SSB
17/08/2020
Famílias do Quilombo Campo Grande sofrem reintegração de posse | Imagem MST Minas

Polícia Militar mobilizou 150 homens para ação de reintegração de posse, além de um helicóptero, que jogou bombas de efeito moral para dispersar acampados. Operação, em meio à pandemia, levantou críticas de políticos e celebridades ao governador Romeu Zema

Por Daniel Camargos, de Campo do Meio (MG) | Repórter Brasil

As seis casas destruídas durante a ação de despejo no acampamento Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio, no Sul de Minas Gerais, serão reconstruídas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A escola Eduardo Galeano, que foi derrubada por tratores, também será refeita, segundo Tuira Tule, da coordenação estadual do MST. A organização também planeja submeter os cerca de 300 integrantes que resistiram à ação de reintegração de posse a testes de coronavírus. “Vamos fazer os exames na segunda-feira”, afirma Tule.

Os acampados resistiram por 56 horas a uma ordem de reintegração de posse de um terreno de 52 hectares da usina falida Ariadnópolis. Seis famílias foram despejadas pelos policiais que, na tarde de sexta-feira (14), usaram bombas de efeito moral para desmobilizar os trabalhadores rurais. A operação contou com 150 militares, helicóptero e um aparato policial que esgotou as vagas de hotéis nas cidades de Campo do Meio e na vizinha Campos Gerais. “A mobilização do aparato policial promoveu aglomeração expondo não somente as famílias sem-terra, mas também toda a população da região à propagação do Coronavírus, inclusive grávidas, idosos e outras pessoas do grupo de risco”, afirmou o MST.

O território é ocupado pelo MST há 22 anos. São 450 famílias acampadas no terreno de uma antiga usina, que deixou dívidas trabalhistas na década de 1990. A ordem judicial de reintegração de posse refere-se a uma área de 52 hectares — do total de cerca de 4 mil. O tamanho da área que foi alvo da ação da polícia é controversa. A primeira ordem judicial de reintegração de posse, referendada na 2ª instância, afirmava que ela tinha 26 hectares. No entanto, meses depois, um juiz da Vara Agrária dobrou o tamanho do terreno a ser reintegrado e determinou o despejo.

Para o MST, essa ampliação foi feita para pressionar as famílias que vivem no outro terreno, onde mora a maioria das famílias e onde será construída a nova escola e as casas que foram destruídas. Cada família tem em média oito hectares de terra e a maioria não usa agrotóxicos e nem sementes transgênicas. Um orgulho dos acampados é o café orgânico Guaií, símbolo da produção local.

O despejo foi iniciado na quarta-feira (12) às 6h. O primeiro alvo foi a Escola Eduardo Galeano e uma família que vivia no mesmo lote. “Foi horrível. Meus filhos, assustados com os policiais, estavam chorando e tremendo”, conta Crislaine Cristina, que teve a casa em que vivia com o marido e os dois filhos jogada no chão por um trator.

A estratégia do MST foi deter o avanço da polícia com barricadas e ganhar tempo para tentar preservar as outras casas enquanto apoiadores políticos e advogados atuavam para reverter o despejo. A esperança maior surgiu na noite de quarta-feira, quando o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) publicou no Twitter que a Secretaria de Desenvolvimento Social de Minas Gerais havia solicitado a suspensão do cumprimento da ordem judicial para reintegração de posse da área.

O anúncio foi entendido como uma vitória pelo MST e ajudou a conter a tropa de policiais. Contudo, menos de duas horas depois, o governador de Minas voltou a usar a rede social para explicar que o pedido da secretaria de governo havia sido feito na terça-feira (11) e que não fora aceito pela Justiça, reafirmando que os policiais cumpririam a ordem do juiz.

A comunicação errática do governador o colocou no alvo do MST. Na rede social Twitter, a hashtag #zemacovarde chegou ao primeiro lugar entre os assuntos mais comentados. “O governador Romeu Zema colocou a vida e a saúde de milhares de pessoas em risco, demonstrando o seu descaso com o povo, mostrando sua face covarde e criminosa”, afirmou em nota o MST. O governo mineiro destacou também em uma nota que a ação foi programada para “ocorrer de forma pacífica”.

Os ânimos ficaram exaltados no início da tarde de quinta-feira (13), quando as pastagens que circundam a estrada de terra onde policiais e manifestantes se encaravam foi incendiado. O fogo levou ao recuo dos policiais e à dispersão dos sem-terra. A origem do incêndio é incerta. Um homem montado em um cavalo foi filmado pela polícia colocando o fogo, mas não foi preso. O MST acusa a polícia, enquanto a polícia acusa o movimento.

