Cesar Sanson
06/10/2020
Arte: Mandala do bem viver ou sumak kawsay, na língua quíchua. A cosmovisão espiritual das tradições andinas | fonte: https://bit.ly/33yTg41

Neste artigo o professor Cessar Sanson faz a provocação: “Quem sabe essa crise, paradoxalmente, nos ajude a repensar a relação capital versus trabalho fornecendo arsenal para alternativas emancipatórias”

Por Cesar Sanson[1] | 6ª Semana Social Brasileira

 A pandemia do novo coronavírus (covid-19) escancarou ainda mais as condições de trabalho precário na sociedade brasileira e desafia-nos a pensar em soluções ousadas. Quem sabe essa crise, paradoxalmente, nos ajude a repensar a relação capital versus trabalho fornecendo arsenal para alternativas emancipatórias? A crise nos ajuda a perceber, por um lado, o quanto o trabalho é imprescindível e, por outro, o quanto é pouco valorizado. No meio disso tudo, a crise revela também como a sociedade do trabalho tem sido incapaz de incluir a todos com o mínimo de dignidade.

A crise provocada pelo coronavírus nos revela de forma didática que quanto mais útil o trabalho, pior é a sua remuneração. Basta tomar como exemplo os profissionais de saúde, dentre estes, talvez com exceção dos médicos, a grande maioria, recebe salários injustos. Na área da saúde, muito tem se falado dos que ‘estão na linha de frente’ da luta contra o referido vírus, referindo-se aos médicos e enfermeiros, e esquecendo-se de uma variedade de outros trabalhadores como os porteiros, atendentes, maqueiros, motoristas e auxiliares de limpeza nas unidades de saúde. Esses, são também expostos ao covid-19 e muitas vezes com equipamentos inadequados, são pouco lembrados e estão na rabeira da cadeia salarial.

Nesse momento tão difícil, não abrimos mão também do uso dos trabalhadores de aplicativos. Esses se tornaram a manus da porta para fora, para o mundo exterior, para se adquirir as coisas que não podem faltar. Esses que se equilibram em suas motos e bicicletas recebem migalhas. Há ainda outras categorias que também estão ‘na linha de frente’ e dos quais não podemos nos privar em tempos de pandemia: trabalhadores de supermercados, farmácias, frentistas, porteiros e vigilantes, motoristas e cobradores de coletivos, coletores de lixo, diaristas, etc. Em comum, todos ganham pouco. Para esses, as coisas mudaram para pior. Além da péssima remuneração, estão expostos ao risco de contraírem o vírus.

Por outro lado, milhares foram confrontados com mutilações salariais a partir de leis do governo federal que com o intuito de preservar empregos facultaram as empresas a reduzir salários. Outros foram demitidos e outros convocados a retornarem ao trabalho mesmo em crise crescente da pandemia. É isso ou a rua.

Trabalho informal

Falemos ainda dos trabalhadores informais, sobretudo que vivem nas ruas vendendo os seus produtos. Para esses, a pandemia foi devastadora. A renda, que já era pouca, minguou. Além de serem vistos como transmissores do vírus pelos outros que circulam pelas avenidas com seus carros ou pelas praças públicas. Tomemos também o exemplo dos professores, sobretudo das escolas privadas, que passaram para a condição do teletrabalho ou home office. Situação nova a que tiveram que se adaptar velozmente sem qualificação necessária e sob o estresse de dar conta do recado pressionado por pais e direções de escolas. Bancários também passaram para o trabalho em casa e é provável que os bancos aproveitem a situação para reorganizar seus serviços dispensando muitos deles.

 Por outro lado, as grandes corporações não faliram, os bancos ganharam mais dinheiro e empresas associadas à Revolução 4.0, como a dos aplicativos e plataformas de comércio on-line, ficaram mais ricas. Os pequenos empreendimentos, o pequeno comércio, por sua vez, terão enormes dificuldades e levarão milhares à rua. Não devemos nos surpreender com uma possível explosão do desemprego.

