Regime Militar. Seguiu-se o parcelamento do solo nas periferias e a explosão da autoconstrução. Na ausência de políticas públicas cresceu vertiginosamente a população e esta foi encontrando um caminho através da autoconstrução. Lembrando que os IAP’s criados em 1937-1964 eram responsáveis pelas pensões, saúde, previdência, habitação e foi à primeira rede de proteção do país, porém era só para empregados urbanos formais (minoria) e excluídos trabalhadores rurais, domésticos e informais (maioria).
A Fundação Casa Popular, 1946-1964, foi criada para unificar a Política Habitacional Popular e produzir moradia para todos os moradores de baixa renda. Nesse período foram construídas 140.000 mil novas unidades que abrigaram 900.000 mil pessoas. As cidades receberam 23.6 milhões de novos moradores entre 1940-1970. Significa que essa produção representou apenas 4% do que foi construído na cidade. É importante ressaltar que a produção de IAP’s não teve uma relevância quantitativa, mas qualitativa, tanto é que no Rio de Janeiro, o conjunto Pedregulho é considerado internacionalmente arquitetura moderna que foi produzida pela FCP e abrigava uma moradia de qualidade, escola, piscina, centro de saúde e recreativo.
Com os governos militares – 1964-1986, tivemos a criação do Sistema Financeiro de Habitação (FGTS – SBPE), que era financiado por duas fontes, o fundo de garantia por tempo de serviço e o sistema brasileiro de poupança e empréstimo. O SBPE para financiar a população de média e renda alta, e o Fundo de Garantia, a população de baixa renda, mas não foi o que aconteceu, com o golpe militar se dá o fechamento dos IAP’s por uma questão ideológica, por haver um protagonismo. O BNH construiu 4,5 milhões de unidades: 1, 5% de até seis salários-mínimos (30%) e 250 mil de até 3 salários mínimos, que equivale a 6%. Com isso vem o crescimento de favelas e loteamentos irregulares pela ausência de políticas públicas. O BNH serviu muito como apoio as remoções, as favelas nas cidades foram removidas e transferidas para a periferia das cidades como é o caso da Favela do Esqueleto, hoje o bairro do Maracanã.
Nas décadas de 80-90 após o fim dos governos militares se tem início o neoliberalismo (estado mínimo). Se advoca a retirada de serviços e de políticas. Nesse período de auto inflação, o fundo de garantia desaba, seja pelas contribuições seja por sacarem o fundo em função do desemprego, o BNH é fechado e há toda uma retração do SFH Sistema Financeiro de Habitação, aliado a proibição dos municípios e estados a pedirem empréstimos para políticas sociais, sobretudo de habitação, que é uma política cara. Aqui cabe destacar um marco importante que é a constituição de 1988, que é uma constituição que constrói uma série de direitos, desenha uma série de políticas e tem um forte componente municipalista. E no caso da habitação, explode por todos os municípios várias ações, citando alguns exemplos: Orçamento participativo em Porto alegre; Prezeis e Zeis em Recife/Belorizonte, que são as definições de áreas na cidade e planos de interesse social, surge a partir daqui os movimentos sociais por moradia; Políticas específicas de moradia como os FUNAPS comunitários na cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Luiza Erundina. Na Pós Constituição, houve o controle da inflação e a retomada do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Há uma perspectiva da manutenção neoliberal, 70% dos créditos foram individuais, não havia créditos coletivos, eram créditos negociáveis nas agências da Caixa Econômica Federal, e acima de cinco salários-mínimos. Os entes públicos continuaram sem capacidade para tomar empréstimos para a política de habitação. Portanto, a produção ficou apenas com a iniciativa privada. Obviamente que a faixa de cinco salários-mínimos não era rentável. O Estado sem política social de moradia e somente 21% foi destinado para essa faixa com déficit de 81%. Portanto, no final dos anos 90 a produção governamental respondia apenas 16% de toda produção habitacional. Em 2001 vem o Estatuto da Cidade, que este ano completa 20 anos. O Estatuto da Cidade é a denominação oficial da lei 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta o capítulo "Política urbana" da atual Constituição brasileira. Seus princípios básicos são o planejamento participativo e a função social da propriedade. Regulamentou o Capítulo Urbano da Constituição Federal; Função Social da Propriedade, Planos Diretores Participativos, Usucapião Urbano, Instrumentos Urbanísticos.
No século XX, o cenário de 1975 até 2006, 25% da produção foi pelo Sistema Financeiro de habitação da qual incluía a minoria com até cinco salários-mínimos. A produção do mercado chegou a 30%. E a autoconstrução foi responsável por 45%. Há dados da associação do cimento que comprovam que 50% do cimento era comprado nas lojas de varejo, isso pra mostrar a força da autoconstrução. Esse dado levou a grandes irregularidades urbanística, fundiária e ambiental de 30% a 60% das cidades. Duas cidades que estima que foram construídas sem políticas habitacionais, sem terra, sem assistência técnica, sem financiamento, foram Belém (PA) e Recife (PE). Com a ocupação de terras desprezadas pelo mercado, o estado não tem controle sobre o uso e ocupação do solo “a regra é exceção e a exceção é a regra”. A partir de 2003 teve avanços institucionais nos Ministérios das Cidades, Conselhos das Cidades e Conferências das Cidades. Com o governo Luiz Inácio Lula tivemos um avanço no aporte de recursos para moradia: R$ 300 milhões ao ano na década de 90 (OGU Orçamento Geral da União) para R$ 8,8 bilhões ao ano (fundamentalmente OGU para FNHIS, PAC e MCMV faixa 1) mais R$ 20 bilhões ao ano (fundamentalmente FGTS para MCMV faixa 2 e 3). Ou seja, cem vezes mais recursos foram investidos no Minha Casa, Minha Vida. Observe o avanço: 1995-1999: SFH responsável por 16% da produção habitacional; 2009-2016: cerca de 761 mil ao ano, 109% confrontado com o crescimento populacional; 1995-1999: 21% dos recursos até 5 salários-mínimos; 2009-2016: 88% até 6 salários-mínimos e 39% até 3 salários-mínimos. Não podemos deixar de mencionar as fragilidades do projeto: qualidade dos projetos de arquitetura e urbanismo; inserção urbana/direito à cidade; protagonismo privado lucrativo.
