A escritora, atriz e cineasta, reposiciona o debate em torno da condição humana a partir de seu contato com povos indígenas e suas cosmologia
A cisão moderna que colocou de um lado a natureza e de outro a cultura empobreceu a noção de humanidade, que, paradoxalmente, resulta das inspirações iluministas. Há, porém, povos e pensadores não modernos, com origem nas populações nativas do Brasil, que nos convidam a pensar a humanidade sob outros pontos de vista. “Ailton Krenak é um enorme pensador indígena cuja voz tem se amplificado ao afirmar em alto e bom som que a humanidade não existe, o que existem, sim, são muitas e diversas humanidades”, pontua Rita Carelli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“Há, nas diferentes nações indígenas, essa percepção que nos falta de estarem inseridas em um organismo maior e muito mais sábio do que nós em que tudo está interligado e é codependente. Uma sintonia fina com o lugar onde vivem, um conhecimento profundo dele, e uma clara noção de que somos natureza”, complementa.
A literatura tem ocupado um espaço importante neste contexto de jogar luz sobre modos de vida e existência não propriamente ocidentais, que nos levam a pensar o conceito de humanidade para além das fronteiras hegemonizadas. “Nessas histórias, que alguns chamam de mitos, mas que os próprios narradores muitas vezes preferem chamar de histórias verdadeiras, os bichos são tios, tias, avôs, avós, amantes, professores dos humanos”, pondera Carelli. “As fronteiras entre humanos e não humanos são muito mais tênues e mutáveis e sua zooliteratura, se quisermos assim chamar, infinitamente mais rica”, justifica.
Rita Carelli é atriz e diretora formada pela Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris. Fez estágios com Ariane Mnouchkine, Maurice Durozier, Eve Doe Bruce e Juliana Carneiro da Cunha do Théâtre du Soleil. Trabalhou durante anos como palhaça na ONG Doutores da Alegria e como atriz, diretora e dramaturga de várias peças teatrais. Entre seus trabalhos mais recentes no cinema estão o longa Abaixo a Gravidade, de Edgard Navarro, que encerrou o quinquagésimo Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, e a minissérie Diários da Floresta, de Luiz Arnaldo, exibida pela TV Cultura e Canal Brasil. Seu currículo completo e seus trabalhos podem ser acessados em sua página pessoal.
Confira a entrevista.
É correto dizer que há em curso reflexões singulares em busca de um “outro humanismo”, que amplia o conceito de “nós”, e insere o ambiente nessa nova compreensão, problematizando a perspectiva antropocêntrica?
Rita Carelli – Sem dúvida. Há, em primeiro lugar, um pensamento que busca ampliar a questão da humanidade em si, que recusa a ideia hegemônica de humanidade que o pensamento eurocêntrico tentou nos fazer engolir goela abaixo nos últimos séculos. Ailton Krenak é um enorme pensador indígena cuja voz tem se amplificado ao afirmar em alto e bom som que a humanidade não existe, o que existem, sim, são muitas e diversas humanidades. Nos debates atuais sobre o colapso climático que estamos enfrentando há, inclusive, tentativas de dividir a conta dessa catástrofe segundo os estragos causados no planeta por esses diferentes humanoides – que são escandalosamente diversos. Em seguida, há todo o debate sobre a insustentabilidade – e limitação – do chamado antropocentrismo. De como nós, seres humanos (ou ao menos uma parte deles), parcialmente nos cortamos do ambiente em que estamos inseridos e nos desligamos das outras formas de vida a partir de uma profunda prepotência que só nos empobreceu e que, aparentemente, vai nos levar à destruição.
Ailton Krenak é um enorme pensador indígena cuja voz tem se amplificado ao afirmar em alto e bom som que a humanidade não existe, o que existem, sim, são muitas e diversas humanidades
O que seus trabalhos na minissérie Diários da Floresta (2017) e no longa Antes o Tempo não Acabava (2017) lhe revelaram sobre a importância de repensar o antropocentrismo? Quais foram suas descobertas mais significativas?
Rita Carelli – Não sei se esses foram trabalhos que especialmente me fizeram repensar o antropocentrismo, mas, antes, entrar em contato com outras humanidades. Diários da Floresta é uma minissérie dirigida por Luiz Arnaldo e inspirada no lindo livro homônimo de Betty Mindlin que narra a aproximação dessa incrível mulher e antropóloga com mundo Suruí Paiter e, claro, com a floresta. Um encontro que a permeia por todos os poros até que ela própria tenha sua natureza ocidental-urbana-branca-burguesa profundamente abalada. Em Antes o Tempo não Acabava, filme de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, Anderson, o protagonista indígena, está trilhando exatamente o caminho inverso ao se afastar de sua comunidade e tentar se inserir no anonimato da grande cidade de Manaus, mas sua identidade não pode ser simplesmente apagada ou substituída. São bons exemplos de "choques" de humanidades.
