Migrants - Museum of Contemporary Native Arts - Santa Fe - Estados Unidos | Foto: Thomas Ferullo/Divulgação

Desde a Semanas Sociais Brasileiras durante os anos de 1990 e começo de 2000, a SSB procura levar adiante três tarefas complementares:

a) traçar um diagnóstico do contexto histórico em que vivemos, numa análise contemporaneamente plural, interdisciplinar e atualizada;

b) iluminar as causas e implicações desse contexto, seja com os instrumentos das ciências sociais e humanas, seja com a luz da Palavra de Deus;

c) buscar em mutirão e de forma participativa um leque amplo, variado e possível de alternativas ao modelo socioeconômico e político-cultural vigente. Daí a importância de manter viva e ativa a conexão entre a perspectiva global e a realidade local.

A pandemia do Covid-19 escancarou e agravou uma série de nós, entraves e impasses ligados à história social, econômica, política e cultural do Brasil. Exemplos disso são, de um lado, a situação agrária e agrícola da estrutura fundiária no país e, de outro, a desigualdade social que concentra simultaneamente, em campos opostos, riqueza e exclusão social. Disso resulta que o Brasil de “muita terra sem gente e de muita gente sem terra” é o mesmo em que as ruas, os cortiços, as favelas e as periferias exibem um déficit habitacional que coexiste ao lado de mansões de alto padrão ou de apartamentos vazios. No tráfico, carros populares e às vezes com manutenção precária, disputam espaço com veículos de alto padrão e preços proibitivos. Sistemas de educação e saúde públicas, convivem lado a lado com sistemas de educação e saúde privadas, dividindo a população por fatias desiguais na pirâmide socioeconômica.

Por isso é que, infelizmente, estamos diante de um dos maiores desequilíbrios mundiais na distribuição de renda. A imagem/metáfora da Casa Grande & Senzala, cunhada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freire, apesar de alguns conceitos hoje redimensionados, segue muito significativa no sentido de chamar a atenção para o abismo entre os “ricos cada vez mais ricos às custas dos pobres cada vez mais pobres”, conforme expressão do Papa João Paulo II, em visita à Ciudad de Mexico. Vale a mesma coisa para os demais clássicos brasileiros, tais como Celso Furtado, Caio Frado Junior, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Raymundo Faoro, Roger Bastide, Darcy Ribeiro, Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo), Clarice Lispector (arte, filosofia e psicologia), entre tantos outros e outras.

Mas a fúria devastadora da pandemia do novo coronavírus, além de ceifar centenas de milhares de vidas e deixar atrás de si um rastro macabro de famílias enlutadas, também escancarou e agravou a situação vulnerável dos extratos mais pobres e excluídos da população. Ao acentuar a concentração de renda num punhado de bilionários, em nível nacional e internacional, e ao alargar o fosso já abissal entre o topo e a base da pirâmide social, tornou visíveis uma série de rostos até então dissimuladamente ocultos (ou mais precisamente ocultados), tais como os sem terra, os migrantes, o povo em situação de rua, os trabalhadores e trabalhadoras do mercado informal, os vendedores ambulantes e autônomos, os indígenas, quilombolas e ribeirinhos, os que trabalham em condições análogas à escravidão, e assim por diante.

Semelhante quadro nos leva à tarefa de alinhavar num tecido razoavelmente inteligível os quatro conceitos do título: migração, terra, teto e trabalho. Na aparência, uma tarefa relativamente fácil, mas o entrelaçamento entre eles nada tem de mágico, de mecânico ou de automático. A ligação entre tais noções não pode ser dada por descontada. Muito pelo contrário, o texto representa um exercício empenhativo, não apenas devido às complicações do contexto atual da economia globalizada, mas também pela rede de laços e raízes invisíveis que essas noções desenvolvem entre si e no seu conjunto. Os fios desse trabalho de costura são tênues, às vezes imperceptíveis e sempre marcados por conexões múltiplas, plurais e diferenciadas.

