Pessoas LGBTQIA+ e o direito a terra, moradia e trabalho fez parte de uma série de debates realizada pela 6ª Semana Social Brasileira

“E se Deus ama a todos, nós é que temos de aprender a amar também”,

Luís Corrêa Lima

Por Ilanyr Felipe | 6ª SSB

Na construção do projeto popular “O Brasil que queremos: o Bem Viver dos povos”, a 6ª Semana Social Brasileira (SSB) realizou uma série de atividades com pessoas LGBTQIA+, no debate de acesso a terra, moradia e trabalho. No dia 13 de dezembro de 2021 a 6ª SSB e representantes de Organizações LGBTQIA+ se reuniram para iniciar o processo de fortalecimento e mobilização em prol do Projeto Popular “O Brasil que queremos: o Bem Viver dos povos”. No convite enviado às lideranças, Alessandra Miranda, secretária-executiva da 6ª SSB, disse que “as lutas históricas da população LGBTQIA+ fazem parte deste sonho do Brasil que queremos”. E convidou as lideranças a somar “forças nesta direção da igualdade, justiça e respeito para com todas as pessoas”.

"As lutas históricas da população LGBTQIA+ fazem parte deste sonho do Brasil que queremos”

dom Valdeci


Dom José Valdeci dos Santos Mendes, bispo de Brejo (MA) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Cepast-CNBB), acolheu os participantes e ressaltou a importância do encontro. “É um momento de escuta e fortalecimento na luta pela dignidade e igualdade, no espírito de comunhão, fraternidade e construção coletiva”, destacou o bispo. Dom Valdeci observou que quanto mais diversidade e participação, mais rica será a construção do Projeto Popular. “Essa iniciativa da 6ª SSB de começar um diálogo com as pessoas e comunidades LGBTQA+, vejo que está no contexto da proposta da cultura do encontro e da fraternidade do papa Francisco. As comunidades cristãs são plurais, sempre foram. Por isso, essa é uma iniciativa muito concreta na busca de uma comunidade de iguais em meio a essa riqueza da diversidade que nós temos. Somos irmãos, irmãs, como diria São Paulo ‘concidadãos, concidadãs’ da família de Deus”, ressaltou Élio Gasda, doutor em Teologia, professor e pesquisador na faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje).


Lula Ramires

Outros encontros foram realizados com o grupo sempre com um olhar atento às necessidades e a realidade da comunidade. Fruto desses encontros nasceu o Mutirão pelas Vidas LGBTQI+: por terra, teto e trabalho, no formato online, que ocorreram a partir do dia 19 de julho a 16 de agosto de 2022, sempre às terças-feiras, às 19h30 (horário de Brasília). O primeiro mutirão trabalhou o tema Vidas LGBTQIA+: conceitos básicos, com a assessoria de Lula Ramires, um dos Coordenadores do Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, que reúne leigas/os LGBTQIA+ católicxs em São Paulo (SP). Lula é formado em Filosofia e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Atua na formação de professores/as, na temática de gênero e diversidade sexual na escola. O assessor fez um caminho pedagógico com o grupo, trabalhou, por exemplo, os conceitos: o que é ser mulher, o que é ser homem, o que o gênero tem a ver com sexualidade, onde ficam as diferenças? Esse encontro preparou o grupo para o debate nos mutirões que seguiram.

Marianne Luna

Vidas LGBTQIA+: comunidades de fé – O mutirão 2 tratou sobre o tema Vidas LGBTQIA+: comunidades de fé. Marianne Luna, Psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), com intercâmbio pela Universidade de Coimbra (Portugal)e membra da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT pelo Núcleo Madalenas, atuação no Projeto Psis pela Diversidade em parceria com Evangélicxs pela Diversidade, explicou que além da sigla LGBTQI+ dessas letras que são as mais comuns, atualmente, há algumas correntes que indicam para uma sigla completa. É composta por: LGBTQQICAAPF2K+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Questionando, Intersexuais, Curioso, Assexuais, Aliados, Pansexuais, Polissexuais, Familiares, 2-espíritos e Kink). O símbolo de “+” no final da sigla aparece para incluir outras identidades de gênero e orientações sexuais que não se encaixam no padrão cis-heteronormativo, mas que não aparecem em destaque antes do símbolo. Segundo Marianne, ao falarmos sobre diversidade, não podemos nos esquecer que existem interseccionalidades, e elas precisam guiar nossos discursos. A diversidade pode ser usada para nos conectar!