Como se pode constatar essa crise da pandemia pôs a nu as péssimas condições daqueles que dependem do seu trabalho para sobreviver. Surge aqui a pergunta: E como será a sociedade do trabalho pós-crise do coronavírus? Nada indica que será melhor. É preciso ser realista! Os fatos e os dados indicam uma deterioração para aqueles que vivem do trabalho. Essa situação já era difícil em função do desmonte da legislação de proteção aos direitos dos trabalhadores que estava em curso e tende a se agravar. Às medidas anteriores estão sendo agora acrescentadas outras, via medidas provisórias, que prejudicarão ainda mais o lado do trabalho. Ficará mais fácil para o capital contratar, demitir e ajustar a jornada de trabalho de acordo com as necessidades da lógica de mercado. Essa realidade tão difícil pode ser também oportunidade para ousar saídas que não nos levem sempre ao mais do mesmo.

O que queremos afirmar aqui é que fica cada vez mais evidente o esgotamento da sociedade industrial/salarial. Por muito tempo se pensou que caminhávamos inexoravelmente para uma civilização inclusiva, na qual o trabalho assalariado desempenharia papel central na distribuição de renda. Esse modelo dá sinais de fracasso. O emprego é cada vez mais escasso e precário. Vejamos porque esse modelo não pode prosperar.

O feroz ataque do capital sobre o trabalho

Assiste-se nas últimas décadas a uma ofensiva sem precedentes do capital frente ao trabalho. A ordem do capital é desregulamentar. É o mercado quem define as regras do jogo. As relações de trabalho fazem-se sempre e cada vez mais num processo de relações institucionais de individualização, no qual os atores do trabalho se veem enfraquecidos, vide a justiça do trabalho e os sindicatos. Essa realidade manifesta-se através da alteração das normas que se ajustam às condições do mercado: contrato de trabalho, remuneração e jornada de trabalho. É nesse contexto que deve ser compreendida a reforma trabalhista. Essa reforma não feita para gerar mais empregos, mas para atender aos interesses do capital. Por outro lado, o crescimento da ideologia do empreendedorismo deve ser compreendido a partir dessa lógica. O exemplo clássico do empreendedorismo é a ‘uberização’ – trabalhadores de aplicativos – onde a regra é a ausência de regras. É intrínseco ao modelo a não vinculação com direitos. Agora cada um deve se virar por contra própria. O empreendedorismo é uma enganação liberal. Daquelas que mentem para as pessoas de que tudo depende apenas e tão somente dos seus esforços, de sua perfomance. As pesquisas revelam que o grosso do empreendedorismo se transformou em estratégia de sobrevivência. Não interessa se você está indo para a rua com fome, se o seu produto ou serviço é difícil de vender, se as pessoas te tratam mal, se você tem que competir com outro colega. Tudo isso será pulverizado se você for esforçado, se você acreditar em você mesmo. E se não der certo? Bem, aí é porque você não é bom o suficiente. Trata-se de uma perversidade, de degradação das condições de trabalho e da ideia mentirosa que o problema da sua condição social está em você e não na sociedade.

Evolução das forças produtivas e a ruptura com a sociedade fordista

Outro fator da desestruturação da sociedade salarial é a revolução das forças produtivas – Revolução informacional e Revolução 4.0 – comparável as mudanças produzidas pela Revolução Industrial. Ao contrário, porém, da Revolução Industrial do século XVIII que gerou milhares de empregos, essa revolução produtiva não requer mais o trabalho de todas as pessoas. Ela se faz na dispensa de trabalho. Basta olhar para a destruição de milhares de empregos na indústria e o crescimento de trabalho no setor de serviços, majoritariamente precários. O desemprego em massa das fábricas é grave porque os empregos na indústria são aqueles de melhores salários e que ajudam a puxar a média salarial para cima.

Tem mais, o capitalismo produtivo de agora exige sempre e cada vez mais uma mão de obra altamente qualificada, capaz de agregar conhecimento ao processo produtivo na perspectiva do aumento de produtividade, condição indispensável num mercado altamente competitivo. Situam-se, porém, nessa condição poucos ‘eleitos’, aqueles que trabalham em nichos produtivos de alta tecnologia. Esses são bem pagos, mas em número muito reduzido. Logo, o que vemos com a mudança no paradigma produtivo é a desestabilização dos estáveis: trabalhadores que não tem mais lugar no processo produtivo sendo substituídos por máquinas e a instalação da precariedade: trajetórias erráticas feitas de alternância de emprego e não emprego.

