Em mensagem divulgada em reunião virtual, neste sábado, aos Movimentos Populares, o papa Francisco destaca a importância de combater a exclusão, a desigualdade e a indiferença
Em mensagem divulgada em reunião virtual no sábado (16) pelo 4º Encontro Mundial de Movimentos Populares, o papa Francisco ressaltou o papel dos movimentos sociais para combater a exclusão, a desigualdade e a indiferença.
Leia a mensagem na íntegra
Irmãs, irmãos queridos poetas sociais!
1. Estimados poetas sociais
Assim gosto de vos chamar, “poetas sociais”. Pois sois poetas sociais, porque tendes a capacidade e a coragem de criar esperança onde só aparecem o descarte e a exclusão. Poesia significa criatividade, e vós criais esperança. Com as vossas mãos sabeis como forjar a dignidade de cada pessoa, das famílias, e da sociedade como um todo, com terra, casa e trabalho, cuidados e comunidade. Obrigado porque a vossa dedicação é uma palavra influente, capaz de contradizer os adiamentos silenciosos e frequentemente “educados” a que fostes submetidos, ou aos quais tantos dos nossos irmãos e irmãs estão sujeitos. Mas pensando em vós, considero que a vossa dedicação é sobretudo uma proclamação de esperança. Ver-vos lembra-me que não estamos condenados a repetir ou a construir um futuro baseado na exclusão e na desigualdade, no descarte ou na indiferença; onde a cultura do privilégio é um poder invisível e irreprimível e a exploração e o abuso são um método habitual de sobrevivência. Não! Sabeis muito bem como anunciar isto. Obrigado!
Obrigado pelo vídeo que acabámos de partilhar. Li as reflexões do encontro, os testemunhos do que vivestes nestes tempos de tribulação e angústia, a síntese das vossas propostas e das vossas aspirações. Obrigado. Obrigado por me fazerdes participar do processo histórico que estais a atravessar e obrigado por partilhardes comigo este diálogo fraterno, que procura ver o grande no pequeno e o pequeno no grande, um diálogo que nasce nas periferias, um diálogo que chega a Roma e no qual todos nos podemos sentir convidados e interpelados. «Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar» (Enc. Fratelli tutti , 198), e quanto!
Sentistes que a situação atual merecia um novo encontro. Eu senti o mesmo. Embora nunca tenhamos perdido o contacto — já passaram seis anos, creio, desde a última assembleia geral. Aconteceram muitas coisas nesse tempo, muitas coisas mudaram. Estas são mudanças que marcam pontos de não retorno, pontos de viragem, encruzilhadas onde a humanidade é chamada a escolher. São necessários novos momentos de encontro, discernimento e ação conjunta. Cada pessoa, cada organização, cada país, e o mundo inteiro, precisa de procurar estes momentos para refletir, discernir e escolher. Porque voltar aos padrões anteriores seria suicida e, se me permitis forçar um pouco as palavras, ecocida e genocida. Estou a forçar!
Nos últimos meses, muitas das coisas que denunciastes tornaram-se totalmente evidentes. A pandemia mostrou as desigualdades sociais que atingem os nossos povos e mostrou — sem pedir permissão nem desculpa — a situação desoladora de tantos irmãos e irmãs, aquela situação que tantos mecanismos pós-verdade foram incapazes de esconder.
Muitas situações que dávamos por certas caíram como um castelo de cartas. Experimentamos como, de um dia para o outro, o nosso modo de vida pode mudar drasticamente, impedindo-nos, por exemplo, de ver os nossos familiares, companheiros e amigos. Em muitos países, os Estados reagiram. Ouviram a ciência e conseguiram estabelecer limites para garantir o bem comum e travaram, pelo menos durante algum tempo, este “mecanismo gigantesco” que funciona quase automaticamente, onde os povos e os indivíduos são meras engrenagens (cf. s. João Paulo ii , Encíclica Sollicitudo rei socialis , 22).