Sobre o tema Comunidades de Fé, Marianne apresentou as lutas do movimento desde os inícios dos anos 1940 nos Estados Unidos, com um avanço em 1970. Segundo ela, no Brasil, o Movimento Episcopaz, surgiu no começo dos anos 2010; o Inclusão Luterana, em 2014; o Evangélicxs pela Diversidade, em 2018; o Inclusão Metodista, em 2020. O primeiro grupo organizado de católicos romanos LGBT do Brasil surgiu em 2007: Diversidade Católica, do Rio de Janeiro. Inspirado nele surgiram diversos coletivos similares espalhados pelo país. Em 2014, foi realizado no Rio de Janeiro o I Encontro Nacional de Católicos LGBT, representantes de 5 grupos existentes no país fundaram a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT. O II Encontro Nacional de Católicos LGBTI ocorreu em São Paulo em 2018, com representantes de 15 grupos de todo o país (exceto região Norte). Em 2022, a Rede está composta por 21 grupos, presentes em 10 estados das regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, e integra a Global Network of Rainbow Catholics (GNRC), que reúne grupos de “católicos do arco-íris” de todo o mundo.

"Nossa atuação se baseia na centralidade da fé trinitária, na pertença eclesial, no protagonismo leigo, na diversidade, no diálogo, no profetismo, e no ecumenismo e na inter-religiosidade”,

Marianne


Marianne, conta: “somos coletivos de leigos que se organizam a partir da necessidade de criar, para aquelas e aqueles que buscam conciliar sua pertença religiosa católica romana com suas identidades como pessoas LGBTI+, espaços seguros de acolhimento respeitoso, partilha de experiências e vivência da fé cristã em comunidade. Criamos espaços de encontro e de troca, de reflexão e escuta, de aprofundamento de nossa fé e espiritualidade. Espaços onde plantamos sementes de vida que nos nutrem e enriquecem e de onde saímos para semear nossos dons e gerar bons frutos, contribuindo assim para a construção de um mundo de mais justiça e igualdade, em que haja espaço para cada um florescer na diversidade. Assumimos como missão promover e difundir a Boa Nova de Jesus Cristo e o projeto plenamente inclusivo do Reino de Deus, partilhando a experiência do amor, da liberdade, da justiça e da vida em abundância com todas as pessoas que são excluídas da Igreja e/ou da sociedade em virtude de sua identidade de gênero e/ou orientação sexual. Acreditamos que Deus nos criou e nos ama a todes com Amor Incondicional, que Cristo nos abraça e nos chama de amigues, e que Sua Igreja é para todes nós. Acreditamos no Espírito que sopra em nossas vozes e nossas vidas, e que é nossa missão profética contribuir com nossas dádivas e nossos testemunhos para a construção do Reino. Nossa atuação se baseia na centralidade da fé trinitária, na pertença eclesial, no protagonismo leigo, na diversidade, no diálogo, no profetismo, e no ecumenismo e na inter-religiosidade”.


Vidas LGBTQIA+: por terra, teto e trabalho – O mutirão 3 Vidas LGBTQIA+: por terra, teto e trabalho contou com a participação de pessoas LGBTs para cada tema. Na temática Terra/Território, Mateus Quevedo, jornalista, do coletivo de comunicação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Quevedo trabalha com os temas da nova geração camponesa e da diversidade sexual e de gênero dentro do MPA. Mateus apresentou as desigualdades do acesso a terra e lembrou que a violência no campo se instalou mais forte desde o golpe em 2016 no Brasil, e somente em 2022 foram registrados 25 assassinatos no campo. Para ele “quando falamos de acesso à terra, estamos falando de resistência e lembrou o assassinato de uma liderança LGBT. Bem como a estratégia do capital de expulsar essas pessoas do campo por não serem bem-vistas pela sociedade, e o agronegócio cresceu em regiões exatamente onde tem pessoas com maior índice de pobreza e violência”.

No painel Teto/Moradia, Gil Amaí, presidente do Movimento de Moradia - Associação Morada do Arco-Íris LGBTI+ Brasil (AMAÍ LGBTI+ BRASIL), e do Conselheiro Municipal de políticas públicas para LGBTI+ da Cidade de São Paulo (SP), membro do Comitê técnico Municipal da saúde LGBTIA+ (SP), narrou sua experiência de ter sido morador de rua e dos desafios da luta por moradia com dignidade para a comunidade LGBTQIA+, para ele não adianta ter um albergue ou morada social, e quando menos se espera tem uma ordem de despejo do governo, mas uma casa pra chamar de sua. Já a fala de Erika Hilton, primeira mulher negra e transvestigênere a ocupar uma cadeira no legislativo municipal paulistano, presidenta da Comissão de Direitos Humanos e da CPI da violência contra pessoas trans, ativista pelas causas LGBTQIA+, antirracista e feminista, salientou, “estamos falando de uma população que é negada o direito de terra, teto e trabalho, e muitas vezes é expulsa da sua própria casa para ir viver nas ruas e acabam se prostituindo. No nosso país 95% das mulheres trans vivem da prostituição. Pois existe uma vulgarização da nossa identidade, mas também porque existe uma faixa de pobreza muito grande nesse país, e quando essa pobreza aumenta esse grupo de LGBT já está vivendo em extrema pobreza. Pensar teto e trabalho para essa comunidade é pensar em tudo, é pensar no processo de abandono escolar que se torna hostil para essas pessoas, na família que expulsa essas crianças com 12/13 anos de idade, pois há um discurso que diz que essas pessoas são demônios, promíscuas”.