Diga-se, de início, que não se trata de elaborar um estudo científico, com seu séquito de dados, estatísticas, números, tabelas e ilustrações gráficas atualizadas. A reflexão prima, antes, por uma visão sociopastoral sobre as razões, consequências e implicações que esses termos descortinam no mundo atual interconectado, de modo particular para os agentes, ativistas e militantes, que lutam e trabalham na busca e/ou construção de vias alternativas ao modelo político e econômico atual. Em outras palavras, uma tentativa de deixar-se questionar, desafiar e interpelar pelos protagonistas que, de maneira quase sempre invisível, agem no cenário obscuro desse quarteto conceitual. Protagonistas não de um palco iluminado, mas que atuam nos corredores obscuros e subterrâneos do xadrez da economia mundial.

Convém deixar claro, ainda, que tentaremos caminhar no compasso dos movimentos e pastorais sociais, em sintonia com entidades, associações e organizações que já operam nesses respectivos campos, com destaque todo especial para a temática e os debates da Sexta Semana Social Brasileira (6ª SSB): Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho, bem como para a mensagem do Papa Francisco para a Jornada Mundial do Migrante e Refugiado: Rumo a um “nós” cada vez maior. Tampouco podemos esquecer aqui da 36ª Semana do Migrante, promovida pelo SPM, cujo tema é Migração e diálogo, com o lema Alguém bate à nossa porta. Nessa perspectiva, trata-se de abrir algumas janelas conceituais que nos descortinem cenários para continuar nossa reflexão/ação em meio a tempos de crise, de pandemia e de desencanto.

Terra: raiz e fruto

Terra remete a raiz e vice-versa. O exemplo da árvore é emblemático. Antes de crescer para cima, ela cresce para baixo, como que buscando o núcleo e o ventre do globo. Ou seja, somente depois de mergulhar as raízes no chão úmido e escuro da terra, é que ela pode se aventurar pelo ar livre, pelo céu azul, em busca do sol e do oxigênio. Não é diferente com os trabalhadores e trabalhadoras migrantes. Para voar, além de asas, é necessário ter pés, raízes firmes e fincadas no solo. Por mais que cruzem e recruzem as estradas do êxodo, do exílio e da diáspora, mantêm como referência vital o solo pátrio. Sem ter conhecido a terra embevecida pelo suor, as lágrimas e o sangue dos ancestrais, onde estes últimos deixaram seus ossos e suas recordações, todo movimento migratório pode ser considerado um “voo de galinha”, com fraca e curta autonomia. A saúde do torrão ou aldeia natal acompanha o exilado onde quer que ele esteja, o que gera o desejo do retorno, tão poucas vezes alcançado.

Um confronto entre os imigrantes italianos que vieram substituir a mão-de-obra escrava nas fazendas de café, no interior de São Paulo, e os imigrantes que, como colonos, se instalaram no estado do Rio Grande do Sul – revela que o acesso à terra produz valores, expressões culturais, uma memória viva, uma história. Quando ela é negada, a trajetória se fragmenta, como as folhas arrancadas de uma árvore: murcham, definham, secam e morrem. A tempestade as sacode, levanta e varre pelos quatro cantos da terra, ao sabor dos ventos do capital e em busca das migalhas que caem da mesa dos ricos. Não raro, terminam nos porões e periferias das grandes e médias cidades, frágeis e vulneráveis, tendo de sujeitar-se a todo tipo de exploração: sexual, trabalhista ou como vítimas das drogas e do crime organizado.

Raízes profundas na terra, por um lado, e consciência histórica, por outro, são aspectos que vão de braços dados. Bastaria consultar as origens e mitos dos povos primigênios de várias partes do planeta – exemplos disso são o “mito da terra sem males”, por um lado, e o surgimento dos quilombos, por outro – ou então consultar os relatos transmitidos pelas nações enraizadas na antiguidade, como o caso do Povo de Israel. Na tradição judaico-cristã, convém ter em consideração que a promessa feita por Deus a Abraão incluía, ao mesmo tempo, uma “terra prometida”, povoada por uma “descendência tão numerosa como as estrelas do céu ou as areias da praia’. Acesso à terra e formação do povo são elementos integrados, complementares e indissociáveis de grande parte das nações que formavam o mundo antigo. A prosperidade, a harmonia e a saúde do povo pressupõe o acesso ao solo, por mais árido que ele seja.