Todos nós sofremos a dor do fechamento, mas vós, como sempre, sofrestes o pior. Em bairros sem infraestruturas básicas (onde vivem muitos de vós e milhões e milhões de pessoas), é difícil ficar em casa; não só porque não se tem tudo o que é necessário para realizar as medidas mínimas de cuidado e proteção, mas simplesmente porque a casa é o bairro. Migrantes, pessoas sem documentos, trabalhadores informais sem um rendimento fixo foram privados, em muitos casos, de qualquer apoio estatal e impedidos de desempenhar as suas tarefas habituais, agravando a sua pobreza já por si devastadora. Uma das expressões desta cultura de indiferença é que parece que este “terceiro” sofredor do nosso mundo não é suficientemente objeto de interesse para os principais meios de comunicação e formadores de opinião. Não aparece. Permanece escondido, “agachado”.
Gostaria também de me referir a uma pandemia silenciosa que atinge há anos crianças, adolescentes e jovens de todas as classes sociais; e acredito que, neste tempo de isolamento, ela cresceu ainda mais. Trata-se do estresse e da ansiedade crónica, ligados a vários fatores como a híper-conetividade, desconcerto e falta de perspetivas futuras, que se agrava sem contacto real com os outros — famílias, escolas, centros desportivos, oratórios, paróquias; em suma, agrava-se pela falta de contacto real com os amigos, pois a amizade é a forma na qual o amor volta sempre a nascer.
É evidente que a tecnologia pode ser um instrumento para o bem, e é um instrumento de bem, permitindo diálogos como este e muitas outras coisas, mas nunca pode substituir o contacto entre nós, nunca pode substituir uma comunidade na qual possamos criar raízes e na qual possamos tornar as nossas vidas frutuosas.
E, por falar em pandemias, não podemos deixar de nos interrogar sobre o flagelo da crise alimentar. Apesar dos avanços da biotecnologia, milhões de pessoas têm sido privadas de alimentos, apesar de estes estarem disponíveis. Mais de vinte milhões de pessoas foram arrastadas para níveis extremos de insegurança alimentar este ano, aumentando para [muitos] milhões. A indigência grave multiplicou-se. O preço dos alimentos tem subido acentuadamente. Os números da fome são horrendos, e estou a pensar, por exemplo, em países como a Síria, Haiti, Congo, Senegal, Iémen, Sudão do Sul; mas a fome também é sentida em muitos outros países do mundo pobre e, não raro, também no mundo rico. É possível que as mortes anuais relacionadas com a fome possam exceder as da Covid.1 Mas isto não faz notícia, não gera empatia.
Quero agradecer-vos porque sentistes a dor dos outros como se fosse vossa. Sabeis mostrar o rosto da verdadeira humanidade, a humanidade que não se constrói voltando as costas ao sofrimento daqueles que nos rodeiam, mas sim no paciente, comprometido e muitas vezes até doloroso reconhecimento de que a outra pessoa é meu irmão (cf. Lc 10, 25-37) e que as suas tristezas, alegrias e sofrimentos são também os meus (cf. Conc. Ecum. Vat. ii , Const. past. Gaudium et spes, 1). Ignorar quantos caíram é ignorar a nossa própria humanidade que grita em cada um dos nossos irmãos.
Cristãos e não, respondestes a Jesus que disse aos seus discípulos diante do povo faminto: «Dai-lhe vós mesmos de comer (Mt 14, 16). E onde havia escassez, o milagre da multiplicação repetiu-se em vós que lutastes incansavelmente para que a ninguém faltasse pão (cf. Mt 14, 13-21).
Obrigado!
Como os médicos, enfermeiros e pessoal de saúde nas trincheiras sanitárias, colocastes os vossos corpos nas trincheiras dos bairros marginalizados. Tenho em mente muitos, entre aspas, “mártires” desta solidariedade, dos quais soube através de vós. O Senhor tê-los-á em conta.