Para Erika é uma necessidade por parte do poder público uma Casa de Acolhida que acolha essas pessoas, que muitas vezes foram expulsas das suas famílias ou saíram do aluguel porque perderam os seus empregos. Há uma imagem de que essas pessoas não estão lutando por políticas públicas e que não vão envelhecer, e isso não é verdade. “É importante enquanto sociedade sermos indagados sobre essas questões. Pois temos o direito a fé, a participação na igreja, a espiritualidade, e isso também a nós é negado. Essas consequências refletem em teto, pois participar desses lugares é também ter um teto para se abrigar. É importante começamos a questionar as lideranças religiosas, que conversem com as famílias para que não expulsem seus filhos de casa, se essas lideranças se organizarem e cumprirem esse papel teremos menos pessoas LGBTQI+ sem teto, além das consequências físicas e psíquicas que é o abandono por parte da família", finalizou.


"Temos o direito a fé, a participação na igreja, a espiritualidade, e isso também nos é negado. Essas consequências refletem em teto, pois participar desses lugares é também ter um teto para se abrigar"

Erika Hilton

Na temática Trabalho, Marcos Freire, Bacharel em Farmácia e graduando em Sociologia e Política, militante da questão LGBTQIA+, já fez parte da diretoria da Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (APOGLBT-SP), é Diretor da Associação Brasileira de Gays (ArtGay), metroviário e diretor do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, afirmou que começou sua militância no movimento sindical em 1994. Marcos contou que muitas vezes para conseguir um trabalho escondeu sua identidade sexual, pois sabia que se falasse não seria admitido na empresa. “E uma grande dificuldade das empresas em contratar, dizem que acolhem, mas no dia a dia isso não é verdade, falta formação nas empresas para que os colegas de trabalho acolham essa diversidade”. Segundo Marcos, quando começou o movimento das Paradas Gays na Avenida Paulista, o número foi crescendo exponencialmente e passou de 7 mil para 100 mil em poucos anos. “Os colegas de trabalho me perguntavam: ‘Marcos, é tanta gente assim?’”. Foi ali que comecei a abrir um diálogo e afirmar: “sim, por isso dizemos que estamos em tudo, e em todos os lugares”.

Para Dê Silva, Pedagoga e do Conselho Nacional Popular LGBTQIA+ da Via Campesina Brasil, disse: “Para quem nos enxerga como se não tivéssemos direito de viver, mesmo assim, queremos mostrar o amor, pois somos frutos do Deus da Vida. É preciso pensar como é feito e distribuído o tema trabalho. Quem faz o trabalho de produção e reprodução. Onde estão essas populações e como o mercado está enxergando. É preciso se enxergar como classe trabalhadora para se opor a essa classe exploradora. Não existe falar em trabalho sem falar naqueles que nos roubam esse direito e entender que nossa sociedade é de classe e de classe dominante. Onde estão as pessoas que não conseguem ver Deus? Aqueles que estão nas ruas, que são proibidos de ir à escola e são expulsos da família, alimentados por uma fé preconceituosa, muitas vezes por parte de lideranças religiosas”.

A Bíblia e as Vidas LGBTQIA+ – O mutirão 4, com o tema A Bíblia e as Vidas LGBTQIA+, contou com a presença de Luís Corrêa Lima, historiador e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), autor do livro "Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos”. O pesquisador fez um processo histórico do tema desde o Brasil Colônia até o Brasil atual, e sistematizou esse processo na ciência e na Bíblia, deixou claro que o livro da Palavra de Deus também se atualiza, que há textos que no Século XXI não fazem mais sentido falar hoje, sobretudo fora de contexto. Apresentou relatos difíceis de pessoas LGBT, recordou o papa Francisco como aquele que pede o respeito e acolhida a diversidade e finalizou dizendo “que nossas vidas possam salvar outras vidas”.
Para esses mutirões se inscreveram 204 pessoas na plataforma, e tivemos a presença de cerca de 40 a 50 pessoas em cada mutirão. Durante todos os mutirões houve muita abertura por parte do público nas partilhas da vida, muitos até choraram ao compartilhar suas dores, muita interação nas perguntas e interesse pelo tema, um pedido que foi constante nas falas dos participantes “esse tema precisa ser discutido com pessoas LGBTQIA+ negras, indígenas, presidiárias”.

"Nossas vidas possam salvar outras vidas"

Luís Corrêa