O que se vê, hoje em dia, é justamente o contrário. O governo atual vem perpetrando um desmonte sem igual especialmente na estrutura fundiária e na produção agrícola. Por uma parte, todo apoio ao agronegócio predominantemente de exportação. Do ponto de vista histórico, o Brasil continua a fornecer matéria prima para os países centrais (carne, minério, grãos, café, madeira, álcool, petróleo e derivados). Por outro lado, na tardia e tumultuada elaboração do orçamento de 2021, tarefa levada adiante pelo Ministério da Economia junto com os parlamentares do “centrão”, a agricultura familiar teve sua quota zerada. O orçamento asfixia precisamente o pequeno produtor, aquele que leva o pão à mesa de milhões e milhões de brasileiros. Repete-se como chave de leitura do contexto atual o tripé que, ao longo dos séculos, foi uma das chaves de leitura histórica da economia brasileira: latifúndio, monocultivo de exportação e trabalho escravo, como denunciam os clássicos brasileiros citados anteriormente.

Teto: Família e dignidade

Teto não se reduz a abrigo. Ajuda também a manter a chama do calor humano e o conforto. Neste caso, casa é a roupa de um grupo que convive junto, habita sob o mesmo telhado e se ama, seja ele família, comunidade, ou relacionamento de amizade. Semelhante grupo, na falta de piso, paredes e teto, torna-se como uma espécie de corpo desnudo, exposto em praça pública, seja aos olhares estranhos ou à curiosidade dos transeuntes. Todo grupo que se ama forja, cultiva e acalenta uma intimidade única feita com a linguagem do toque, do gesto, do olhar, do sorriso, do abraço, do convívio e de uma familiaridade singular. Quem não conhece infinidade de “inhos” que é capaz de inspirar uma relação íntima e profunda?!...

A casa torna-se a roupa que reveste essa intimidade de caráter absolutamente inédita e sagrada. Sem ela é quase impossível preservar a dignidade dessa convivência peculiar e irrepetível. Para manter-se em condições dignas e vívidas, toda nudez necessita de vestimenta, que é o olhar amoroso. A casa constitui, dessa maneira, uma “fortaleza” onde semelhante relação de amor/amizade pode defender-se de todo assédio indiscreto e indesejável, de todo constrangido. Além disso, mantém-se íntegra frente à possibilidade de corrupção e vilipêndio.

Ao privar de terra e teto milhões e milhões de pessoas, os deslocamentos humanos de massa os privam igualmente dessa familiaridade e desse calor humano. Asfixiam pelos caminhos, fronteiras e encruzilhadas, sem o oxigênio que aquece a convivência com os entes queridos. Perdidos, órfãos e solitários, passam a errar de lugar em lugar, sem um galho onde pousar e repousar. Terminam expostos a todo tipo de recrutamento, por mais sujo, pesado perigoso e mal remunerado que seja. Basta percorrer os tugúrios abjetos e degradados das cidades cosmopolitas, de modo especial as capitais ou metrópoles do mundo moderno ou pós-moderno.

Bem ao lado dos mais belos panoramas turísticos, sejam praias, museus ou parques, desenvolvem-se, por exemplo, como veremos mais adiante, gigantescos submundos de pobreza, miséria e fome, onde vivem ou “se escondem” milhares de trabalhadores autônomos, eufemismo para a auto exploração. Por isso é que a chamada “Pastoral do Turismo” deve ter em conta não somente os atores em férias ou descanso, que desfilam pelos cenários profusamente enfeitados do universo urbano, mas também e sobretudo os atores invisíveis, os quais, nos bastidores, por trás das cortinas e dos olhares do público, se movem e rastejam como as formigas para garantir uma sobrevivência cada vez mais cara, difícil e perigosa. Pouco custa sublinhar que, devido às nefastas consequências da pandemia, grande parte desse imenso “formigueiro”, que de forma geral é constituída de imigrantes com a documentação irregular, viu-se negativamente afetada.