Se todos aqueles que por amor lutaram juntos contra a pandemia pudessem também sonhar juntos com um novo mundo, como tudo seria diferente! Sonhar juntos.
2. Bem-aventurados
Sois, como vos disse na carta que vos enviei no ano passado,2 um verdadeiro exército invisível; sois uma parte fundamental dessa humanidade que luta pela vida face a um sistema de morte. Nesta dedicação, vejo o Senhor que se faz presente no meio de nós para nos dar o seu Reino. Quando Jesus nos apresentou o “protocolo” pelo qual seremos julgados — cf. Mt 25 — disse-nos que a salvação consistia em cuidar dos famintos, dos doentes, dos prisioneiros, dos estranhos, em suma, em reconhecê-lo e servi-lo em toda a humanidade sofredora. Portanto, apetece-me dizer-vos: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5, 6); «Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9).
Queremos que esta bem-aventurança se estenda, penetre e unja cada canto e cada espaço onde a vida está ameaçada. Mas acontece-nos, como povo, como comunidade, como família e até individualmente, ter que enfrentar situações que nos paralisam, onde o horizonte desaparece e a perplexidade, o medo, a impotência e a injustiça parecem tomar conta do presente. Também sentimos resistências às mudanças de que precisamos e pelas quais aspiramos, resistências que são profundas, enraizadas, que vão além das nossas forças e decisões. É o que a Doutrina Social da Igreja chamou “estruturas de pecado”, que também somos chamados a converter e que não podemos ignorar quando pensamos em como agir. A mudança pessoal é necessária, mas também é essencial adaptar os nossos modelos socioeconómicos para que tenham um rosto humano, pois muitos modelos o perderam. E, pensando nestas situações, torno-me insistente no pedir. E começo a pedir. A pedir a todos. E a todos quero pedir em nome de Deus.
Aos grandes laboratórios, que liberalizem as patentes. Que realizem um gesto de humanidade e permitam que cada país, cada povo, cada ser humano, tenha acesso à vacina. Há países onde apenas três, quatro por cento dos habitantes foram vacinados.
Quero pedir, em nome de Deus, aos grupos financeiros e organismos internacionais de crédito que permitam que os países pobres garantam as necessidades básicas ao seu povo e perdoar as dívidas tão frequentemente contraídas contra os interesses desses mesmos povos.
Quero pedir, em nome de Deus, às grandes empresas mineiras, petrolíferas, florestais, imobiliárias e agro-alimentares que deixem de destruir florestas, zonas húmidas e montanhas, que deixem de poluir rios e mares, que deixem de intoxicar as pessoas e os alimentos.
Quero pedir, em nome de Deus, às grandes empresas alimentares que deixem de impor estruturas monopolistas de produção e distribuição que inflacionam os preços e acabam por ficar com o pão dos famintos.
Quero pedir, em nome de Deus, aos fabricantes e traficantes de armas que cessem totalmente as suas atividades, que fomentam a violência e a guerra, muitas vezes como parte de jogos geopolíticos cujo custo são milhões de vidas e deslocações.
Quero pedir, em nome de Deus, aos gigantes da tecnologia que deixem de explorar a fragilidade humana, as vulnerabilidades das pessoas, para obterem lucro, independentemente de como aumentam os discursos de ódio, o grooming [aliciamento de menores na internet], as fake news [notícias falsas], as teorias da conspiração, a manipulação política.
Quero pedir, em nome de Deus, aos gigantes das telecomunicações que liberalizem o acesso aos conteúdos educativos e o intercâmbio com os professores através da internet, para que as crianças pobres possam receber uma educação em contextos de quarentena.
Quero pedir, em nome de Deus, aos meios de comunicação social que ponham fim à lógica da pós-verdade, da desinformação, da difamação, da calúnia e daquela atração doentia pelo escândalo e pelo duvidoso; que procurem contribuir para a fraternidade humana e a empatia com as pessoas mais feridas.