Capital financeiro engoliu o capital produtivo

Outra mudança substancial que destrói a sociedade do trabalho é a supremacia do capital financeiro sobre o capital industrial. As empresas hoje respondem aos interesses de investidores e acionistas e não têm compromissos com a sociedade. A novidade fica por conta de que ao contrário da sociedade industrial, as empresas 4.0 romperam com o “compromisso” fordista de gerar milhares de empregos. Na sociedade industrial clássica, o empresário retornava parte do seu lucro para a sociedade através do pagamento de salários e geração de empregos com abertura de novas fábricas.  Agora, com uso intensivo de tecnologia, as empresas aumentam a produtividade pagando menos salários e empregando menos. O dinheiro que antes voltava parcialmente para a sociedade é transferido para o mercado financeiro. O assalariamento que foi por um tempo, importante mecanismo de distribuição de renda, e permitiu o surgimento do WelfareState,  está em crise. Finalmente cabe destacar que há outro movimento em curso, não menos importante, que é relacionar trabalho e ecologia. A crise ambiental interdita a continuidade de um modelo que não é mais possível, a ideia de crescimento infinito num planeta de recursos finitos. É preciso repensar o atual padrão produção-consumo.

É preciso pensar em outras saídas

Estamos diante de um desafio gigantesco. Como pensar numa sociedade que não dependa mais apenas do assalariamento como mecanismo de inclusão social. É ilusório considerar que um dia retornaremos ao pleno emprego, é ingenuidade crer nas promessas vãs dos políticos que prometem emprego. É um engano acreditar que o emprego será a ancora de toda uma vida. Considerando-se os sinais do esgotamento da sociedade salarial, surge uma indagação: Como as pessoas serão incluídas socialmente? Como distribuir as riquezas socialmente produzidas. O que fazer para que todos tenham o que comer?

Paradoxalmente, é agora, na pandemia do coronavírus, que vem devastando ainda mais a sociedade do trabalho, que vemos uma oxigenação do debate. Por um lado, há aqueles que veem nessa pandemia o estertor das relações de trabalho, ancoradas na normatização, tendo em vista as medidas ainda mais recrudescedoras da desregulamentação e sentem-se ainda mais angustiados; porém há aqueles que, enxergando para além, se dão conta de que a sociedade salarial já não consegue mais incorporar a todos e procuram pensar e sugerir alternativas. Nesse contexto, surge uma proposta inovadora: a criação de uma Renda Mínima Universal (RMU) ou ainda Renda Básica Cidadã ou Renda Básica Universal. A ideia, partindo do pressuposto de que cada vez haverá menos empregos e as pessoas precisam continuar vivendo, é de que as pessoas recebem uma renda mensal para prover a vida em suas condições básicas. O interesse por essa proposta ganhou espaço sobretudo nos países desenvolvidos ao longo da última década – há várias experiências em curso  - e mesmo nos países mais pobres ou em desenvolvimento se têm versões inspiradas nessa ideia, como o caso do Bolsa Família brasileiro.

Talvez seja o momento de assumirmos um papel de pensar o impensável, de sugerir o que parece ser utópico em meio ao distópico. Chega de Reformas, essas não abalam o capital. Por dentro da economia, o debate se dá na esfera da ‘ordem’ e não da ‘ruptura’. É necessário recuperar reflexões de fundo que nos tirem do debate conjuntural e nos empurrem para reflexões estruturais onde o trabalho ocupe um lugar emancipatório e não de conformação e/ou subordinação. A tarefa é dificílima, mas necessária.


[1] Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/ Departamento de Ciências Sociais. Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-PR (1981) com especialização em Economia e Trabalho pela UFPR (1997), mestrado na área da sociologia do trabalho pela UFPR (2003) e doutorado pela UFPR (2009).