Desnecessário acrescentar que a tragédia do Covid-19, pandêmica e pandemônica, não só escancarou muitas situações adversas, como também agravou o cotidiano desses protagonistas vulneráveis. O novo coronavírus, inimigo “silencioso, invisível e letal”, deu visibilidade à pobreza, à miséria e à fome de tantos trabalhadores. Entre estes, claro que os migrantes, particularmente os indocumentados, são os primeiros a sofrerem as consequências. Se já eram tidos e tratados como “bodes expiatórios” antes do flagelo, que dizer dessa travessia povoada de cadáveres e luto!

A pandemia, entretanto, também escancarou e agravou as assimetrias, injustiças e desigualdades sociais, seja em nível nacional e regional, seja em nível internacional. Aqui vale a pena, se não aprofundar, pelo menos citar os recentes trabalhos de Thomas Pikety: A economia da desigualdade (1997), O capital no século XXI (2013) e Capital e ideologia (2019). Nesse desiquilíbrio cada vez maior entre o topo e a base da pirâmide social, não foram poucos os que se viram obrigados a trocar a casa, por mais pobre e modesta que fosse, pela rua. De resto, em diversos casos, as fronteiras entre casa/rua, estudadas pelo antropólogo brasileiro Roberto da Matta, passaram a ser muito mais fluídas e intercambiáveis. Em decorrência do desemprego e subemprego, por um lado, e da pressão sobre o preço dos alimentos e dos aluguéis, por outro, cada vez mais pessoas solitárias, ou até mesmo famílias, trocam a casa pela calçada.

Trabalho: pão e direitos humano

Livros e livros, estudos e pesquisas têm sido escritos sobre as mudanças nas relações de trabalho. Desde as últimas décadas do século passado e o início deste século, uma farta literatura tem se acumulado sobre essa temática. As revoluções na área da informática, da robótica e da cibernética desencadearam uma série de novas profissões, ao mesmo tempo que liquidaram outras. Neste caso, só nos resta sublinhar algumas observações que podem trazer luz para o túnel que estamos atravessando.

Para começar, apesar de tanta injustiça, exploração e adversidades no amplo universo das relações de trabalho, não podemos perder de vista a técnica e a magia do próprio ato de trabalhar. As mesmas mãos que são capazes de manipular e transformar a matéria orgânica e o mundo vegetal (terra, barro, água, madeira, pedra, vidro, metal, sementes, tecido, plantas, resíduos fósseis...) também serão capazes de captar e sentir o espírito. De descobrir e transfigurar o próprio sentido oculto da existência humana. A mesma habilidade que modifica o reino material e vegetal terá a capacidade de modificar a vida espiritual. Ou seja, pouca coisa é tão profundamente espiritual quanto a alquimia da matéria e do trabalho humano. Quem a domina, tem em suas mãos o poder de organizar formas alternativas de convivência seja entre coisas e pessoas, seja entre a natureza e as relações humanas. Se é verdade que “outro mundo é possível”, também é certo que isso se deve à poesia embutida no grande “mutirão” do trabalho.

Infelizmente, como têm alertado a ciência, a luta sindical, os movimentos trabalhistas e a Doutrina Social da Igreja (DSI), o trabalho e o trabalhador sempre sofreram ameaças ao longo da história. De um lado, prega-se a plenos pulmões que o trabalho é a chave da vida e da história, de outro, os protagonistas principais desse exercício milenar acabam sempre roubados do produto de suas mãos. No modo de produção capitalista, de forma particular, as relações de trabalho entre patrões e empregados tendem a acumular, ao mesmo tempo, a concentração de renda e a exclusão social. Desnecessário acrescentar que a pandemia do Covid-19 só fez agravar esse vício histórico e estrutural da economia capitalista, na linha da filosofia liberal ou neoliberal. Não são poucos os que passam a trabalhar unicamente pelo pão, por um prato de comida. A luta pelo pão da fome asfixia a luta pelo chão e pelos direitos.