Quero pedir, em nome de Deus, aos países poderosos que cessem as agressões, bloqueios e sanções unilaterais contra qualquer país em todas as partes do mundo. Não ao neocolonialismo. Os conflitos devem ser resolvidos em organismos multilaterais, tais como as Nações Unidas. Já vimos como acabam as intervenções, invasões e ocupações unilaterais, mesmo que se realizem sob os mais nobres motivos ou coberturas.
Este sistema, com a sua lógica implacável de lucro, está a fugir de qualquer controlo humano. É tempo de pôr travões à locomotiva, uma locomotiva fora de controlo que nos está a conduzir rumo ao abismo. Ainda há tempo.
Aos governos em geral, aos políticos de todos os partidos, quero pedir, juntamente com os pobres da terra, que representem os seus povos e que trabalhem para o bem comum. Quero pedir-lhes a coragem de olhar para os próprios povos, de fitar as pessoas nos olhos, e a coragem de saber que o bem de um povo é muito mais do que um consenso entre as partes (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium , 218). Que evitem ouvir apenas as elites económicas, tão frequentemente os porta-vozes de ideologias superficiais que se esquivam das verdadeiras questões da humanidade. Que estejam ao serviço dos povos que pedem terra, habitação, trabalho e uma vida boa. Aquele “bom viver” aborígene que não é a “dolce vita” nem o “dolce far niente”, não. Aquele bom viver humano que nos coloca em harmonia com toda a humanidade, com toda a criação.
Gostaria também de pedir a todos nós, líderes religiosos, que nunca usemos o nome de Deus para fomentar guerras nem golpes. Apoiemos os povos, os trabalhadores, os humildes, e lutemos juntamente com eles para que o desenvolvimento humano integral se torne uma realidade. Construamos pontes de amor para que a voz da periferia, com o seu pranto, mas também com o seu canto e a sua alegria, não provoque temor, mas empatia no resto da sociedade.
E assim sou insistente no pedir.
É necessário que juntos confrontemos os discursos populistas de intolerância, xenofobia, aporofobia — que é o ódio aos pobres — bem como todos aqueles que nos levam à indiferença, à meritocracia e ao individualismo, estas narrativas serviram apenas para dividir os nossos povos e para minar e neutralizar a nossa capacidade poética, a nossa capacidade de sonhar juntos.
3. Sonhemos juntos!
Irmãs e irmãos, sonhemos juntos! E como vos peço isto, juntamente convosco, também quero partilhar algumas reflexões sobre o futuro que devemos construir e sonhar. Digo reflexões, mas talvez precisaria de dizer sonhos, porque neste momento os nossos cérebros e as nossas mãos não são suficientes, precisamos também do coração e da imaginação: precisamos de sonhar para não voltarmos atrás. Precisamos de usar essa faculdade mais excelente do ser humano que é a imaginação, aquele lugar onde a inteligência, a intuição, a experiência e a memória histórica se encontram para criar, compor, aventurar e arriscar. Sonhemos juntos, porque foram precisamente os sonhos de liberdade, igualdade, justiça e dignidade, os sonhos de fraternidade que melhoraram o mundo. E estou convencido de que através destes sonhos passa o sonho de Deus para todos nós, que somos seus filhos.
Sonhemos juntos, sonhemos entre nós, sonhemos com os outros. Sabei que sois chamados a participar nos grandes processos de mudança, como vos disse na Bolívia: «O futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas» (Discurso aos movimentos populares , Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015). Está nas vossas mãos.