Como compreendes a ideia de “luta por um mundo onde caibam todos os mundos”, fala de sua personagem em Diários da Floresta (2017)?
Rita Carelli – A Ceci, personagem de Diários inspirada em Betty, diz essa frase para um missionário protestante que acaba de fazer um severo julgamento moral sobre um costume indígena do povo que lhe é anfitrião. Essa resposta, antes de tudo, admite essa pluralidade de mundos, humanos e extra-humanos e, em seguida, manifesta o desejo de que eles possam coexistir sem se aniquilarem. É uma fala contra a hegemonia, o fundamentalismo excludente, que protesta sobre um julgamento de moral que se julga superior e absoluto.
Qual sua percepção sobre como os indígenas se colocam no mundo? O quanto dessa percepção está em Minha Família Enauenê, seu livro de 2018?
Rita Carelli – Há, nas diferentes nações indígenas, essa percepção que nos falta de estarem inseridas em um organismo maior e muito mais sábio do que nós em que tudo está interligado e é codependente. Uma sintonia fina com o lugar onde vivem, um conhecimento profundo dele, e uma clara noção de que somos natureza. Meu livro Minha Família Enauenê conta um pouco dessa alegria de se integrar em uma comunidade humana e mais que humana. De fazer parte, mesmo que provisoriamente, de um povo em que a vida é cíclica, coletiva, cheia de sentido. Fala, entre outras coisas, da delícia de fundir-se ao rio e também de aprender a respeitar e temer os outros seres que dividem conosco a mesma casa, como a sucuri que cochila dentro daquela água.
Temos muito a aprender com os indígenas. E já estamos atrasados, tanto que caminhamos cegos e surdos pela nossa enorme arrogância
Você também é autora de outros livros que trazem visões e cosmovisões indígenas. Como essa cosmologia pode nos ensinar acerca dos caminhos que a humanidade tem tomado (de degradação ambiental, pandemia, guerra...)? Por que você opta por narrativas lúdicas – e muito bem ilustradas – para revelar esses mundos?
Rita Carelli – Temos muito a aprender com os indígenas. E já estamos atrasados, tanto que caminhamos cegos e surdos pela nossa enorme arrogância. Só agora, diante da catástrofe em curso é que começamos timidamente a nos perguntar se não há algo errado em nossa forma de se relacionar com o planeta e uns com os outros. Eu tive a tremenda sorte de andar com meus pais em aldeias indígenas desde que nasci e essas narrativas são minha singela maneira de compartilhar um pouco do que pude ver e viver nessas andanças.
Durante muito tempo fiz livros com essas temáticas apenas para crianças, pois julgava que os adultos estavam carregados demais de preconceitos em relação aos indígenas e que o trabalho com eles seria muito mais duro e menos frutífero. Depois me chamaram para trabalhar como atriz em alguns projetos como os citados acima e resolvi escrever meu primeiro romance adulto com temática indígena e ambiental, o Terrapreta, que saiu em 2021 pela editora 34. Ao mesmo tempo participei da idealização e feitura dos livros de Ailton Krenak e, qual não foi nossa surpresa diante do enorme sucesso alcançado por eles! Talvez agora a falência da nossa sociedade – e a necessidade vital de aprender a viver de outra forma – já esteja mais óbvia do que há dez anos.
No curta Hospedeira (2014), há uma inspiração em Clarice Lispector e sua ideia de que “perder-se também é caminho”. Em que medida o filme pode ser lido como um se perder enquanto humano para encontrar um caminho para a vida na Terra? Que relação entre o humano e a floresta o filme incita a pensar?
Rita Carelli – Nesse curta quis falar um pouco, através das imagens e do som, sobre essa visão esdrúxula que temos da natureza como algo externo, separado de nós, ao colocar uma personagem urbana dentro da mata tal qual um extraterrestre que tivesse acabado de aterrissar por aqui e, aos poucos, fazer com que ela começasse a ser capturada, permeada, depois espelhada e finalmente acolhida por aquela mata. Fazer com que, ao se perder, ela pudesse começar a se reencontrar. É um curta aparentemente simples, mas do qual gosto muito.
