‘Eles iam jogando no camburão quem encontravam na frente’; comunidade Akroá Gamella denuncia truculência policial enquanto organizações criticam governador por omissão diante de recrudescimento da violência no campo
Daniel Camargos e Gisele Lobato | Repórter Brasil
Com a demora do governo para demarcar o território Akroá Gamella, no Maranhão, a região foi palco de mais um episódio de violência nesta semana. Na quinta-feira (18), 16 indígenas foram presos após impedir funcionários da empresa Equatorial Energia de instalarem linhas de transmissão na área. A comunidade acusa a polícia de truculência e reclama da omissão do governo estadual.
A tensão na Terra Indígena Taquaritiua começou na quarta-feira (17), quando os indígenas barraram os empregados da companhia dentro do território, na aldeia Cajueiro.
No dia seguinte, os funcionários voltaram – desta vez acompanhados por dois homens armados. Segundo os indígenas, eram policiais militares à paisana que atuavam como seguranças da Equatorial Energia. “Por uma questão de segurança, autoproteção e legítima defesa pedimos que eles deixassem as armas”, afirma um dos indígenas, que conversou com a Repórter Brasil sob a condição de não ser identificado, pois teme retaliações.
Segundo ele, os indígenas desarmaram os policiais que atuavam como jagunços, sendo que os dois deixaram as armas no chão pacificamente e disseram que eram seguranças contratados pela empresa de energia. Em nota, a Equatorial afirma que os funcionários foram feitos reféns por algumas horas e foram liberados sem ferimentos. A empresa disse também que os policiais foram chamados pelos funcionários e que não eram seguranças particulares.
A Secretaria de Segurança Pública do Maranhão sustenta uma versão semelhante, dizendo que os policiais foram chamados pelos funcionários da empresa e “foram feitos reféns e as armas subtraídas”. Ainda segundo a nota, os policiais não reagiram para evitar confrontos.
O Ministério Público Federal informou que, ao saber do episódio pela imprensa, solicitou informações preliminares à Secretaria de Estado de Segurança Pública e à Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular. O caso foi denunciado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e noticiado na manhã desta sexta pela Ponte. Procurada, a Funai preferiu não responder aos questionamentos da reportagem.
Sem farda
Tanto o indígena entrevistado pela Repórter Brasil quanto o advogado dos Akroá Gamella, Rafael Silva, contestam a versão da Equatorial e do governo maranhense. Dizem que os policiais estavam sem farda e se identificaram apenas como seguranças da empresa. Ambos afirmam que os policiais e o funcionário da Equatorial não foram feitos reféns e que enquanto tratavam com os indígenas puderam usar os celulares e, inclusive, chamaram reforço policial.
Ainda segundo o indígena e o advogado, horas depois do episódio, cerca de 30 policiais militares chegaram na aldeia, revistaram as casas procurando pelas armas e trataram os indígenas com truculência, sendo que 16 foram levados presos, 13 homens e 3 mulheres. “Eles iam jogando no camburão quem encontravam na frente”, relata o indígena.
Os dezesseis presos foram levados primeiro para a delegacia, onde prestaram depoimentos e ficaram perfilados em um corredor para serem reconhecidos. Na madrugada de sexta-feira (19) oito foram liberados. Os outros oito foram acusados de roubo qualificado e dano ao patrimônio e permanecem na penitenciária de Viana, na Baixada Maranhense, distante 217 quilômetros de São Luiz.
O advogado Rafael Silva, que defende os Akroá Gamella, contesta a tipificação de roubo, pois segundo ele, os indígenas devolveram a arma, que retiraram dos seguranças em legítima defesa. Durante o episódio, dois veículos da empresa foram queimados, o que fez com que os indígenas fossem enquadrados também por dano ao patrimônio. A Equatorial acusa os indígenas, mas Silva diz não saber quem queimou os veículos: “as circunstâncias não estão claras”.
Histórico do conflito
Os Akroá Gamella lutam pela demarcação de seu território e aguardam aval da Funai desde 2014. Diante da letargia do órgão, eles decidiram resistir à instalação de linhas de transmissão de energia, que teve início em 2016, para pressionar pela demarcação.
Questionam o fato de o licenciamento da obra ter sido feito em âmbito estadual – e não federal – e a ausência de consulta à comunidade, como é exigido no caso de terras indígenas. Para eles, o procedimento adotado pela empresa é uma negação de sua própria identidade.
Leia também: ‘Já perdi o medo de morrer’ – a luta das mulheres Akroá Gamella pelo direito à identidade ‘
O conflito teve início em 2016, quando a empresa – que até 2019 se chamava Companhia Energética do Maranhão (Cemar) – começou a implantação do cabeamento de energia. O licenciamento para a obra foi feito nos órgãos estaduais, não considerando que a região era um território indígena em processo de demarcação.