“Mas são situações inalcançáveis”, dirão alguns. Sim, mas têm a capacidade de nos pôr em movimento, de nos pôr a caminho. E reside precisamente nisto toda a vossa força, todo o vosso valor. Porque sois capazes de ir além das autojustificações míopes e dos convencionalismos humanos que só podem continuar a justificar as coisas como elas são. Sonhai! Sonhai juntos. Não caiais naquela resignação dura e perdedora... O Tango exprime-o bem: “Coragem, tudo vai correr bem! É tudo a mesma coisa. Lá em baixo, no inferno, encontrar-nos-emos”. Não, não, por favor, não caiais nisto. Os sonhos são sempre perigosos para aqueles que defendem o status quo , porque desafiam a paralisia que o egoísmo dos fortes e o conformismo dos fracos querem impor. E aqui há uma espécie de pacto que não foi feito, mas que é inconsciente: aquele entre o egoísmo dos fortes e o conformismo dos fracos. Mas não pode funcionar desta forma. Os sonhos transcendem os limites estreitos que nos são impostos e propõem novos mundos possíveis. E não estou a falar de fantasias superficiais que confundem viver bem com divertir-se, que nada mais é do que passar o tempo a preencher o vazio de sentido e assim permanecer à mercê da primeira ideologia do dia. Não, não é isso, mas sonhar por esse bom viver em harmonia com toda a humanidade e criação.
Mas qual é um dos maiores perigos que enfrentamos hoje? Durante a minha vida — não tenho quinze anos, tenho alguma experiência — pude perceber que nunca se sai de uma crise da mesma maneira. Não sairemos desta crise pandémica da mesma forma: ou saímos melhores ou saímos piores, não como antes. Nunca mais sairemos da mesma forma. E hoje temos de enfrentar esta questão juntos, sempre juntos: “Como sairemos desta crise? Melhores ou piores? Claro que queremos sair melhores, mas para isso temos de quebrar os vínculos do que é fácil e da aceitação passiva do “não há alternativa”, do “este é o único sistema possível”, daquela resignação que nos destrói, que nos leva a refugiar-nos apenas no “salve-se quem puder”. E para isso precisamos de sonhar. Preocupa-me que, embora ainda estejamos paralisados, já existam projetos em curso para rearmar a mesma estrutura socioeconómica que tínhamos antes, porque é mais fácil. Escolhamos o caminho difícil, saiamos melhores.
Na Fratelli tutti utilizei a parábola do Bom Samaritano como a representação mais clara desta escolha comprometida com o Evangelho. Um amigo meu disse-me que a figura do Bom Samaritano está associada por uma certa indústria cultural a uma personagem um pouco tonta. Esta é a distorção que causa o hedonismo depressivo que pretende neutralizar o poder transformador dos povos, especialmente da juventude.
Sabeis o que me vem agora à mente, juntamente com os movimentos populares, quando penso no Bom Samaritano? Sabeis o que me vem à mente? Os protestos sobre a morte de George Floyd. É evidente que este tipo de reação contra a injustiça social, racial ou maxista pode ser manipulada ou explorada por maquinações políticas ou coisas semelhantes; mas o essencial é que, naquela manifestação contra aquela morte, estava o “samaritano coletivo” (que não era tolo!). Aquele movimento não foi adiante quando viu a ferida da dignidade humana infligida por um tal abuso de poder. Os movimentos populares não são apenas poetas sociais, mas também “samaritanos coletivos”.
Há tantos jovens nestes processos que fazem vir em mim a esperança...; mas há muitos outros jovens que estão tristes, que talvez para sentirem algo neste mundo precisam de recorrer aos consolos baratos oferecidos pelo sistema consumista e narcotizante. E outros — é triste — outros optam por sair totalmente do sistema. As estatísticas dos suicídios de jovens não são publicadas na sua realidade completa. O que fazeis é muito importante, mas também é importante que se consiga contagiar as gerações presentes e futuras com o que faz o que faz arder o vosso coração. Nisto tendes um duplo trabalho ou responsabilidade. Permanecer atentos, como o Bom Samaritano, a todos aqueles que são feridos pelo caminho mas, ao mesmo tempo, para assegurar que muitos mais se unam a esta atitude: os pobres e oprimidos da terra merecem-no, a nossa casa comum exige-o de nós.