O coronavírus escancarou e agravou outros vírus e entraves relacionados ao mundo do trabalho. Demonstrou, por exemplo, como a dinâmica perversa do capitalismo, de forma sempre camaleônica, consegue conviver com as descobertas científicas e tecnológicas mais avançadas, ao mesmo tempo que mantém e se utiliza de relações de trabalho ultra retrógradas, resíduos anacrônicos de formas análogas à escravidão. De tal modo que a economia globalizada do século XXI, por mais hipermoderna, usa e abusa de relações não capitalistas de produção. E não se trata somente de relações familiares e/ou tribais, onde ainda prevalece o respeito às leis e ao ritmo da natureza, mas sobretudo um leque imenso de serviços relativos ao chamado “mercado informal”.

Não vem ao caso deter-nos sobre a gigantesca galáxia dos trabalhos subterrâneos que se desenvolvem no campo e na cidade, com destaque relevante para as grandes metrópoles. Convém, entretanto, assinalar algumas dessas irregularidades temporárias, as quais, com o passar do tempo se convertem em definitivas: trabalho infantil, seja na exploração sexual ou trabalhista; trabalho feminino, em geral com remuneração inferior ao próprio equivalente masculino; serviços domésticos sem carteira assinada e, consequentemente, sem direitos assegurados; trabalho de vendedor ambulante ou autônomo, eufemismo para a auto exploração; trabalho doméstico por peça, especialmente na indústria têxtil e de brinquedos; home office, em que o trabalhador deve permanecer 24 horas por dia conectado à empresa; os mais variados “bicos” transitórios e instáveis, realizados não raro por migrantes indocumentados; trabalho por dívida, comum nos desmatamentos e na preparação de novos campos agrícolas; recrutamento juvenil para o mundo do crime, das drogas, do tráfico de seres humanos e da exploração sexual!... Evidente que a lista não esgota as ramificações desse submundo do trabalho.

Embora já tenham desfilado no parágrafo anterior, vale sublinhar entrada dos migrantes no mercado de trabalho. Em geral o fazem pela porta dos fundos, de forma irregular e desprovidos de todo tipo de assistência que deriva da carteira assinada. Normalmente, são requisitados para os serviços mais sujos e pesados, perigosos e mal remunerados. Podemos encontrá-los com relativa frequência na construção civil, como mão-de-obra braçal não qualificada; nos serviços domésticos, rede de comércio comestível, hotelaria de baixa qualidade; indústria têxtil e de brinquedos, como vimos anteriormente; porém, muitos perambulam pelas ruas e praças, como vendedores de bugigangas, comida ou produtos de fácil acesso.

Derrete-se no ar a falácia mágica de Adam Schmidt. Segundo este, as leis do mercado tinham o poder de auto regular-se. No jogo da oferta e procura, a “mão invisível” podia controlar os excessos de um lado ou de outro. O que se vê, entretanto, é que a “mão invisível”, especialmente no contexto de crise, pestes e pandemia, não dispensa o punho de ferro do Estado. Em tempos de “vacas gordas”, prevalece o liberalismo do laissez faire e do Estado mínimo, onde os donos do poder acumulam os lucros e jogam para os trabalhadores umas poucas migalhas. Em tempos de “vacas magras”, porém, os mesmos defensores ferrenhos do liberalismo não hesitarão em se valer do socorro do Estado, que agora é sempre bem-vindo. O Estado, por sua vez, disposto a salvar empresas com os cofres públicos, não sabe onde buscar recursos para socorrer os trabalhadores. Resta a estes o consolo do “auxílio emergencial”, como vimos na pandemia.

Por último, não seria exagero perguntar pelo futuro do emprego. Evidentemente, aqui estamos falando do emprego que poderíamos chamar de “tradicional”, entre aspas e sem conotação pejorativa. Daquele emprego estável, com carteira assinada, remuneração regular, direitos assegurados e que às vezes até passava de pai para filho. O vínculo com a empresa mantinha uma certa aura familiar, chegando perto do paternalismo. Hoje os ditos empregos estão sendo substituídos pelos serviços prestados, trabalhos eventuais e temporários, medidos pelo número de horas trabalhadas. A estabilidade foi sacrificada no altar do lucro, da eficiência e da acumulação. O que se vê hoje, com o processo de flexibilização da legislação trabalhista, somada à prática da terceirização, é que as empresas tendem a transferir para os próprios trabalhadores todo o ônus da assistência previdenciária e da segurança social.