Os movimentos populares e moradia
Evaniza Rodrigues, mestre em Arquitetura e Urbanismo e militante da União Nacional por Moradia Popular começou sua fala perguntando: como os movimentos populares têm feito na luta por moradia? E ela segue no debate. Também transcrevemos a partilha de Evaniza, a qual trouxe muitas imagens para nos ajudar na reflexão. Segue abaixo, na íntegra.
Eles não só apontam, mas também mostram como fazem. Cabe ao movimento popular a luta. Moradia é direito, mas para o mercado financeiro é compra. Se nós não encaramos a moradia como direito teremos que comprar. E não é só a moradia, mas a própria cidade acaba sendo uma mercadoria. Vivemos um momento terrível para todas as pessoas que lutam por direitos, um governo de ódio aos pobres: ameaça à democracia; rejeição ao que é diferente; rejeição àquilo que não se quer ver; meritocracia x reparação histórica; corte das políticas públicas; perda de direitos; por outro lado temos um projeto de vida, de sociedade, quando o papa Francisco apresentou esse projeto em um encontro com os movimentos populares. “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”. Sigamos lutando porque acreditamos na cidade como espaço aberto pra vida, do encontro, das oportunidades que as cidades trazem, de convivência, de função social, que os recursos, os bens, os serviços e as oportunidade não pode ser apropriado por um pequeno grupo que concentra riqueza.
Movimento popular, pra quê? Pra mobilizar, organizar, capacitar, elaborar, reivindicar, pressionar, pautar a sociedade, incidir em políticas, participar, realizar, avaliar, articular, celebrar. Fazendo da luta uma pauta da sociedade.
Durante a pandemia se criou uma campanha “Despejo Zero” já que era pra ficar em casa, aumentou o número remoções. A campanha conseguiu reunir universidades, e diversas instituições. Vários estados aprovaram leis, em São Paulo foi vetado, foi aprovado na câmara, no senado, mas o presidente vetou, estamos lutando para que seja derrubado o veto presidencial. A olhos vistos cresceu o número de pessoas morando na rua, muitas dessas pessoas viviam de aluguéis, mas perderam seus empregos. As políticas habitacionais que defendemos: prioriza os excluídos do mercado e dos financiamentos (nossos pobres não passam na porta do banco); garante a moradia com dignidade, independente da renda; respeito a diversidade regional, do tipo de situação, de forma de atendimento; garante recursos orçamentários permanentes; reúne moradia e cidades; participação popular em todas as etapas.
Autogestão na produção habitacional: quem vai morar é o protagonista e tem o poder de decisão, é o sujeito da ação. Que esta comunidade tenha melhoria das capacidades econômica, social e política dos setores populares; empoderamento da comunidade qualificando sua interlocução e a prepara para os enfrentamentos com o poder público; questionamento das estruturas sociais e econômicas, das injustiças sociais e da preponderância dada ao setor privado na produção do espaço construído e da cidade. Para o cursista Irineu Freire, via chat “essa diferença de olhar a moradia dentro de um conjunto de direito que os movimentos trazem para a política de habitação impacta no resultado social e conclusivo dos projetos”. Quando um projeto é feito com a autogestão os ganhos são: projetos com obras de melhor qualidade; mais apropriação das famílias da moradia conquistada; formação de nova comunidade; fortalecimento político e social do grupo. Um exemplo é o projeto “Minha casa minha vida” que o limite é 42 metros e não passa disso, com a autogestão, pelo fato da comunidade não buscar o lucro e sim a qualidade os espaços ficam maiores, pois há participação e mutirão. E a presença da mulher é muito grande nesse processo de autogestão, pensando em projetos que não são hierárquicos, mas coletivos. A tradição do mutirão traz o complemento no orçamento, envolvimento real das famílias no canteiro da obra, a criação de laços solidários e estratégias de ação coletiva. Qual o melhor projeto? Aquele que eu participei.
No governo atual, o projeto Casa Verde e Amarela só pode ser acessado por pessoas que tem renda. E as obras do Minha Casa Minha Vida estão sem terminar. Os movimentos têm discutido que precisa avançar e uma das estratégias é apresentar por meio de uma comissão um projeto de lei que regulamentarize a construção de autogestão. Organizando a resistência e pressão, revisão de propostas e parâmetros, formatos de financiamento, políticas estaduais e municipais, recursos locais, estaduais e municipais. E citou Dito Barbosa: “Enquanto morar for um privilégio. Ocupar é um direito”.