Após o fogo, o comandante da operação policial subiu o tom nas negociações com os advogados do movimento. Disse que os líderes do MST seriam responsabilizados por tentativa de homicídio, pois colocaram a vida dos policiais em risco com o fogo. “Fica difícil explicar isso para minha tropa”, afirmou o tenente-coronel Afrânio Tadeu Garcia, comandante do 64° Batalhão de Polícia Militar em Alfenas. Declaração que foi entendida, pelos advogados, como uma ameaça de uso de violência.

No final da tarde quinta-feira Garcia chegou a anunciar duas vezes no megafone que a tropa iria avançar, mas antes do terceiro e último aviso chamou os advogados do movimento para uma nova negociação e recuou. O MST ganhou tempo, mas as tentativas jurídicas e de apelos políticos não surtiram efeito. Celebridades como Wagner Moura e Bela Gil publicaram mensagens de apoio ao MST.
A liminar que permitia a reintegração da posse podia ser executada até o sábado (15). No início da tarde de sexta-feira (14), um helicóptero da PM fez voos rasantes sobre a área queimada, jogando grande quantidade de fuligem e poeira do pasto incendiado sobre os sem-terra. A medida que a tensão aumentava o movimento respondia com músicas. Encarando os policiais fortemente armados, eles cantavam: “O risco que corre o pau, corre o machado / Não há o que temer / Aqueles que mandam matar também / Podem morrer! / Nós estamos em guerra / O lado de lá já decretou / Pois contratam pistoleiros / Para matar trabalhador”

Às 14h a polícia avançou após jogar bombas de efeito moral e reintegrou a posse da área determinada pela Vara Agrária, derrubando as três casas do terreno entendido como controverso pelo MST. Entre os despejados está Wellington Fagundes, que vivia no local com a esposa e os dois filhos, um de 5 anos e um bebê de 10 meses. Ele e a esposa terminaram na semana passada de preparar cinco mil mudas de café para o plantio e ainda sonham conseguirem com a terra dar para os filhos o que não tiveram. “Quero poder pagar uma faculdade para eles”, afirma Fagundes.

Lideranças do movimento apontaram uso desmedido da força policial contra os trabalhadores, incluindo idosos, que estavam resistindo. Dois sem-terra ficaram feridos e foram atendidos pela equipe de saúde do MST. A polícia afirmou que as bombas foram lançadas devido aos ânimos exaltados dos manifestantes. “A ação foi pautada em todos os parâmetros técnicos e legais, sendo proporcional e legítima. Não existindo qualquer excesso por parte da PMMG”, afirmou a capitã Layla Brunnela. Quatro pessoas foram presas e levadas para a delegacia de Alfenas. Foram soltos horas depois. Segundo a polícia, o motivo da prisão foi: “crime de resistência”.

A área foi reintegrada em favor do empresário Jovane de Souza Moreira, que comprou a Usina Ariadnópolis, uma gigante fundada no século 19, que teve seu auge na década de 1970 e faliu em 1996. Para tentar reerguer, Moreira fez um acordo com um dos maiores produtores de café do Brasil, João Faria. O documento firmado prevê o arrendamento de parte dos 4 mil hectares da terra para o plantio de café, enquanto outra parcela seria destinada ao cultivo da cana-de-açúcar. O advogado da empresa, Diego Cruvinel, afirma que a futura produção na área gerará entre 100 e 150 empregos diretos.
Para Jovane de Souza Moreira, o MST “faz um teatro”. Segundo ele, os acampados não viviam nas áreas alvo do despejo. “Não tinha gente lá. Eles não eram moradores. Foi um crime do MST colocar família lá”. O advogado da usina Ariadnópolis, Cruvinel, afirma que foi tentado um acordo com os moradores da área. “Em audiência no ano passado, propusemos um acordo de produzir na área e empregar todos eles com carteira assinada. Eles poderiam, inclusive, ficar e produzir em uma área menor, e propusemos inclusive de comprar a produção deles, mas eles não aceitaram”, afirma.

Durante a ação de despejo, os policiais militares ficaram aquartelados na casa de Moreira, na sede da antiga usina. Um dos filhos de Jovane é pré-candidato a prefeito de Alfenas nas eleições deste ano.

Para o MST, segundo nota divulgada, mesmo com a perda da área e as queixas à ação policial, a solidariedade da sociedade foi importante para denunciar “o neofascismo que se instala no país” e enfrentar “os desmandos do Estado de cabeça erguida”. Na análise de Tuira Tule, da direção estadual do MST: “A resistência foi uma luz que se acendeu. Só a partir da unidade do povo trabalhador que conseguimos vitórias. Foi uma vitória de ser a semente da esperança nesse momento tão difícil de desesperança”.