Os direitos trabalhistas – dura, longa e laboriosamente conquistados – reconvertem-se em mercadorias. E estas, no fetiche do capitalismo, encontram-se sujeitas ao processo de compra e venda. O fato é que a narrativa da reforma trabalhista, feita aparentemente para salvar a economia e abrir novos postos de trabalho, recai sempre sobre os ombros dos empregados. São estes que pagam a conta: demissões em massa, perda do poder aquisitivo, elevação do preço dos produtos básicos, serviços públicos cada vez mais precários... No flagelo da pandemia, tudo isso veio à toma, com a emergência dos “invisíveis”. Invisíveis para quem? Para os senhores do poder e do status quo, para a opinião pública, para os acomodados!... Nem precisaria acrescentar que semelhante cenário adverso corrói e debilita a força organizativa dos trabalhadores, o que se revela de modo especial seja no enfraquecimento do sindicalismo combativo, seja na sonolência de não poucos sindicatos, associações e organizações em geral.

Rumo a um novo conceito de pátria

Terra, teto e trabalho, quando combinados e entrelaçados, compõem um conceito novo de cidadania. “Para os migrantes, a pátria é a terra que lhes dá o pão”, dizia no final do século XIX o bispo italiano João Batista Scalabrini, considerado o “pai e apóstolo dos migrantes”. Uma pátria sem fronteiras, aberta a todos os povos, línguas, nações, credos, bandeiras. Mais do que um território delimitado, trata-se de garantias seguras para uma existência sem sobressaltos nem traumas. Os três “Ts” representam, na verdade, portas de entrada para o bem-estar, a paz e a estabilidade que implicam uma cidadania justa e digna. Portas que, por sua vez, conduzem à educação elementar, ao sistema de saúde, ao transporte, à segurança alimentar, ao lazer criativo, ao acesso à Internet, entre tantos outros direitos individuais e sociais.

Isso requer, hoje no Brasil, um combate vigoroso ao desmonte sistemático das políticas públicas por parte do atual governo. De fato, estão sendo ignorados ou desmantelados os programas políticos ligados à defesa e preservação do meio ambiente; ao apoio dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos; à manutenção de uma política agrária e agrícola em benefício dos pequenos produtores; ao sistema único de saúde (SUS), que, em meio à montanha de cadáveres da pandemia, vem sendo precarizado; a uma política externa voltada para os interesses do povo brasileiro e não apenas das empresas e do agronegócio; ao incentivo à cultura, expressões artísticas, promoção acadêmica e acesso aos livros de uma forma geral; ao incremento da pesquisa e do estudo científicos; aos meios de comunicação informativos e formativos, substituídos pela oficina de criação e divulgação de fake News...

O mutirão pela 6ª SSB, na esteira do que foram as SSBs anteriores, além do diagnóstico do contexto em que vivemos, tem a finalidade de apresentar bifurcações alternativas ao desgoverno vigente. Alternativas em relação à terra, teto e trabalho, mas igualmente aos campos aos quais as políticas públicas do tríplice “T” conferem maior acesso. No fundo, um mutirão pela vida em todas as suas dimensões. Nessa tarefa, torna-se preponderante o protagonismo dos mais diversos atores, sejam estes pessoas, grupos e categorias, ou sejam movimentos, pastorais, associações e organizações não governamentais. Evidente que isso remete, uma vez mais e sempre, ao trabalho de base de “formiguinha”, sem perder de vista as questões de maior amplitude. Como dizia alguém, desde o primeiro Fórum Social Mundial, é preciso “agir localmente e pensar globalmente”.

Falta-nos referir, ainda, o tema da mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado: Rumo a um “nós” cada vez maior. Desnecessário recordar que essa expressão está em plena sintonia tanto com o lema da 36ª Semana do Migrante, Quem bate à nossa porta?, quanto com o lema da 6ª SSB, Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho. As três iniciativas, diferentes mas convergentes, apontam efetivamente para um “nós” crescentemente exponencial. Do ponto de vista do encontro e do diálogo, trata-se de uma passagem difícil, mas necessária, do conceito de multiculturalidade ao de interculturalidade.