O que somos capazes de esconder e aprisionar sob a pele humana, no sentido ocidental do termo? Acreditas que buscando uma outra pele somos capazes de nos revelar e nos libertar?
Rita Carelli – É uma pergunta difícil e muito profunda, mas acredito, sim, que temos limitado mediocremente nossas existências ao nos desconectarmos de outras. Acredito também que no mundo ocidental, tão aprisionado ao pensamento cartesiano e ao mundo visível, as narrativas lúdicas, como você chama, podem começar a nos ajudar a nos desaprisionar dessa pele, nos levando a nos imaginar em outras. O meu próximo livro infantil, Menina Mandioca, que vai sair em breve pela Mini Pallas, convida os leitores a se imaginarem planta, raiz, mandioca, em uma pequena viagem para dentro da terra.
Acredito, sim, que temos limitado mediocremente nossas existências ao nos desconectarmos de outras
O que a peça O Carnaval dos Animais (1886), cuja montagem de 2008 você participou, revela sobre pessoas e animais? O que reside nas analogias e metáforas do autor Camille Saint-Saëns e por que há essas referências a animais?
Rita Carelli – As crianças em geral se interessam muito mais pelos animais do que os adultos, são mais curiosas e abertas, e por isso tantas obras para crianças se debruçam sobre o mundo animal. Em O Carnaval dos Animais, Camille Saint-Saëns usa do mesmo recurso para expandir o universo sonoro das crianças, mesmo que dentro da tradição da música clássica europeia e também para encontrar novas inspirações para si próprio. É uma bela obra que fomos muito felizes em montar em Salvador, no Teatro Castro Alves com a Orquestra Sinfônica da Bahia e integrantes do então jovem projeto Neojibá, hoje já uma referência para programas de criação de orquestras infantis e juvenis no Brasil e no mundo.
O clássico conto de fadas Mamãe Ganso (Sec. XVII), do francês Charles Perrault – que deu origem ao concerto de Maurice Ravel e uma montagem trabalhada por você em 2009 –, é supostamente uma analogia a uma mulher contadora de histórias. Como compreender essas aproximações entre humanos e animais, ou a animalização de humanos, nas representações da literatura, música e teatro?
Rita Carelli – Mamãe Ganso foi o segundo concerto cênico que fizemos no mesmo contexto: com a Orquestra Sinfônica da Bahia e integrantes do Neojibá, com regência e idealização de Ricardo Castro e direção cênica e apresentação minhas. Estávamos trabalhando no Teatro Castro Alves na formação de público dos concertos sinfônicos e os resultados foram maravilhosos.
Ainda pretendíamos montar Pedro e o Lobo, mas, infelizmente, não tivemos tempo e apoio suficientes. De qualquer maneira, você cita aqui algumas excelentes obras da produção artística ocidental com inspiração no mundo animal, mas tenho a dizer que as histórias indígenas estão recheadas de animais (e não estamos falando aqui apenas de histórias para crianças já que essa categorização nem mesmo existe nas histórias tradicionais indígenas).
Nessas histórias, que alguns chamam de mitos, mas que os próprios narradores muitas vezes preferem chamar de histórias verdadeiras, os bichos são tios, tias, avôs, avós, amantes, professores dos humanos. E a eles dão conselhos, ensinam novidades, os enganam, com eles se casam ou fazem amor e, eventualmente, têm filhos. As fronteiras entre humanos e não humanos são muito mais tênues e mutáveis e sua zooliteratura, se quisermos assim chamar, infinitamente mais rica.
Nessas histórias, que alguns chamam de mitos, mas que os próprios narradores muitas vezes preferem chamar de histórias verdadeiras, os bichos são tios, tias, avôs, avós, amantes, professores dos humanos – Rita Carelli Tweet
O que você compreende como zooliteratura? Em que medida inscreverias seus trabalhos – no cinema, teatro, música e literatura – nesse “gênero”?
Rita Carelli – Da mesma forma que os personagens animais (mas não só: também o rio, a lua, o fogo, o buriti e tantos outros personagens não humanos) permeiam, eu diria, a quase totalidade das histórias indígenas sem que exista uma categoria específica para isso, esses personagens, por osmose e naturalmente, vêm fazer parte de minhas obras. Minha vida está profundamente marcada pelos encontros que tive com mundos indígenas desde sempre e isso tornou-se inevitavelmente parte do que sou e de minhas obras.