O não reconhecimento dos seus direitos como povo indígena fez os Akroá Gamella se oporem às obras. Diante da resistência, a empresa entrou com uma ação na Justiça Federal no Maranhão para obrigar a comunidade a acatar a implantação do novo sistema de distribuição.
O processo ainda aguarda uma decisão final. Nele, os indígenas questionam a validade do licenciamento que autorizou a implantação das torres de energia e o fato de não terem sido consultados sobre o uso da terra.
Lucimar Carvalho, assessora jurídica do Cimi no Maranhão, lembra que todo empreendimento feito em territórios indígenas e de comunidades tradicionais deve passar por um processo de consulta prévia, livre e informada, desses povos. “A companhia de energia, de forma completamente autoritária, começou a fazer a implantação desses postes sem uma autorização do povo [Gamella], passando por cima da legislação e do processo jurídico, e os indígenas fizeram seus questionamentos devidos. Se alguém entra na sua casa sem autorização, você questiona.”
Assista: “Eles são mesmo índios?”, a pergunta por trás do ataque aos Gamella
Para a advogada, desde o início do processo de implantação do cabeamento “houve uma negação da identidade indígena” da comunidade pela empresa energética. “Eles afirmavam que a Funai não reconheceria o povo Gamella, mas o reconhecimento de povo indígena ou tradicional quem faz não é a Funai ou qualquer outro tipo de instituição, quem faz é o próprio povo, é autodeclaração.”
Apesar de os estudos sobre a homologação do território já terem sido iniciados, a análise segue a passos lentos. “A Funai paralisou praticamente todos os processos de demarcação desde 2019. Essa situação é a mesma que acontece em todas as terras indígenas do Brasil: a omissão da Funai e a inconstitucionalidade de várias normas que ela está publicando”, afirma Carvalho.
No caso do processo envolvendo a Equatorial Energia, a Funai apresentou um ofício em abril deste ano, no qual autoriza a continuidade dos trabalhos pela empresa. Esse ofício, porém, é questionado na ação pelos indígenas, que afirmam não terem sido consultados em sua elaboração. “É uma autorização que não poderia ser concedida passando por cima dos direitos constitucionais do povo Gamella”, diz a assessora jurídica do Cimi.
A DPU (Defensoria Pública da União) contestou o ofício e, em maio, pediu, em regime de urgência, a interrupção da obra. No dia 13 de agosto, o MPF (Ministério Público Federal) encaminhou um parecer apontando a necessidade de se garantir a consulta prévia à comunidade. O pedido ainda não foi decidido.
Em 2016, o MPF acionou a Funai e a União na Justiça devido à demora em efetuar as medidas administrativas necessárias para o reconhecimento e demarcação do território dos Gamella. Em agosto passado, a Procuradoria reforçou o pedido de urgência nesse outro processo, “alertando ao juiz da causa sobre a necessidade de ações para defesa do território”, informou o MPF em nota. Esse pedido também ainda aguarda julgamento.
Decepção com o governador
A truculência da polícia maranhense e a escalada da violência contra indígenas, quilombolas e sem-terra no estado governado por Flávio Dino (PSB) frustrou os movimentos sociais, que esperavam uma interlocução maior com o ex-comunista. “A mudança de governo, que tem essa cara de esquerda, não mexeu nas questões estruturais”, afirma Ronilson Costa, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Um indígena Gamella também se diz decepcionado e conta que entre os movimentos sociais é comum dizer que a principal função da Secretaria de Direitos Humanos do governo Maranhense é: “levar flores nos enterros das lideranças assassinadas”. Nove trabalhadores e trabalhadoras rurais foram mortos em decorrência de conflitos no campo, somente em 2021.
Leia também: Cova Medida – Os mortos na luta pela terra no Brasil
Procurados, nem o governador Flávio Dino e nem o governo do Maranhão responderam às questões enviadas pela reportagem.
Nos últimos 30 anos foram mais de 150 assassinatos, sendo que menos de 5% tiveram solução, segundo a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e Agricultores Familiares do Maranhão (FETAEMA). O Maranhão registra cerca de 180 conflitos agrários a cada ano, segundo a Comissão Pastoral da Terra, o que o torna o segundo estado mais violento da Amazônia Legal, atrás apenas do Pará.
Os Gamella são alvo recorrente dessa violência. Em 2016, Fernando Gamella foi assassinado. No mesmo ano, um ataque feriu mais de 30 indígenas, como a Repórter Brasil mostrou no especial Campo em Guerra.