Gostaria de oferecer algumas indicações. A Doutrina Social da Igreja não contém todas as respostas, mas tem alguns princípios que podem contribuir este caminho para tornar as respostas concretas e ajudar tanto os cristãos como os não-cristãos. Por vezes surpreende-me que quando falo destes princípios algumas pessoas fiquem surpreendidas e depois o Santo Padre seja catalogado com uma série de epítetos utilizados para reduzir qualquer reflexão a meros adjetivos desacreditadores. Não fico zangado, fico triste. Faz parte da trama pós-verdade que procura anular qualquer pesquisa humanista alternativa à globalização capitalista; faz parte da cultura do descarte e do paradigma tecnocrático.
Os princípios que exponho são comedidos, humanos, cristãos, compilados no Compêndio elaborado pelo então Pontifício Conselho «Justiça e Paz».3 Trata-se de um pequeno manual da Doutrina Social da Igreja. E por vezes, quando os Papas, quer seja eu, Bento, ou João Paulo ii , dizem alguma coisa, há pessoas que se perguntam: “De onde é que ele tirou isso?”. É a doutrina tradicional da Igreja. Há muita ignorância nisto. Os princípios que expus estão nesse livro, no quarto capítulo. Quero deixar clara uma coisa: eles estão incluídos neste Compêndio e este Compêndio foi desejado por São João Paulo ii . Recomendo-vos, e a todos os líderes sociais, sindicais, religiosos, políticos e empresariais, que o leiais.
No capítulo quatro deste documento encontramos princípios como a opção preferencial pelos pobres, o destino universal dos bens, a solidariedade, a subsidiariedade, a participação, o bem comum, que são mediações concretas para implementar a Boa Nova do Evangelho a nível social e cultural. E entristece-me quando alguns irmãos da Igreja ficam aborrecidos por recordarmos estas orientações que pertencem a toda a tradição da Igreja. Mas o Papa não pode deixar de recordar esta doutrina, mesmo que ela aborreça frequentemente as pessoas, pois não é o Papa, mas é o Evangelho que está em questão.
E, neste contexto, gostaria de retomar brevemente alguns dos princípios em que nos apoiamos para levar a cabo a nossa missão. Mencionarei dois ou três, não mais. Um deles é o princípio da solidariedade. Solidariedade não só como uma virtude moral, mas também como um princípio social, um princípio que procura abordar sistemas injustos a fim de construir uma cultura de solidariedade que exprima — diz literalmente o Compêndio — «a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum» (n. 193).
Outro princípio é estimular e promover a participação e a subsidiariedade entre os movimentos e entre os povos, o que pode limitar qualquer esquema autoritário, qualquer coletivismo forçado ou qualquer esquema centrado no Estado. O bem comum não pode ser usado como desculpa para esmagar a iniciativa privada, a identidade local ou projetos comunitários. Portanto, estes princípios promovem uma economia e uma política que reconhecem o papel dos movimentos populares, «da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, por outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo económico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efetivo crescimento social». Isto está no número 185 do Compêndio .
Como podeis ver, caros irmãos e irmãs, estes são princípios equilibrados bem estabelecidos na Doutrina Social da Igreja. Com estes dois princípios, penso que podemos dar o próximo passo do sonho para a ação. Pois é tempo de agir.
4. Tempo de agir
As pessoas dizem-me frequentemente: “Padre, estamos de acordo, mas em termos concretos, o que devemos fazer?”. Não tenho a resposta, por isso temos de sonhar juntos e encontrá-la juntos. No entanto, existem medidas concretas que talvez possam permitir alguma mudança significativa. Estas são medidas que podem ser encontradas nos vossos documentos, nos vossos discursos, e que tomei em consideração, sobre as quais meditei e consultei peritos. Nos encontros anteriores falámos sobre integração urbana, agricultura familiar, economia popular. A estas, que ainda exigem que continuemos a trabalhar em conjunto para as pôr em prática, gostaria de acrescentar outras duas: o salário universal e a redução da jornada de trabalho.