Significa dizer, em outras palavras, que não basta uma convivência pacífica entre os diversos povos e culturas. Tampouco basta a tolerância mais ou menos à distância. O verdadeiro encontro com o “outro, estrangeiro e diferente” requer um passo à frente. Em lugar disso, torna-se necessário um confronto corajoso, um intercâmbio de ideias, um diálogo plural e aberto. Somente por essa via, podemos desencadear um crescimento e um enriquecimento recíprocos. Levando em conta tais exigências, o encontro/diálogo depura e purifica mutuamente cada expressão cultural e/ou religiosa, descortinando os horizontes para valores novos e inéditos.

Na linguagem do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, em sua grandiosa obra Verdad y Metodo, o desafio aqui está em fazer com que a “fusão das distintas experiências do passado” possa nos conduzir à “fusão de horizontes alternativos”. Em igual perspectiva, Gadamer chega a afirmar que o “outro” tem muito mais a dizer sobre mim mesmo do que sobre ele. Por outro lado, enquanto para Jean-Paul Sartre, “o outro é o inferno”, para Emmanuel Levinás, “o outro é o caminho para chegar a mim mesmo”. Tudo isso vem somar com a insistência do Papa Francisco no sentido de passar da “globalização da indiferença” à “cultura da solidariedade”. Numa abordagem teológica, a abertura ao diferente pavimenta a via que leva ao Transcendente; ou ainda, o diálogo com o outro abre a janela para o encontro com o “Totalmente Outro” (Levinás).

Conclusão

Desde a Semanas Sociais Brasileiras durante os anos de 1990 e começo de 2000, a SSB procura levar adiante três tarefas complementares: a) traçar um diagnóstico do contexto histórico em que vivemos, numa análise contemporaneamente plural, interdisciplinar e atualizada; b) iluminar as causas e implicações desse contexto, seja com os instrumentos das ciências sociais e humanas, seja com a luz da Palavra de Deus; c) buscar em mutirão e de forma participativa um leque amplo, variado e possível de alternativas ao modelo socioeconômico e político-cultural vigente. Daí a importância de manter viva e ativa a conexão entre a perspectiva global e a realidade local.

No fundo, trata-se de uma aplicação nem sempre explicita nem explicitada do método VER-JULGAR-AGIR, tão comum nos movimentos, pastorais e organizações do Brasil e da América Latina e Caribe. Cabe, ainda, uma menção à metodologia de Paulo Freire, a qual, de uma forma ou de outra, desliza sub-repticiamente pelas entrelinhas. Podemos concluir que se trata de manter os pés solidamente firmes no chão, os olhos vivamente abertos para a luz da teoria científica e da mística que nos nutre, e as mãos ativamente ocupadas nas atividades de transformação social e política.

Inútil acrescentar que nesse processo de constatação, estudo crítico e ação, os principais protagonistas se originam na base das mais variadas e múltiplas organizações populares. Retomando os princípios básicos de Paulo Freire, as palavras e os conceitos chaves do cotidiano são ferramentas indispensáveis para a mudança social. Saberes e sabores se mesclam, se fundem e se enriquecem na abertura de horizontes novos. O cenário de crises, pestes e pandemias, por mais trágico que seja, nos conduz à encruzilhada. Se é verdade que a crise costuma nos levar ao berço, ao choro e a uma determinada cegueira provocada pelas lágrimas, a encruzilhada, ao contrário, pressupõe bifurcações distintas, por um lado, e, por outro, uma escolha entre os caminhos que se vislumbram.

Sair da crise em direção à encruzilhada equivale a enxugar o prato, levantar a cabeça, tomar consciência das vias que se bifurcam ou trifurcam – e tomar uma decisão que deve sempre ser fruto da participação conjunta. Os debates em torno das Semanas Sociais visam amadurecer essa decisão que, em seguida, desdobra-se em projetos, programas e atividades concretas de organização e mobilização. Evidente que esse processo se faz permanente: cada ponto de chegada se converte em novo ponto de partida. Peçamos ao grande poeta Guimarães Rosa para colocar o ponto final em nossa reflexão: “Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Grande sertão – Veredas).

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*Padre Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço a Pastoral do Migrante