Um rendimento mínimo (o rmu ) ou salário universal, para que cada pessoa neste mundo tenha acesso aos bens mais elementares da vida. É correto lutar por uma distribuição humana destes recursos. E é tarefa dos governos estabelecer esquemas fiscais e redistributivos para que a riqueza de uma parte seja partilhada equitativamente, sem que isso implique um fardo insuportável, especialmente para a classe média — geralmente, quando existem estes conflitos, é a que mais sofre. Não esqueçamos que as grandes fortunas de hoje são fruto do trabalho, da pesquisa científica e da inovação técnica de milhares de homens e mulheres ao longo de gerações.
A redução da jornada de trabalho é outra possibilidade. O rendimento mínimo é uma possibilidade, a outra é a redução do dia de trabalho. E precisa de ser seriamente analisada. No século xix , os operários trabalhavam doze, catorze, dezasseis horas por dia. Quando conquistaram o dia de oito horas, nada se desmoronou, como alguns sectores tinham previsto. Portanto — insisto — trabalhar menos para que mais pessoas tenham acesso ao mercado de trabalho é algo que precisamos de explorar com alguma urgência. Não pode haver tantas pessoas que sofrem de excesso de trabalho e tantas que sofrem de falta de trabalho.
Penso que estas medidas são necessárias, mas é claro que não são suficientes. Não resolvem o problema subjacente, nem garantem o acesso à terra, à habitação e ao trabalho na quantidade e qualidade que os agricultores sem terra, as famílias sem uma casa segura e os trabalhadores precários merecem. Nem irão resolver os enormes desafios ambientais que enfrentamos. Mas queria mencioná-las porque são medidas possíveis e marcariam uma mudança positiva de rumo.
É bom saber que não estamos sozinhos nisto. As Nações Unidas procuraram estabelecer algumas metas através dos chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ods ), mas infelizmente eles não são conhecidos pelos nossos povos e periferias; e isto recorda-nos a importância de partilhar e envolver todos nesta busca comum.
Irmãs e irmãos, estou convencido de que o mundo pode ser visto mais claramente a partir das periferias. Devemos ouvir as periferias, abrir-lhes as portas e permitir a sua participação. Compreende-se melhor o sofrimento do mundo juntamente com aqueles que sofrem. Na minha experiência, quando pessoas, homens e mulheres, que sofreram na própria carne injustiça, desigualdade, abuso de poder, privação, xenofobia, na minha experiência vejo que compreendem melhor o que os outros estão a experimentar e são capazes de os ajudar a abrir, realisticamente, caminhos de esperança. Como é importante que a vossa voz seja ouvida, representada em todos os lugares onde as decisões são tomadas! Oferecê-la como colaboração, oferecê-la como certeza moral do que deve ser feito. Esforçai-vos por fazer ouvir a vossa voz, e também nesses lugares, por favor, não deixar-vos enquadrar significa não deixar-vos corromper. Duas palavras que têm um significado muito grande, sobre as quais não falarei agora.
Reafirmemos o compromisso que assumimos na Bolívia: pôr a economia ao serviço dos povos para construir uma paz duradoura baseada na justiça social e no cuidado da Casa comum. Continuai a seguir a vossa agenda de terra, casa e trabalho. Continuai a sonhar juntos. E obrigado, muito obrigado, por me deixardes sonhar convosco.
Peçamos a Deus que derrame as suas bênçãos sobre os nossos sonhos. Não percamos a esperança. Recordemos a promessa que Jesus fez aos seus discípulos: «Estarei sempre convosco» (cf. Mt 28, 20); e lembrando-a, neste momento da minha vida, quero dizer-vos que também eu estarei convosco. O importante é que estejais cientes de que Ele está convosco. Obrigado!
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1. «O vírus da fome multiplica-se», relatório da Oxfam de 9 de julho de 2021, baseado no Global Report on Food Crises (grfc ) do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas.
2. Carta aos movimentos populares , 12 de abril de 2020.
3. Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Compêndio da Doutrina Social da Igreja , 2004.